24/04/2015

Justiça Federal manda retirar indígenas de terreno da Prefeitura de Manaus

Famílias indígenas de 12 etnias que ocupam há quatro anos um terreno do Município de Manaus no bairro Tarumã, na Zona Oeste da cidade, podem ser retiradas do local a qualquer momento por determinação do juiz Ricardo Salles, da 3ª Vara da Justiça Federal.

A decisão judicial, que saiu no dia 5 de fevereiro de 2015, atendeu um pedido do Ministério Público Estadual em favor da Prefeitura de Manaus. Em sua ação, o promotor Agnelo Balbi afirmou que o terreno é uma área verde pertencente ao Município.

No último sábado (18), a reportagem da Amazônia Real esteve na ocupação denominada Comunidade Nações Indígenas.  Na área vivem cerca de 1.300 pessoas de 300 famílias indígenas. Os indígenas afirmam que o terreno foi ocupado em 2011, quando os primeiros moradores chegaram ao local na madrugada do dia 19 de abril. Segundo eles, a maior parte da área verde já estava devastada.

Os indígenas dizem que ocupam a área pertencente a Prefeitura de Manaus porque não têm onde morar na cidade. Muitos deles deixaram suas terras demarcadas no interior do Amazonas para viver na capital para ter acesso às escolas, atendimento médico e trabalho.

A Comunidade Nações Indígenas foi criada com três ruas de terra batida. As moradias são precárias, algumas com parede de lona e pedaços de compensado. Outras estão sendo reformadas com obras de alvenaria e de madeira. Não há escola nem posto médico. Todos os quintais possuem vegetação com pés de árvores nativas da Amazônia.

Os indígenas afirmam já foram notificados sobre a decisão judicial de reintegração de posse. Eles estão apreensivos e assustados. Um grupo de moradores está acampado desde a semana passada em frente da sede da Prefeitura de Manaus para tentar uma audiência com o prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB-AM).

A ameaça de desocupação causou a suspensão das obras de cobertura com palha da nova maloca. Atualmente, a maloca, que serviria para sediar reuniões e demais atividades da comunidade, está com o teto pela metade.

“Estou muito triste e sem vontade de comer desde que soube que não temos mais direito de ficar aqui. Batalhamos muito por este espaço. Quando aqui chegamos era um lugar muito feio, não tinha nada de área verde, mas só pedaço de pau velho e morto, capinzal e muita formiga. Parecia uma ‘cacaia’ (troncos de árvores velhos, na língua nheengatu) Agora, o local tem todo tipo de planta”, disse Rosa Gonçalves da Silva, 65 anos, da etnia Mura.

Rosa saiu há cinco anos da aldeia Escondido, da Terra Indígena Cunhã Sapucaia, no município de Borba (a 150 quilômetros de Manaus), em busca de melhores condições de vida.

O cacique da comunidade Nações Indígenas, Pedro dos Santos, 65, da etnia Mura, afirmou que muitos “se desesperaram e choraram” quando souberam da notícia da reintegração de posse da área. “Ficamos sem saber para onde seremos jogados. Estamos assim até hoje. Querem nos tirar daqui e nos levar para onde? Não queremos um local grande. Basta esse pedaço”, afirmou o cacique, que prefere ser chamado de Pedro Mura.

Há previsão de corte de energia na comunidade para ocorrer ainda nesta semana, também por ordem judicial. Além de deixar todos no escuro, o corte dificultará o acesso ao único poço artesiano que os indígenas construíram, pois o local não tem fornecimento de água da concessionária Manaus Ambiental.

“Soubemos que nesta quarta-feira a Amazonas Energia vem aqui cortar as ligações. Falam que a gente rouba energia, mas já fizemos vários pedidos de regularização e nunca fomos atendidos”, disse Pedro Mura, que divide a “chefia” da comunidade com José Augusto Miranha.

Prefeitura suspendeu pedido reintegração, mas MPE manteve ação

Em uma audiência realizada antes da decisão judicial do dia 5 de fevereiro, a prefeitura de Manaus requereu “suspensão do andamento do feito”, ou seja, declinou do pedido de reintegração de posse, mas este posicionamento não foi o mesmo do promotor Agnelo Balbi, que manteve o pedido inicial e seguiu com sua ação.

O local faz parte de um loteamento privado chamado Paraíso Tropical e atende os termos do artigo 22 da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que obriga uma propriedade reservar uma área verde de posse do poder público.

O procurador-geral do Município, Marcos Cavalcanti, disse à Amazônia Real que a Prefeitura de Manaus suspendeu o pedido de reintegração para atender uma solicitação dos defensores públicos dos indígenas e assim evitar que ocorresse uma “desocupação traumática”. Cavalcanti afirmou que a Prefeitura esperava que os indígenas saíssem voluntariamente e não fosse necessária a reintegração de posse com aparato policial.

