21/08/2015
Sem cumprir condicionantes, Belo Monte provoca o caos na saúde indígena no Xingu
As obras e ações previstas em 2010 como condições necessárias para a implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, começaram a ser implantadas apenas recentemente, em 2015, quando a obra já solicitou até licença para iniciar a operação. Autoridades públicas responsáveis pelo atendimento de saúde aos povos indígenas afetados pela usina confirmaram unanimemente a informação nesta terça-feira, 18 de agosto, em audiência pública promovida pelo Ministério Público Federal (MPF) em Altamira.
“As dificuldades que estamos enfrentando no atendimento da saúde estavam previstas no EIA [Estudo de Impacto Ambiental]. A gente apresentou a reestruturação das ações de saúde para que a gente pudesse atender o nosso compromisso com a saúde indígena. A gente sabe que muita coisa do PBA [Plano Básico Ambiental] que era pra ter iniciado há mais de quatro anos e agora que está começando. Agora que está começando a construção das UBS [Unidades Básicas de Saúde], dos sistemas de abastecimento de água, agora que a gente tá discutindo como vai ser o novo modelo de atenção”, disse o coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de Altamira, Lindomar Carneiro. O Dsei atende todos os povos atingidos por Belo Monte.
“O PBA de fato está se iniciando agora. O primeiro programa que existe no PBA é a reestruturação do Dsei e seguem-se alguns eventos para a organização dos serviços de saúde. Essa primeira etapa de reestruturação está acontecendo agora. Depois disso a gente vai ter que reorganizar o distrito. Essa ação era para ter acontecido lá atrás, na época da instalação dos canteiros”, confirmou Roberta Aguiar, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde que coordena o atendimento diferenciado aos indígenas em todo o país.
A inação quase total da Norte Energia SA e do governo brasileiro, responsáveis pela obra, no cumprimento das condicionantes indígenas nesses cinco anos desde a concessão da Licença Prévia de Belo Monte, transformou a vida dos mais de 3 mil indígenas afetados de maneira provavelmente definitiva. Na audiência pública, representantes de todas as etnias relataram crianças morrendo de diarreia por falta de água potável, doenças crônicas causadas pela substituição da alimentação tradicional por comida industrializada, alcoolismo, depressão.
“Eu visitei a [Terra Indígena] Trincheira-Bacajá e presenciei a morte de duas crianças indígenas. Eu fui aos Araweté e tinha acabado de morrer uma criança, todos de diarreia. Visitei aldeias infestadas de baratas. Visitei aldeias onde casas eram construídas sem nenhum cuidado e não servem para nada. Indígenas vieram até o MPF relatar que a água do rio está suja”, disse a procuradora da República Thais Santi, que convocou a audiência. “A nossa saúde está intrinsecamente interligada com a terra. Não dá para falar que a nossa saúde está boa se as nossas terras não estão seguras, se a proteção territorial não foi feita, se a demarcação não saiu, se a desintrusão não foi assegurada. Precisamos das nossas terras protegidas, demarcadas e desintrusadas. Está acontecendo o contrário. Nossas terras estão cada vez mais desprotegidas, pressionadas”, acrescentou Uwira Xakriabá, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi).
O descumprimento sistemático das condicionantes indígenas desde o início da obra de Belo Monte provocou uma situação em que os impactos previstos não foram evitados – pelo contrário, atingiram em cheio os índios – e a falta de clareza sobre as responsabilidades do poder público e do empreendedor acabou criando novos impactos. Somando tudo, a situação é caótica. “Isso causou uma insegurança que provoca danos psicológicos, conflitos entre lideranças, alcoolismo, depressão”, afirma Uwira. Os conflitos foram separando as populações, antes divididas em 18 aldeias, hoje separadas em 42, o que contribuiu para piorar o pesadelo logístico em que se transformou o atendimento à saúde na região.
