26/08/2015

Com homologação suspensa há dez anos, Guarani e Kaiowá retomam cinco áreas em Ñanderu Marangatu

Os Guarani e Kaiowá do tekoha – lugar onde se é – Ñanderu Marangatu retomaram desde o último sábado, 22, quase a totalidade de áreas invadidas e localizadas dentro dos limites da terra indígena, já homologada pela Presidência da República, cujos efeitos do decreto estão suspensos pela Justiça desde setembro de 2005. No total, os indígenas ergueram acampamentos em cinco propriedades: Primavera, Pedro, Fronteira, Barra e Soberania. Restam apenas duas fazendas para Ñanderu Marangatu, localizada no município de Antônio João, Mato Grosso do Sul, ser ocupada na íntegra pelos indígenas. Os Guarani e Kaiowá, diante de ataque sofrido e denunciado no início da semana, exigem do governo a presença da Força Nacional na região.  

Conforme os indígenas, quando a primeira retomada se desenrolou na Fazenda Primavera, durante a madrugada do sábado, parte da comunidade permaneceu na única aldeia que abrigava os Guarani e Kaiowá de Ñanderu Marangatu. Aqueles que não se dirigiram ao acampamento da retomada, sobretudo mulheres e crianças, viram a chegada dos policiais do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) à aldeia e uma sequência de tiros disparados para assustá-los, na análise dos próprios indígenas.

“Atiraram contra a aldeia e parece que não foi para acertar ninguém, porque se quisessem não daria para errar. Mulheres e crianças, assustadas, correram ou se protegeram”, diz uma liderança Guarani e Kaiowá. Os entrevistados não serão identificados por razões de segurança. Depois do ataque, os indígenas decidiram não recuar; ao contrário, a comunidade decidiu retomar mais quatro fazendas como uma forma de sinalizar que os Guarani e Kaiowá não desistirão de suas terras e “se tivermos que morrer aqui, nós vamos. Estamos cansados de esperar”, ressalta a liderança.

Servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) estiveram na tarde desta terça-feira, 25, no tekoha Ñanderu. Ouviram as denúncias dos Guarani e Kaiowá. De acordo com os indígenas, representantes da Aty Guasu, principal organização política do povo, solicitarão apoio ao Ministério Público federal (MPF), Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal e Anistia Internacional. “A terra está homologada, mas o governo federal não pagou as indenizações para os ocupantes não indígenas. Outros não queriam sair dizendo que as terras nunca foram dos índios. Então parou na Justiça”, explica uma das lideranças da Aty Guasu.

O decreto de homologação de Ñanderu Marangatu teve os efeitos suspensos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a pedido dos fazendeiros, há dez anos, em setembro de 2005. A decisão liminar foi do então ministro Nelson Jobim e dizia que os efeitos do ato presidencial permaneceriam suspensos até a ação judicial ser julgada. Hoje o processo encontra-se com o ministro Gilmar Mendes, e segue paralisado. Meses depois da homologação ter sido suspensa, em dezembro, a comunidade foi retirada à força de Ñanderu Marangatu. As cenas do despejo rodaram o mundo e até hoje impressionam pela violência das forças policiais do Estado – assista aqui.

Egon Heck, missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e que trabalhou por mais de uma década no Mato Grosso do Sul, lembra que Ñanderu Marangatu foi palco de assassinatos contra lideranças Guarani e Kaiowá, caso de Marçal Tupa’i. Para o missionário, as retomadas são “em nome de Hamilton Lopes, que faleceu em 2012, de Marçal de Souza Tupa’i, assassinado em 1983, Dorvalino, assassinado em dezembro de 2005, Dom Quitito, que morreu em abril de 2000, e de todos os heróis guerreiros e inocentes crianças que morreram”.     

A guerra Guarani e Kaiowá 

Os Guarani e Kaiowá de Ñanderu Marangatu foram expulsos de seu território na década de 1950. Os colonos chegaram à região, tomaram as terras e obrigavam os indígenas a trabalhar em situação análoga à escravidão. Hoje em dia a situação não é muito diferente – assista aqui. "Esperamos muito já, mais de 17 anos, entre despejos e vida na beira da estrada. Aqui morreu liderança, como Marçal Tupã. Ministro da Justiça (José Eduardo Cardozo), Funai, o governo, né, precisa atuar nisso agora. Sofrimento nosso já anda pelo mundo todo. Governo não vê? Nossa decisão coletiva então é pela autodemarcação”, analisa outra liderança Guarani e Kaiowá.

De acordo com carta divulgada na ocasião da primeira retomada, “Ñanderu Marangatu acordou para valer”. Uma liderança da retomada explica um pouco mais o desejo do povo: “Vamos lutar pra harmonia, esperança e alegria. Alimentos bons. Governo tem de lutar pela vida das pessoas, mas acha que só alguns podem viver. Branco não sabe governar para todo mundo, mas só para alguns. Precisa aprender que governo bom é aquele que entende e obedece a nossa Mãe (Terra)”, ensina o indígena. 

“Índio é pai e irmão do branco. O branco não sabe que quando maltrata índio faz mal pra ele mesmo. Quando chegaram aqui com a erva mate, mataram nossos avôs, bisavôs. Agora é com a caneta. É preciso dizer que não estamos invadindo nada, mas voltando para os nossos tekohas”, conclui. Outra liderança da Aty Guasu se mostrou preocupada com a aprovação pela Câmara Federal, na primeira quinzena de agosto, da Lei Antiterror.

“Fazendeiros já dizem que polícia vai começar a nos enquadrar como terroristas. Preocupante, é um desabafo. Política do branco no Brasil não permite diálogo: enganam a gente, enrolam e chamam para reunião e depois outra reunião. Passa o tempo e aparecem essas leis. Acabou. Branco fala muita mentira, diz que Guarani e Kaiowá é bandido, ladrão de terra, quadrilha, terrorista. Não foi a gente que invadiu a casa do outro e expulsou todo mundo”, desabafa.

Para os Guarani e Kaiowá, o povo está em guerra. “Mas nossa guerra não é suja. Nossa guerra não é por ódio, por querer roubar ou matar ninguém. É pela terra, pela vida. Pode estar destruída pelo pé do boi, mas ninguém vê o que vemos ali. Nossa guerra é com antepassados, com maracá e reza. Nossa gente é pacífica, olha além, sabe o que precisa fazer. Vamos dar a vida por isso”, disse uma das lideranças.

O Guarani e Kaiowá finaliza mandando um recado para o governo federal e fazendeiros: “Somos o dono da terra. Sem a gente vocês não vivem não. Aqui não tem mais brincadeira. Não conseguimos mais chorar. Vamos morrer tudo porque a gente é parte da terra. Branco não percebe nada. Usa a terra pra ganhar dinheiro. Branco não mata pela terra, mata pelo dinheiro que ela dá. A gente morre pela terra pela vida que ela nos dá”.

Fonte: Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação - Cimi
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