“A gente teve boa vontade. Ninguém queria nada traumático. Mas o MPE continuou com a ação e o juiz atendeu”, disse Cavalcante.

Indagado pela reportagem se a área verde delimitada pela Prefeitura de Manaus pode excluir as famílias indígenas, ele disse que isto “não tem previsão legal”. “A lei diz que área verde não pode ter outra destinação. Por isso, não podemos abrir mão”, disse Cavalcanti.

A reportagem insistiu e perguntou se a Prefeitura está disposta a encontrar outra solução. Ele disse apenas que “ainda há campo para entendimento e estabelecer um prazo para os indígenas saírem voluntariamente”.

O advogado Abdala Sahdo, que está defendendo voluntariamente índios da comunidade Nações Indígenas, disse que está articulando uma audiência com o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto. O advogado afirmou que uma opção para solucionar a questão da ocupação do terreno do município é uma negociação para criar um projeto de lei tornando a área para moradias dos indígenas.

Outra proposta, segundo Abdalla Sahdo, é ingressar com um processo denominado “incidente de falsidade” na Justiça para questionar os títulos do loteamento. O advogado disse que os seis títulos de terras existentes são de áreas sobrepostas e a validade dos documentos pode ser questionada.

A Amazônia Real não conseguiu contato com o promotor Agnelo Balbi. Ele não atendeu as ligações para seu celular e não respondeu às perguntas enviadas por email à assessoria de imprensa do MPE.

O defensor público estadual Carlos Alberto de Almeida disse que houve audiência para tentar chegar a um entendimento, mas isto não aconteceu.  Em seguida, ele e o defensor público da União Edilson Santana entraram com um agravo de instrumento no TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), mas não foram atendidos.

“Como não conseguimos derrubar, tentamos argumentar com o MPE a suspensão do processo. As respostas foram negativas. Houve uma reunião dos indígenas com o MPE, com o promotor Agnelo Balbi, mas eles também não conseguiram mudar a situação. O que vamos fazer agora é conversar com a própria Prefeitura e os órgãos responsáveis pela área verde para chegar a outro entendimento”, disse Almeida.

O Ministério Público Federal do Amazonas informou em nota que participou de audiência realizada com representantes de todas as partes envolvidas, perante a Justiça Federal, na qual foi encaminhada a realização de levantamento social para identificar e contextualizar a situação de cada família que vive na área, antes de qualquer medida no sentido de executar a decisão de reintegração.

O MPF solicitou, ainda, que qualquer medida de reintegração de posse coletiva observe as diretrizes do Manual da Ouvidoria Agrária Nacional para execução de mandados judiciais de manutenção e reintegração de posse coletiva.

Nesta segunda-feira (20), o MPF requereu a remessa do processo para manifestação. Para o órgão, qualquer decisão a ser tomada no caso deve se basear no levantamento social a respeito da situação das famílias ocupantes da área, de forma a garantir o direito constitucional à moradia digna.

A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas planeja, agora, como se dará a retirada das famílias. No início deste mês, o órgão foi intimado pela Justiça Federal. O planejamento é feito pelo Gabinete de Gestão Integrada (GGI), colegiado de órgãos das esferas Municipal, Estadual e Federal.

A assessoria de imprensa da SSP-AM informou que o planejamento para desocupação foi iniciado em reuniões organizadas primeiramente com as lideranças indígenas. Também foi realizada uma reunião com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semmas). Ainda não há data para a reintegração, segundo a assessoria.

Indígenas receberam visitas de candidatos nas eleições

A decisão judicial surpreendeu a todos na comunidade. Ninguém imaginava que a ameaça de retirada poderia ocorrer depois de tanto tempo no local.

Aparentemente estabelecidos, os indígenas chegaram a ser alvos de interesse de candidatos nas eleições municipais de 2012, e nas estaduais, em 2014, com promessas de políticas públicas para a comunidade.

“Em 2012, a Goreth Garcia, mulher do prefeito Arthur Neto, veio aqui. Ela falou na nossa maloca e disse que o marido dela tinha sangue de índio. Que se eleito, o Arthur transformaria aqui numa comunidade modelo. Votamos nele e fizemos campanha pra ele. Até hoje estamos esperando. Em 2014, veio o irmão do governador José Melo, Evandro Melo, também pedir voto”, contou Pedro Mura. A visita, inclusive, foi noticiada por alguns sites e blogs de Manaus, como é o caso deste blog.

