10/08/2015

Jaguaretê Ava, o mito do homem-onça

Quando era estudante de filosofia na Universidade Católica Dom Bosco, aluno das classes de filosofia moderna do professor Josemar de Campos Maciel, jamais imaginava que, após formado, chegaria tão perto da metáfora de Thomas Hobbes, o homem-lobo, aquele que devora o próprio homem.

Thomas Hobbes foi um filósofo político da modernidade arcaica que teorizou a respeito do estado de natureza, sem o Estado, no qual a índole negativa do gênero humano seria responsável pela violência generalizada resumida na expressão latina: homo homini lupus, o homem é o lobo do próprio homem. O remédio contra a violência autodestrutiva seria a abdicação de parte das liberdades individuais em nome de uma entidade que reprimiria o impulso autodestrutivo: o Estado, apelidado de leviatã. Uma metáfora retirada da Bíblia.

Acontece que a cruz e a espada nas mãos do leviatã não têm sido eficazes contra outra variante do homem que devora homens, traduzido pelos índios Guarani e Kaiowá como Jaguaretê Avá, homem-onça.

O mito do Jaguaretê Avá está sendo compilado pelo pesquisador Kaiowá João Machado, morador da aldeia Bororó em Dourados, Mato Grosso do Sul. Ele é formado em letras e mestre em linguística pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

Segundo o pesquisador, este ser humano-bicho tinha o hábito de aparecer nas carreteiras à noite, por onde trafegavam viajantes e carreteiros. De acordo com seus informantes indígenas, era um índio de má índole que vivia junto à sua família, mas o demônio aña instigou-lhe a matar sua mãe, pai e os irmãos.  Sem nenhum parente, passou a viver solitário nas florestas e morrarias, amaldiçoado e condenado a comer carne humana.

Os mitos, segundo Ovídio e José Ribamar Bessa Freire, são narrativas de cunho pedagógico e histórico que guardam, nas sociedades de tradição oral, memórias sociais históricas.

Para fundamentar empiricamente a afirmação acima, citarei alguns exemplos.

Na noite passada os Guarani da aldeia Potrero Gasu, em Paranhos, denunciaram homens fera, de apelido pistoleiro, que invadiram casas de velhos, aterrorizando-os, queimaram casas de famílias na aldeia, materiais didáticos de crianças, e que, amaldiçoados, vivem escondidos nas matas da região de fronteira entre Paranhos e Ypehun. Por que fazem isto? É difícil responder, mas suponho que a razão é aterrorizar os Guarani e Kaiowá que querem retornar aos seus antigos territórios, de onde foram removidos por décadas e já foram identificados como terra de ocupação tradicional.

Outro lugar onde o Jaguarete Avá modernizado foi visto nas duas últimas noites foi em Te’yijusu, na cidade de Caarapó. A versão local do homem-onça são os tratoristas durante o dia, metamorfoseados de "seguranças" armados durante à noite, quando rondam e ameaçam moradores e familiares da dona Marcelina, uma anciã que foi removida da aldeia Pirati’y para a reserva Te’yikue e que começaram a fazer a viagem de volta.

Depois destes relatos, recebidos dos índios, convenci-me que o Jaguaretê Avá não é um mito, mas uma realidade histórica que abate violentamente os Guarani e Kaiowá desde 1637, quando começaram os ataques bandeirantes nesta região, na aldeia Araquay, onde residiam índios Guarani-Itatim.

Interrogado sobre o assunto, Thomas Hobbes respondeu dizendo: "Onde o estado não está presente, garantindo direitos, ele é substituído pelo Jaguaretê Avá, que ao fim devorará a todos, pois seu apetite por carne humana e insaciável", advertiu o filósofo.

* Neimar Machado de Sousa é doutor em educação e professor de geo-história colonial na Faculdade Intercultural Indígena da UFGD. E-mail: [email protected]

Fonte: Neimar Machado, da UFGD
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