A encruzilhada Munduruku: depois de séculos defendendo o Tapajós, barragens ameaçam os vivos e perturbam os mortos
Na aldeia munduruku Dace Watpu, na margem do rio Tapajós, próximo do município de Itaituba, no Pará, caciques, guerreiros, moças e crianças se enfileiraram, no último dia 24 de setembro, para esperar a chegada dos convidados, pesquisadores, apoiadores não-índios (pariwat, na língua munduruku) e o procurador da República no Pará Felício Pontes Jr. Cantando, conduziram os convidados ao local das reuniões da XI Assembleia Munduruku do Médio Tapajós. Já reunidos no barracão central da aldeia, as vozes se calaram para ouvir um menino de não mais do que sete anos, que cantou para todos mostrando que a língua e a cultura munduruku seguem vivos nas novas gerações (assista ao vídeo).
Os índios Munduruku formam uma das maiores e mais guerreiras nações indígenas brasileiras e resistem desde o século XVIII às ameaças da colonização. No século XXI, se encontram numa encruzilhada diante de um conjunto de projetos de barragens que o governo brasileiro implanta na bacia do Tapajós, rio que segundo os mitos formadores desse povo lhes foi destinado para viver e proteger pelo criador Karosakaybu. No total, são 48 barragens previstas para o rio e seus formadores, Jamanxim, Teles Pires e Juruena, algumas já em construção.
Ao longo da assembleia, 32 pessoas se manifestaram, entre caciques, lideranças e representantes das várias aldeias presentes, a maioria falando em língua indígena. O tradutor Munduruku, Antonio Dace, resumiu os discursos para o procurador Felício Pontes Jr, ao final dos debates, quando a noite já ia avançada. “O senhor presenciou uma criança cantando. Aquilo nos emocionou muito. Ele foi ensinado pelos pais, que estão na luta para defender o futuro dele. Aquela criança simboliza algo muito importante para nós, a nossa luta e o nosso futuro”, disse Antônio.
“O Diálogo Tapajós (nome fantasia do consórcio de empresas que quer construir as usinas) está trabalhando para iludir algumas lideranças. Nós queremos que o governo respeite o nosso protocolo. Foi falado aqui várias vezes que a terra é nossa mãe e nos alimenta. Foi falado também sobre os nosso vasos funerários sagrados, retirados do Teles Pires. Nós não queremos indenização por eles. A gente não vende o que é nosso. Foi falado sobre o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da nossa terra Sawré Muybu, que a Funai se recusa a publicar. As mulheres relataram o medo que sentem quando os maridos viajam para longe para negociar com o governo. Porque nós sabemos o genocídio que está acontecendo com nossos parentes Guarani-Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Quando os maridos voltam, é um alívio. Nós só queremos que o governo nos deixe em paz para viver e para ver nossas crianças crescerem”, enumerou, traduzindo a maioria das questões mencionadas.
Os problemas enumerados durante a assembleia Munduruku são os resultados dos esforços do governo brasileiro para assegurar a construção das barragens. Diversos direitos dos índios e ribeirinhos da região estão sendo seguidamente violados, pelo menos desde 2012. O Ministério Público Federal (MPF) já ajuizou 19 ações judiciais tratando dessas violações (confira a relação de ações). No caso dos Munduruku, além de até agora não ter cumprido a consulta prévia, livre e informada prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o governo paralisou a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, que será alagada se a usina São Luiz do Tapajós for construída, obrigando os índios a saírem de sua terra, o que é vedado pela Constituição brasileira.
Com a demarcação paralisada e o anúncio de vários empreendimentos hidrelétricos na região, grupos de madeireiros, palmiteiros e garimpeiros ilegais circulam pela região, disputando recursos naturais e ameaçando fisicamente os índios em várias ocasiões. O MPF obteve em abril de 2015 uma sentença judicial ordenando que a demarcação prosseguisse.
Mas o governo, através da Funai, lançou mão de um instrumento jurídico da ditadura que vem garantindo a construção de usinas hidrelétricas em toda a região amazônica: a suspensão de segurança. Na suspensão, o presidente do Tribunal Regional Federal da 1a Região, desembargador Cândido Ribeiro, alegou razões de economia pública para ordenar a paralisação da demarcação. Esse tipo de decisão, apesar de nem mencionar o mérito do processo – que trata do direito constitucional dos índios ao território – tem efeito permanente até o trânsito em julgado (último julgamento, que pode demorar muito). Com isso, mesmo com o relatório de delimitação da terra indígena pronto desde 2013, o procedimento voltou novamente à estaca zero e não há previsão de prosseguimento.