Pedro Mura, agora, busca apoio na própria Prefeitura e, sobretudo, na intervenção de Arthur Neto. Os indígenas vão tentar uma audiência com o prefeito. “Creio que, se ele for um homem de palavra, se ele tem mesmo sangue de índio, não vai deixar a gente sair daqui”, disse. O cacique afirmou ainda que não existe intenção dos moradores de saírem voluntariamente, conforme quer a Prefeitura.

Goreth Garcia é secretária de Assistência Social e Direitos Humanos do Municipio de Manaus. A reportagem a procurou para falar por meio de sua assessoria de imprensa, mas não conseguiu localizá-la até o término desta matéria.

Ligações de energia são irregulares

Os indígenas admitiram que as ligações de energia são clandestinas, mas afirmaram que desde 2013 pelo menos três tentativas de regularização foram enviadas à concessionária Amazonas Energia.

Segundo Pedro Mura, a concessionária nunca respondeu as solicitações. Um dos últimos pedidos de regularização, assinados pela coordenação da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Manaus, foi enviado em forma de ofício no dia 12 de setembro de 2014, ao diretor-presidente da Amazonas Energia, Radyr Góes de Oliveira. A Amazônia Real teve acesso ao documento.

“Nunca tivemos respostas. Nunca disseram nem que sim, nem que não. Quando essa resposta veio, foi pra incriminar, nos chamando de ladrão de energia”, disse o cacique.

Em resposta aos questionamentos da Amazônia Real, a assessoria de imprensa da Amazonas Energia disse o seguinte: “Todo o espaço em que se encontram os invasores a ligação de energia elétrica foi efetuada de forma clandestina. Ou seja, à revelia da concessionária. O governo do Estado, através do Secretário de Segurança Pública, foi intimado para fornecer efetivo policial para apoiar a Amazonas Energia a efetuar a suspensão do consumo de energia irregular”.

A assessoria afirmou, porém, que somente o Secretário Estadual de Segurança poderá informar sobre a data do corte de energia.

Após a visita à comunidade, a Amazônia Real procurou novamente a assessoria de imprensa da Amazonas Energia para esta responder sobre os pedidos de regularização de fornecimento de energia feitos pelos indígenas. A assessoria ainda não respondeu.

Área tem condições precárias e árvores plantadas pelos índios 

Os moradores da comunidade Nações Indígenas pertencem às etnias Mura, Piratapuia, Munduruku, Macuxi, Miranha, Cocama, Tukano, Cambeba, Baré, Arara, Tikuna e Sareté-Mawé

A comunidade sofre com um ambiente insalubre, com ruas improvisadas, alagadiças e acúmulo de barros, sobretudo no período chuvoso. A maioria das casas possui apenas um ou dois cômodos. Os moradores têm como ganha-pão o rendimento de vendas de artesanato, de comidas e de produtos em feira. Outros tiram seu sustento de aposentadoria. A área é composta por três ruas, todas com nomes indígenas (Ximaniaçu, Yawaretê e Andirá).

Pedro Mura diz que os mais jovens têm dificuldade de encontrar emprego porque não possuem comprovante de residência. O outro motivo é a discriminação que sofrem por serem indígenas.  A comunidade tem aproximadamente 100 crianças que estudam o ensino fundamental em uma escola municipal localizada no bairro Tarumã.

Exceto pelas condições precárias, o bairro tem, ironicamente, muito “verde”, com árvores crescendo em quase todos os quintais. É que uma das primeiras medidas dos moradores ao ocuparem o local foi plantar árvores nativas. Em quase todos os quintais há pés de frutos como ingá, cupuaçú, pupunha, açaí, bacaba, bem como mangueiras, bananeiras, limoeiros e coqueiros.

Uma dessas casas é a do indígena da etnia Munduruku, Ângelo de Araújo Silva, 55 anos, cuja frente da moradia tem um pé de ingá e outro de cupuaçu. Ângelo vive na comunidade com a mulher e três filhos. Ele veio da aldeia Rio Canumã, na Terra Indígena Kwatá-Laranjal, e vive de venda de artesanato no Centro de Manaus. “Vim para cá porque é melhor para vender artesanato. Aqui me sinto melhor. Mas estou preocupado. Se sairmos, para onde vamos?”, indagou.

O pavor de sair do local também tem razões financeiras. Muitos moradores fizeram empréstimo para melhorar as condições de suas casas. A artesã Ângela Maria da Silva, 55, disse que aplicou o primeiro dinheiro da aposentadoria nas reformas da residência. Depois, fez um empréstimo de cinco mil para concluir a obra (que ainda está em andamento). Ela chora ao falar da possibilidade de sair.