Contrariando as informações trazidas ao MPF por indígenas, pesquisadores e autoridades que aplicam a política indigenista, a Norte Energia divulgou nota no dia da audiência afirmando que “os povos indígenas do Médio Xingu têm a devida atenção básica em saúde”. O professor Assis de Oliveira, coordenador do curso de Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará, que vem monitorando em pesquisas acadêmicas os problemas trazidos por Belo Monte, criticou a nota. “Fica muito complicado quando o empreendedor não reconhece seus erros e não reconhece o que foi efetivamente implementado. Tudo o que foi feito dentro do plano emergencial contraria o que se considera como etnodesenvolvimento. O que foi feito desmantelou a proteção territorial e fragilizou os povos. Isso é algo muito preocupante, precisa ser investigado a fundo”, disse.
As populações Arara, Juruna, Xipaya e Kuruaya da Volta Grande do Xingu, área mais afetada, estão sem água para beber, cozinhar e tomar banho porque as últimas intervenções no rio deixaram as águas turvas e inservíveis e apenas metade dos sistemas de abastecimento de água nas aldeias estão prontos. “O povo Arara da Volta Grande não tem poço nem água tratada e praticamente nesses dias eles têm bebido lama. Não tem como pegar água em outro lugar, é muito longe. As crianças estão adoecendo. A minha neta vive doente, porque ela bebe aquela água que não é saudável. Se a gente desse para as pessoas da Norte Energia que vão nas reuniões na aldeia, não iam querer beber aquela água”, relatou Aldenira Juruna, da aldeia Paquiçamba, representante da etnia no Conselho Distrital.
Obrigados a uma sucessão de reuniões e negociações sobre problemas causados pela usina, sobre as condicionantes nunca cumpridas, sobre as listas de compras de mercadorias, se deslocando com frequência para a cidade de Altamira, muitos indígenas abandonaram as roças e a Fundação Nacional do Índio (Funai) chegou a solicitar fornecimento de cestas básicas para comunidades antes autossuficientes. A Funai considera que as ações antecipatórias previstas, nunca feitas, geraram um efeito cascata em que todos os impactos previstos se confirmaram, surgiram impactos nunca previstos e impactos que não ocorreriam não fossem as ações feitas de maneira incorreta e atrasada.
Em substituição ao programa antecipatório de etnodesenvolvimento que deveria ser implantado desde o começo da obra, a Norte Energia implantou entre 2011 e 2012 um plano emergencial que consistia na compra de mercadorias para as aldeias. A desagregação social e cultural foi o resultado visível da política. Com acesso a bens de consumo, mas alijados dos direitos garantidos na Constituição e no licenciamento ambiental de Belo Monte, a situação se agravou muito. Agora que foi encerrada a política irregular de entregar mercadorias às aldeias, os índios apontam para o cumprimento das ações do Plano Básico Ambiental como única chance de sobrevivência, já que os danos culturais e sociais são irreversíveis. Durante a audiência, todos os indígenas que se manifestaram falaram da insegurança quanto à implementação do PBA, tendo em vista que as ações previstas simplesmente não vêm sendo cumpridas e outras, como a proteção dos territórios, a Norte Energia se nega abertamente a cumprir.
Para o MPF, além de ser indispensável a efetiva implementação das ações do PBA-CI, tal como foi aprovado pela Funai, como um Programa Médio Xingu, os inúmeros impactos não previstos, decorrentes das obrigações não cumpridas e das ações realizadas à margem do licenciamento impõem a previsão de novas ações mitigatórias aptas a tornar a obra de Belo Monte suportável aos povos indígenas. “Não existe justificativa. Ninguém veio aqui para tentar explicar porque as coisas aconteceram dessa forma aos povos da região. O que é preciso dizer, ao governo federal, é que, se a escolha governamental é usar o rio Xingu para gerar energia, isso tem que ser feito dentro da lei. Uma vez feita a escolha, não é dado ao Estado ou ao empreendedor se colocar acima da lei. Não existe possibilidade de uma licença de operação para Belo Monte sem haver uma readequação do processo”, concluiu Thais Santi.