Em resposta à negativa da Funai, os Munduruku se lançaram na empreitada de autodemarcar seu território, liderados pelo cacique Juarez Saw Munduruku, uma das lideranças que vêm recebendo ameaças na região. “A gente não tá emprestando essa terra. Nós somos brasileiros verdadeiros e donos da nossa terra. Não estamos pedindo que o governo demarque, essa terra não é deles para dar, é nossa. Essa terra aqui, esse rio aqui, o Karosakaybu deixou pra nós. E eu não posso mais andar na minha terra porque sou ameaçado por madeireiros e palmiteiros. O governo não olha mais para o indígena, só quer acabar com o indígena, acabar com a floresta, acabar com o rio”, disse o cacique durante a assembleia.
Tanto quanto o governo brasileiro, o Diálogo Tapajós, nome adotado pelo consórcio de empresas que quer construir as usinas (Eletrobras, Eletronorte, GDF SUEZ, EDF, Neoenergia, Camargo Corrêa, Endesa Brasil, Cemig e Copel) é acusado constantemente de violações pelos moradores da região. Nas mais recentes incursões no território, as empresas vêm repetindo o discurso conhecido na Amazônia inteira de que a chegada das usinas vai assegurar saúde e educação de qualidade. “O governo diz que quando tiver hidrelétrica vai ter saúde, vai ter escola. O governo não pode vir aqui tentar nos vender nossos direitos, isso é um crime”, disse a Maria Leuza Kaba Munduruku.
Adauto Akai Munduruku também denunciou ao MPF o comportamento do Diálogo Tapajós. “Tudo que tá acontecendo no Xingu, a gente não quer que aconteça no Tapajós. A gente sabe o sofrimento que nossos parentes passam com barragem. A gente não quer esse sofrimento. E a gente vai lutar até a morte se o governo insistir”. Os exemplos das usinas de Tucuruí, construída durante a ditadura militar, e de Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires, São Manoel e Sinop, construídas nos governos democráticos, são lembrados constantemente, como assombrações do que pode ser o futuro do Tapajós.
No Teles Pires, quatro barragens (São Manoel, Teles Pires, Sinop e Colíder) já estão em estado avançado de construção e provocaram a destruição de locais considerados sagrados pelos povos da região, como a cachoeira Sete Quedas, Pari Bixexe em língua munduruku, o lugar para onde vão os mortos. O Consórcio Construtor da usina Teles Pires, que provocou a destruição da cachoeira também é acusado pelos Munduruku de retirar da floresta, através de uma empresa de arqueologia subcontratada, urnas funerárias que pertencem aos indígenas. A descoberta da retirada das urnas, em 2012, foi acidental: um grupo de índios foi convidado pela empresa de arqueologia a conhecer o escritório onde trabalhavam, em Alta Floresta, no Mato Grosso. As urnas sagradas estavam lá.
Os Munduruku denunciaram o episódio ao MPF, que investiga o caso em Itaituba. Na assembleia da aldeia Dace Watpu, o assunto foi um dos mais mencionados. Consta na declaração final da assembleia: “Quando falamos ao governo brasileiro da importância do sagrado para nós, de que estes lugares e símbolos não se permite tocar ou remover, as autoridades não entendem e parece que nunca a compreenderão. Todas as ameaças estão acontecendo para destruir o que nos é sagrado. E todos nós somos sabedores que é a construção de usinas hidrelétricas na bacia do Tapajós é a entrada de vários outros empreendimentos dos setores econômicos do interesse do governo como da mineração, hidrovias, construção de portos de navio para transportar grão de soja e construção de ferrovias no território Munduruku.”
“Para os indígenas, não se pode separar a natureza das pessoas. Agora que os brancos estão começando a aprender isso. Eu estudei anos na universidade mas só fui aprender isso lá na Missão Cururu (aldeia Munduruku no alto Tapajós), que foi a primeira vez que fui a uma aldeia indígena, 20 anos atrás. Agora, esse ensinamento que os índios sempre tentaram passar para os brancos, é o que há de mais moderno nas universidades do mundo. Por isso vocês têm toda razão ao dizer que não podem entregar o rio e a floresta que são de todos em troca de escola e posto de saúde. Isso é direito dos indígenas, é obrigação do estado, não é favor de empreiteiras. Isso vale para os índios e para os ribeirinhos, é direito de todos. Posto de saúde não pode ser oferecido em troca de aceitar usina hidrelétrica”, concordou o procurador Felício Pontes Jr, ao se dirigir à assembleia, já no fim da noite de 24 de setembro de 2015.
Todas as denúncias feitas pelos Munduruku serão apuradas pelo MPF, por meio de investigações que tramitam em Santarém e Itaituba.
Veja aqui a declaração final da XI Assembleia Geral Munduruku
Veja aqui as ações ajuizadas pelo MPF sobre as barragens na bacia do Tapajós