“Me sinto muito prejudicada. Sou só eu e meus quatro filhos. Aqui é um sonho para mim. Esta casa. Se jogarem nós daqui, para onde vamos? Para beira da rua?”, disse.

Nas conversas sobre os motivos que levaram a se deslocar de suas comunidades para a cidade, os indígenas relataram que saíram em busca, principalmente, de atendimento de saúde e educação para os filhos, serviços que eles não encontram nas aldeias. Um exemplo é o próprio cacique Pedro Mura, que saiu de sua aldeia em Borba, para acompanhar a esposa em Manaus.

“Ela veio doente para se tratar. Acabamos ficando. Se tivermos que voltar para aldeia, temos que pedir autorização dos que estão lá. Eles podem querer ou não a gente de volta. E os outros, como ficam?”, disse.

O pesquisador Glademir Sales dos Santos, do grupo de pesquisa Nova Cartografia Social da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e que esteve na comunidade, diz que a ameaça de retirada dos moradores das Nações Indígenas não é apenas uma agressão moral, mas uma agressão contra a vida deles. Santos diz que o fato de morarem na cidade não tira dos indígenas o direito a uma moradia digna e à cidadania.

“No fundo, eles estão lutando por uma coisa que, historicamente sempre foi um problema, que é a moradia. Se o interesse do Estado ou Município ou o ato de governar fosse diretamente ligado às necessidades básicas das pessoas, acho que esse problema não estaria acontecendo. A questão indígena merece ser levada em consideração nas políticas públicas”, disse.

Santos também afirmou que os indígenas, assim como qualquer outra pessoa, têm direito de sair de suas aldeias e de ir e vir. “Não basta só ter um lugar para morar, mas a liberdade de sair e ir para outro lugar”, afirma.

Litígio e títulos sobrepostos

A área em questão do Loteamento Paraíso Tribunal é pleiteada tanto pela Prefeitura quanto pelo espólio de um homem de cidadania chinesa chamado Melvyn Lowe que, segundo consta no despacho do juiz Ricardo Salles, mesmo intimado, não compareceu em duas audiências que tinham o objetivo de viabilização do cumprimento da decisão de reintegração de posse. A Justiça Federal decidiu então intimar o espólio (herdeiros) de Melvyn Lowe para saber se ainda há interesse na ação ajuizada.

Segundo o defensor público Carlos Alberto de Almeida, o parecer da Secretaria de Estado de Política Fundiária informou que um estudo da situação fundiário no Loteamento Paraíso Tropical apontou sobreposição de títulos (veja documento).

Na sua decisão, o juiz Ricardo Salles diz que não discutiu a propriedade da área, mas sim a posse de um imóvel público. Ele afirmou que a reintegração de posse e a desocupação da área verde são necessárias para impedir ou minimizar a degradação do meio-ambiente.

Ricardo Salles desconsiderou a tentativa da Funai de realizar um estudo antropológico dos moradores pois, conforme o juiz, a área foi “ocupada irregularmente por grupos de pessoas, inclusive por indivíduos que afirmam ser indígenas; não se tratando de área tradicionalmente ocupada por indígenas” (o destaque em negrito foi feito pelo próprio juiz).

O juiz também determinou investigação para apurar a “eventual participação de servidores públicos federais que possam estar instigando, induzindo ou se beneficiando da prática de invasões e dos delitos dela decorrentes, e ainda daqueles que tenham auxiliado a emissão fraudulenta de Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani) a indivíduos flagrantemente não-indígenas, com isso possibilitado que estes obtenham de forma ilícita benefícios destinados exclusivamente aos silvícolas”.

O pesquisador Glademir Sales dos Santos criticou a argumentação do juiz Ricardo Salles em seu posicionamento sobre a identidade étnica dos indígenas que vivem na cidade. Para ele, esta visão apenas estigmatiza e criminaliza os indígenas.

“A argumentação do juiz demonstra uma incapacidade de conhecer os povos indígenas. Isso é uma reprodução da distância que o Direito tem em relação à realidade dos indígenas. Da não capacidade de perceber que a cultura e a identidade estão em constante construção. É um Direito ligado apenas ao passado”, disse.

Estudos feitos pelo projeto Nova Cartografia Social da Amazônia estima que em Manaus vivem indígenas de cerca de 20 etnias. Segundo o Censo de 2010 do IBGE, quatro mil pessoas em Manaus se auto-identificaram como indígenas. Já a Funai informou em 2014 para a Amazônia Real que existem 25 mil indígenas vivendo na capital amazonense. A maior população na cidade é da etnia Sateré-Mawé, com 1.500 pessoas.

 

Fonte: Por Elaíze Farias e Alberto César Araújo (fotos), da agência de notícias Amazônia Real
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