Presente no local da audiência pública, o representante da Secretaria Geral da Presidência da República João Lizardo Paixão, disse que estava “à disposição para dialogar”.
“As dificuldades que estamos enfrentando no atendimento da saúde estavam previstas no EIA [Estudo de Impacto Ambiental]. A gente apresentou a reestruturação das ações de saúde para que a gente pudesse atender o nosso compromisso com a saúde indígena. A gente sabe que muita coisa do PBA [Plano Básico Ambiental] que era pra ter iniciado há mais de quatro anos e agora que está começando. Agora que está começando a construção das UBS [Unidades Básicas de Saúde], dos sistemas de abastecimento de água, agora que a gente tá discutindo como vai ser o novo modelo de atenção”, disse o coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) de Altamira, Lindomar Carneiro. O Dsei atende todos os povos atingidos por Belo Monte.
“O PBA de fato está se iniciando agora. O primeiro programa que existe no PBA é a reestruturação do Dsei e seguem-se alguns eventos para a organização dos serviços de saúde. Essa primeira etapa de reestruturação está acontecendo agora. Depois disso a gente vai ter que reorganizar o distrito. Essa ação era para ter acontecido lá atrás, na época da instalação dos canteiros”, confirmou Roberta Aguiar, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde que coordena o atendimento diferenciado aos indígenas em todo o país.
A inação quase total da Norte Energia SA e do governo brasileiro, responsáveis pela obra, no cumprimento das condicionantes indígenas nesses cinco anos desde a concessão da Licença Prévia de Belo Monte, transformou a vida dos mais de 3 mil indígenas afetados de maneira provavelmente definitiva. Na audiência pública, representantes de todas as etnias relataram crianças morrendo de diarreia por falta de água potável, doenças crônicas causadas pela substituição da alimentação tradicional por comida industrializada, alcoolismo, depressão.
“Eu visitei a [Terra Indígena] Trincheira-Bacajá e presenciei a morte de duas crianças indígenas. Eu fui aos Araweté e tinha acabado de morrer uma criança, todos de diarreia. Visitei aldeias infestadas de baratas. Visitei aldeias onde casas eram construídas sem nenhum cuidado e não servem para nada. Indígenas vieram até o MPF relatar que a água do rio está suja”, disse a procuradora da República Thais Santi, que convocou a audiência. “A nossa saúde está intrinsecamente interligada com a terra. Não dá para falar que a nossa saúde está boa se as nossas terras não estão seguras, se a proteção territorial não foi feita, se a demarcação não saiu, se a desintrusão não foi assegurada. Precisamos das nossas terras protegidas, demarcadas e desintrusadas. Está acontecendo o contrário. Nossas terras estão cada vez mais desprotegidas, pressionadas”, acrescentou Uwira Xakriabá, presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi).
O descumprimento sistemático das condicionantes indígenas desde o início da obra de Belo Monte provocou uma situação em que os impactos previstos não foram evitados – pelo contrário, atingiram em cheio os índios – e a falta de clareza sobre as responsabilidades do poder público e do empreendedor acabou criando novos impactos. Somando tudo, a situação é caótica. “Isso causou uma insegurança que provoca danos psicológicos, conflitos entre lideranças, alcoolismo, depressão”, afirma Uwira. Os conflitos foram separando as populações, antes divididas em 18 aldeias, hoje separadas em 42, o que contribuiu para piorar o pesadelo logístico em que se transformou o atendimento à saúde na região.
