MPF recorre contra decisão que declarou inexistentes duas etnias indígenas
O Ministério Público Federal em Santarém apresentou apelação cível contra decisão da Justiça Federal de Santarém que determinou que as etnias indígenas Borari e Arapium são inexistentes. A decisão, do juiz federal Airton Aguiar Portela, assinada em dezembro de 2014, negou o direito de autorreconhecimento dos povos indígenas, decretando que ambos, há anos em conflito com madeireiros e com as terras já delimitadas pela Fundação Nacional do Índio, são formados por “falsos índios”, ribeirinhos que teriam deixado de ser índios.
Para o MPF, ao negar o autorreconhecimento e o trabalho técnico dos antropólogos que delimitaram a Terra Indígena Maró, a sentença “incide na mesma prática que tenciona historiar, qual seja, o etnocídio de povos indígenas. Trata-se de mais um expediente de esbulho renitente que vêm sofrendo tais populações desde que as cortes europeias invadiram o Brasil nos idos do século XVI. Afinal, invisibiliza etnias indígenas existentes e os insere na massa da sociedade envolvente homogênea, tal como fizeram os colonizadores”.
A sentença foi publicada algumas semanas depois de uma operação de fiscalização realizada pelo MPF, Funai e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que embargou todas as permissões para exploração madeireira que incidiam sobre a terra indígena. Na decisão, o juiz Airton Portela juntou duas ações judiciais – uma do MPF, que pedia a urgência na demarcação da terra Maró e outra de associações de trabalhadores rurais que temiam perder suas terras com a demarcação. O processo das associações, no entanto, deveria ter sido extinto, uma vez que, na publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da TI Maró, ficou claro que as terras onde moram essas comunidades ficaram fora da demarcação.
As próprias associações, com a publicação, pediram a desistência da ação, mas o juiz ignorou o pedido e determinou o seguimento do processo. O MPF informa, no recurso apresentado semana passada ao Tribunal Regional Federal da 1a Região, que o mesmo advogado que assina o processo das associações é advogado de diversos madeireiros que tiveram licenças embargadas na terra indígena. E, durante os trabalhos de delimitação, a equipe da Funai foi ameaçada de morte por madeireiros na região.
Um relatório técnico de vistoria feito pelo Ibama também comprova a presença e o interesse dos madeireiros na terra indígena, oferecendo máquinas e combustível para lideranças comunitárias em troca de apoio no processo contra os indígenas. “Há, ainda, uma tática que nos parece clara, por parte dos empresários, de desqualificação das lideranças que se opõem aos interesses dos mesmos, cuja face mais visível é a das lideranças dos auto-declarados povos indígenas. Essa tática inclui matérias, aparentemente pagas, na imprensa, onde essas lideranças são chamados de ‘falsos índios’, em discurso que é disseminado na região, e que começa a ser assumido pelas lideranças comunitárias favoráveis aos recém-chegados, além de contaminar de maneira sub-reptícia, o discurso daqueles que deveriam tratar a questão com o máximo de distanciamento possível”, diz o relatório juntado pelo MPF.
O procurador Camões Boaventura, responsável pelo caso, chama atenção ainda para as impropriedades científicas cometidas na sentença. Ao discorrer sobre identidade, tradicionalidade e outras questões típicas da ciência antropológica, o juiz cita, fora de contexto, antropólogos brasileiros de renome internacional, como Eduardo Viveiros de Castro. Na verdade, a citação utilizada pelo juiz foi retirada de reportagem da revista Veja, já denunciada pelo próprio antropólogo e pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) como fraudulenta.
A pedido do MPF, Eduardo Viveiros de Castro emitiu parecer sobre a sentença em que refuta as considerações antropológicas do juiz e repudia o uso distorcido de seu pensamento. A antropóloga Jane Beltrão também emitiu parecer contra a sentença, assim como Raphael Frederico Acioli, analista do MPF. Além disso, o professor Gilberto Lopes Rodrigues, da Universidade Federal do Oeste do Pará, ofereceu nota técnica para embasar o recurso judicial.
Para o MPF, a sentença contribui para o esbulho de que os povos indígenas são vítimas há séculos, copiando métodos muito conhecidos desde o período colonial, de retirada de direitos e negação de identidades culturais indígenas. “É nesse contexto que os povos Borari e Arapium, muito embora estejam habitando a área da TI Maró há séculos, somente buscaram empunhar a bandeira de suas identidades indígenas. Assim, neste momento, não houve conversão de ribeirinhos em indígenas, como quer fazer crer o juiz prolator da sentença. O que houve, repita-se, foi um legítimo processo de reavivamento de uma identidade coletiva específica, sempre existente, mas que dormitava face os constantes processos de opressão e sonegação de direitos”, diz o recurso do MPF.
O MPF pede que, ao reconhecer o recurso, o tribunal determine a suspensão das permissões e proíba a circulação de madeireiros na área indígena, assim como o prosseguimento da demarcação. A apelação deverá ser julgada no TRF1, em Brasília.
Processos nº 2010.3902.000249-0 / 2091-80.2010.4.01.3902
Íntegra da sentença: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/arquivos/Sentenca_TI_Maro.pdf
Íntegra da apelação: http://www.prpa.mpf.mp.br/news/2015/arquivos/Apelacao_MPF_TI_Maro.pdf