11/12/2014

Livro sobre genocídio Waimiri-Atroari é lançado e respalda trabalho da CNV do Amazonas

A editora Curt Nimuendajú acaba de lançar mais uma obra que já nasce clássica para a historicidade Ameríndia e chega aos leitores cumprindo dois papeis: o primeiro de passar a limpo a história recente dos povos indígenas; o segundo de denunciar um dos mais atrozes massacres promovidos pela ditadura militar (1964-1985): o assassinato de 2 mil Waimiri-Atroari, entre 1972 e 1977, para fins da abertura da BR-174, ligação entre Manaus (AM) e Boa Vista (RR).

No escopo dos trabalhos do Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas, A Ditadura Militar e o Genocídio do Povo Waimiri-Atroari: por que kamña matou kiña é fruto da pesquisa que fundamentou o 1º Relatório deste comitê. Tal como em As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, o livro relata em detalhes, com base em farta documentação e literatura indigenista, como os militares massacraram aldeias inteiras utilizando bombas químicas, com o mesmo potencial devastador do napalm utilizado pelo Exército estadunidense no Vietnã, metralhadoras e ataques aéreos impiedosos.

O livro, portanto, cumpre um outro papel: de não deixar cai no esquecimento o genocídio contra os Waimiri-Atroari no contexto de estabelecimento da Comissão Nacional da Verdade (CNV), pela Lei 12528, de 2011, que pretende investigar crimes cometidos contra os direitos humanos, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, e, conforme declarou recentemente seu presidente, Pedro Dallari, pedir a punição de mais de 100 militares responsáveis por atentados, assassinatos, torturas, desaparecimentos e toda sorte de arbítrio fundamentado em poderes estabelecidos por golpes contra a democracia.

Então, por que kamña matou kiña A pergunta era comumente ouvida pelos indigenistas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Egydio e Doroti Schwade, durante o processo de alfabetização dos Waimiri-Atroari em sua língua materna, sobreviventes do massacre. Narrações, desenhos e histórias terríveis, de assassinatos, correrias, desaparecimentos e mortes, com aviões jogando bombas sobre as aldeia, descrevendo como o genocídio ocorreu, chegavam ao casal indigenista que passou a investigar o que havia ocorrido e a registrar tudo aquilo que os Waimiri lhes relatavam.

A obra é, antes de tudo, um apanhado articulado das histórias dos próprios Waimiri. “Civilizado matou com bomba”, escreveu Panaxi ao lado de um dos desenhos reveladores do massacre. O waimiri ainda identificou pelo nome os assassinados: Sere, Podanî, Mani, Priwixi, Akamamî, Txire, Tarpiya. Assim, numa série impressionante, outros e mais outros Waimiri desenharam e escreveram nomes de mortos, compondo uma Guernica amazônica – referência ao quadro de Pablo Picasso que retrata o povo da cidade que concede nome à obra massacrado pelas tropas de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola.

Todos estes relatos colhidos por Egydio e Doroti durante o processo de alfabetização dos Waimiri estão no livro e, portanto, no relatório da comissão. O livro demonstra como tal massacre ocorreu de forma planejada, como política de Estado, comandada por generais. Nas palavras do jornalista e ex-editor do jornal Porantim, onde os primeiros relatos deste genocídio foram publicados, José Ribamar Bessa Freire, que assina o prefácio do livro, trata-se da cartilha de Rondon no trato com os povos indígenas, mas pervertida e ao contrário: “Matar ainda que não seja preciso; morrer nunca”. Empresas de jagunços subordinadas ao Comando Militar da Amazônia, especializados em “limpar a floresta”, faziam também o trabalho sujo, mas tudo com o consentimento dos militares.

No lugar das aldeias devastadas, mineradoras, usinas hidrelétricas, estradas. A Mineração Taboca, por exemplo, que se instalou sobre aldeias Waimiri destroçadas pelo fogo militar entre 1979 e 1988, negou e abafou que, mesmo passado alguns anos do genocídio, outros indígenas ainda estivessem circulando pelo local. Fato é que em 1985 estes indígenas, então desconhecidos, apareceram no canteiro de obras da hidrelétrica do Pitinga. Poucos dias depois o motorista de uma carreta os avistou: seis homens e duas mulheres. Depois disso nunca mais foram vistos. Todavia, a razão é aparente e comprovada no livro: a Sacopã, empresa de jagunços comandada por dois ex-oficiais do Exército e um então da ativa, assassinou estes indígenas – que seguiram desconhecidos, mas não esquecidos.

A obra desvela a arqueologia da violência de um grupo indígena massacrado que na redemocratização foi cercado pelo governo brasileiro. Em 2013, durante audiência com integrantes do povo Munduruku, executivos da Eletrobrás, numa vã tentativa de convencer os indígenas do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, afirmaram que a ação junto aos Waimiri por conta da usina de Balbina, construída ainda na ditadura, só trouxe benefícios para eles. A essa tentativa de esconder o passado sangrento, a família Schwade foi obrigada a se retirar da comunidade, por ordem do então presidente da Funai, Romero Jucá, político de Roraima subserviente e beneficiário das vilanias e devastações causadas por empresas de mineração.

O conteúdo resvala na linguagem etnográfica e etnológica, instrumentos da antropologia, para trazer aos leitores um retrato mais próximo o possível da visão dos próprio Waimiri do massacre. Ao contrário do que é mais comum de se ouvir país afora, os povos indígenas foram vítimas diretas da ditadura militar e contam tantos mortos quanto os desaparecidos ou assassinados políticos nas guerrilhas urbanas e rurais. Aos Waimiri se juntam ainda outros povos vítimas do autoritarismo. Lideranças indígenas e suas assembleias dispersas, proibidas. Os reformatórios Krenak e Guarani, onde havia tortura e morte de indígenas. A obra contribui para que o Brasil de hoje repare esses crimes garantindo a terra tradicional e o pleno direito de vida a estes povos.  

  

 

Fonte: Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação - Cimi
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