Contrariando as informações trazidas ao MPF por indígenas, pesquisadores e autoridades que aplicam a política indigenista, a Norte Energia divulgou nota no dia da audiência afirmando que “os povos indígenas do Médio Xingu têm a devida atenção básica em saúde”. O professor Assis de Oliveira, coordenador do curso de Etnodesenvolvimento da Universidade Federal do Pará, que vem monitorando em pesquisas acadêmicas os problemas trazidos por Belo Monte, criticou a nota. “Fica muito complicado quando o empreendedor não reconhece seus erros e não reconhece o que foi efetivamente implementado. Tudo o que foi feito dentro do plano emergencial contraria o que se considera como etnodesenvolvimento. O que foi feito desmantelou a proteção territorial e fragilizou os povos. Isso é algo muito preocupante, precisa ser investigado a fundo”, disse.
As populações Arara, Juruna, Xipaya e Kuruaya da Volta Grande do Xingu, área mais afetada, estão sem água para beber, cozinhar e tomar banho porque as últimas intervenções no rio deixaram as águas turvas e inservíveis e apenas metade dos sistemas de abastecimento de água nas aldeias estão prontos. “O povo Arara da Volta Grande não tem poço nem água tratada e praticamente nesses dias eles têm bebido lama. Não tem como pegar água em outro lugar, é muito longe. As crianças estão adoecendo. A minha neta vive doente, porque ela bebe aquela água que não é saudável. Se a gente desse para as pessoas da Norte Energia que vão nas reuniões na aldeia, não iam querer beber aquela água”, relatou Aldenira Juruna, da aldeia Paquiçamba, representante da etnia no Conselho Distrital.
Obrigados a uma sucessão de reuniões e negociações sobre problemas causados pela usina, sobre as condicionantes nunca cumpridas, sobre as listas de compras de mercadorias, se deslocando com frequência para a cidade de Altamira, muitos indígenas abandonaram as roças e a Fundação Nacional do Índio (Funai) chegou a solicitar fornecimento de cestas básicas para comunidades antes autossuficientes. A Funai considera que as ações antecipatórias previstas, nunca feitas, geraram um efeito cascata em que todos os impactos previstos se confirmaram, surgiram impactos nunca previstos e impactos que não ocorreriam não fossem as ações feitas de maneira incorreta e atrasada.
Em substituição ao programa antecipatório de etnodesenvolvimento que deveria ser implantado desde o começo da obra, a Norte Energia implantou entre 2011 e 2012 um plano emergencial que consistia na compra de mercadorias para as aldeias. A desagregação social e cultural foi o resultado visível da política. Com acesso a bens de consumo, mas alijados dos direitos garantidos na Constituição e no licenciamento ambiental de Belo Monte, a situação se agravou muito. Agora que foi encerrada a política irregular de entregar mercadorias às aldeias, os índios apontam para o cumprimento das ações do Plano Básico Ambiental como única chance de sobrevivência, já que os danos culturais e sociais são irreversíveis. Durante a audiência, todos os indígenas que se manifestaram falaram da insegurança quanto à implementação do PBA, tendo em vista que as ações previstas simplesmente não vêm sendo cumpridas e outras, como a proteção dos territórios, a Norte Energia se nega abertamente a cumprir.
Para o MPF, além de ser indispensável a efetiva implementação das ações do PBA-CI, tal como foi aprovado pela Funai, como um Programa Médio Xingu, os inúmeros impactos não previstos, decorrentes das obrigações não cumpridas e das ações realizadas à margem do licenciamento impõem a previsão de novas ações mitigatórias aptas a tornar a obra de Belo Monte suportável aos povos indígenas. “Não existe justificativa. Ninguém veio aqui para tentar explicar porque as coisas aconteceram dessa forma aos povos da região. O que é preciso dizer, ao governo federal, é que, se a escolha governamental é usar o rio Xingu para gerar energia, isso tem que ser feito dentro da lei. Uma vez feita a escolha, não é dado ao Estado ou ao empreendedor se colocar acima da lei. Não existe possibilidade de uma licença de operação para Belo Monte sem haver uma readequação do processo”, concluiu Thais Santi.
Presente no local da audiência pública, o representante da Secretaria Geral da Presidência da República João Lizardo Paixão, disse que estava “à disposição para dialogar”.