A caneta e a borduna
Representantes indígenas de vários estados juntaram-se a uma delegação de professores e caciques das etnias Guarani, Kaiowá e Terena do Mato Grosso do Sul e partiram para Brasília, onde, durante dois dias, visitaram alguns órgãos do governo federal: CAPES, FUNAI, STF, AGU, MEC e Congresso Nacional. Uma pergunta que se fizeram várias vezes foi: o que nos trouxe aqui? Durante dois dias acompanhei, como observador, esse grupo e procurei ler-escutar os seus textos-falas para encontrar uma resposta.
Ouvi muitas explicações. Uma delas foi escrita pelo cacique Jorge Gomes, da aldeia Pirakuá, em frente à Advocacia Geral da União: “nossos direitos não têm partido”, conclamou os aliados do alto de sua sabedoria. Outra resposta foi verbalizada pelo índio Cretã Kaigang, do estado do Paraná, “meu pai foi morto, lutando pelas terras usurpadas, sem nenhuma providência, por mais de sessenta anos. Quando isso aconteceu, eu era apenas um garoto de oito anos de idade”.
Já a professora Teodora de Souza, explicou ao prof. Paulo Gabriel Nacif (SECADI) e ao representante da Secretaria Geral da Presidência da República o que entendia por pátria educadora: “uma nação que todos, independentes de sua etnia, tenham acesso justo, gratuito, aos bens culturais. Uma nação em que os saberes não sejam privilégios de uma pequena elite”.
De todas as respostas, a mais contundente foi escrita em uma fotografia, em cuja legenda eu escreveria: a caneta e a borduna.
O professor, flagrado pelo fotógrafo, coordena uma licenciatura indígena na cidade de Aquidauana – MS e a borduna, à sua frente, pertence ao cacique Jorge Gomes, da etnia Kaiowá. Intrigou-me como os dois objetos foram se encontrar no sexto andar do Ministério Educação, em Brasília – DF.
Fui entrevistar os objetos em segredo. A borduna, um pouco ríspida no início da conversa, contou-me muitas aventuras contra inimigos ferozes de outras tribos, abatidos nas guerras imemoriais. Falou sobre sua participação na vingança dos parentes devorados por felinos-homens, predadores de índios, chamados pelos Guarani de ava poro’ú. Os cronistas coloniais Hans Staden, Jean de Léry e o sociólogo Florestan Fernandes ajudaram-me na investigação.
Entrevistar a caneta foi bem mais fácil, pois ela foi bastante eloquente. Contou-me que tem andado em muitas companhias e gabinetes de Brasília. Em alguns mais ausentes. Portas fechadas. Nas aldeias, disse-me, tem aprendido, nos últimos anos a escrever palavras nas línguas maternas dos povos indígenas.
Falou-me que ajudou muitos professores-pesquisadores a registrar histórias de anciãos que não conseguem esquecer traumas pelas remoções de aldeias inteiras, quando eram também garotos, contra a própria vontade, em caminhões de transportar gado, sob a mira cuidadosa de “seguranças” armados e impedidos por anos de retornar ao local onde foi enterrado seu ponchito kuê, o cordão umbilical. Já no final da entrevista, o sábio objeto, bem mais à vontade, confidenciou-me que sua maior frustração na vida foi não conseguir colaborar, não por falta de vontade, mas por omissão de algumas autoridades, a rabiscar seu maior sonho: a assinatura da homologação das terras indígenas, que, segunda ela, está escondida numa gaveta do Ministro da Justiça, em Brasília.
Diante de tantos relatos, compreendi o que trouxe estes professores e líderes indígenas à Brasília. Vieram ensinar ao governo que a pátria educadora é a irmã gêmea da pátria de direitos. Uma não vive sem a outra.