28/10/2014

No Mato Grosso do Sul, povos indígenas se unificam em defesa da TI Guyraroká e de suas retomadas

Guyraroká traduzido para o português significa algo como “O Terreiro dos Pássaros” e segundo os indígenas Guarani-Kaiowá, era neste local que milhares de tipos de aves repousavam de suas migrações voluntárias colorindo as manhãs e os poentes com todos os tipos de cores e formas. Assim como os filhos da terra, com os desmatamentos e ocupações recentes – feitos pelos Karai (não indígenas) – do território localizado nas imediações de Dourados, os passarinhos deixaram o local em fuga tendo que iniciar uma dolorosa onda de migrações forçadas.

Na manhã da última quinta-feira, dia 23, após muitas curvas terem sido viradas pela história, indígenas das etnias Guarani, Kaiowá, Terena e Kinikinau, vindos dos quatro cantos do estado do Mato Grosso do Sul, reuniram-se no solo sagrado da aldeia de Guyraroká para a realização do Conselho da Grande Aty Guasu. (Leia aqui a carta do encontro)

Prestando solidariedade as famílias da aldeia que por decisão de parte do Supremo Tribunal Federal (STF), sofrem possibilidade de novo despejo forçado, os representantes dos quatro povos uniram suas vozes para dizer ao Estado e governo brasileiro que os povos indígenas do Mato Grosso do Sul estão articulados e prontos para resistir aos ataques a seus direitos, estando decididos, caso necessário, a morrer coletivamente em defesa de seus territórios ancestrais.

Há pouco mais de uma semana, uma delegação representada por mais de 40 lideranças Guarani-Kaiowá retornaram de Brasília. Na Capital Federal os indígenas manifestaram ao STF a dor que seu povo sente pela decisão que a Segunda Turma do órgão tomou em relação ao território de Guyraroká. A decisão, por se tratar de um retrocesso dentro do procedimento demarcatório há muito em curso em relação a esta terra indígena, é temida pelos povos por significar um precedente fundamental aberto junto aos interesses ruralistas. Em Brasília ainda foi cobrado do Governo Federal e dos órgãos ligados aos Direitos Humanos a garantia dos direitos constitucionais e medidas que garantam a segurança física e cultural dos povos originários frente aos ataques executados por pistoleiros a céu aberto em qualquer momento do dia.

Já em terras sul-mato-grossenses, os protestos Guarani-Kaiowá ganharam corpo e passaram a contar com o apoio concreto dos demais povos do estado.  Chamados para participar da Reunião do Grande Conselho Guarani-Kaiowá da Aty Guasu, representantes Terena e Kinikinau compareceram sem titubear na reunião considerada histórica pelas lideranças dos quatro povos participantes.

Junto ao Conselho da Aty Guasu, os indígenas concluíram que as forças ruralistas que influenciaram os poderes Legislativo e Executivo a praticar uma série de ataques aos direitos dos povos originários ao longo dos dois últimos anos, passaram agora a exercer influência também sobre parte do poder Judiciário. Fato que ocorre no justo momento em que, após as eleições, a bancada ruralista no Congresso Nacional se fortalece. Congresso este que possui hoje a composição mais conservadora desde os tempos da ditadura militar.

 Foi unânime entre os povos presentes que Guyraroká é o exemplo mais explícito desta nova movimentação. A Terra Indígena passou a ser uma espécie de chave para o futuro de todas as demarcações no Brasil. Frente ao fato, os indígenas firmaram o compromisso de que o direito constitucional que garante a permanência da comunidade indígena em seu território ancestral deve ser defendido a qualquer custo.

Quem explica é Ava Jeguaka Rendy’Ju do povo Kaiowá: “Não é apenas em solidariedade à espera de 90 anos de seu Tito (rezador de Guyraroká) em poder estar em paz com sua terra o motivo de estarmos aqui. Estamos aqui porque neste momento Guyraroká é a Tekohá (aldeia/lugar onde se é) de todos os povos indígenas do Brasil. Estão usando o Marco Temporal de má fé contra nosso povo, algo que só serviu para Raposa Serra do Sol. Os ruralistas estão aos poucos conseguindo o que buscaram todos estes anos, montar estratégias para acabar com nosso povo. O que machuca é que estão tendo apoio de quem deveria garantir nosso direito. Existem boas decisões do STF, mas esta foi muito ruim, ela prejudica a todas as comunidades. Mas nós não tememos, porque agora nossos parentes Terena e Kinikinau estão aqui. Nós não temos medo, Seguimos afirmando o que dissemos em Brasília, resistiremos até a morte aos despejos e à violência.”

A decisão da Segunda Turma do Supremo em relação à Guyraroká é baseada na condicionante do Marco Temporal, que previu que o reconhecimento do direito dos indígenas a terras que tradicionalmente ocupam estaria condicionado a sua habitação ao tempo da promulgação da Constituição Federal de 1988. Tal condicionante foi utilizada no caso emblemático da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, porém o voto de Luiz Roberto Barrosso, relator dos sete embargos de declaração, deixou claro que tal condicionante não possui caráter vinculante para Juízes ou tribunais. Desta forma, as condicionantes não devem ser parâmetro para exames de outros processos relativos a demarcações de terras indígenas diversas. Na ocasião, o voto de Barroso foi acatado por unanimidade.

Na prática, porém, o resultado foi bem diferente. Os indígenas avaliaram durante o decorrer do encontro que, em efeito cascata, enquanto o Executivo e o Legislativo paralisaram as demarcações, as comarcas locais têm executado despejos e atacado os direitos constitucionais dos povos com base, em essência, nessas mesmas condicionantes. Kurussu Amba, Terra Indígena Kaiowá localizada no município de Coronel Sapucaia é um exemplo claro. Após dez anos esperando a demarcação de seu território ancestral, sujeitos a condições desumanas, a comunidade retomou uma pequena parcela de sua Terra para poder plantar e combater a fome e está na iminência de sofrer procedimento de reintegração de posse. No texto da decisão emitida pela juíza é citado categoricamente o Marco Temporal como premissa fundamental da decisão.

Longe de ser exclusividade do povo Guarani-Kaiowá, os ataques sofridos pelos demais povos foram socializados e analisados pelos participantes do encontro. No caso dos Terena a atenção recaiu sobre os processos de paralisação e ordens de despejo referentes em especial as aldeias de Mãe Terra e Buriti, enquanto o povo Kinikinau relatou a dificuldade e a dor de viver alijado de seus territórios tradicionais.

Os indígenas frisaram que em seu entendimento, uma política de retrocessos aos direitos originários vem há tempos sendo orquestrada no interior da própria Advocacia Geral da União (AGU), pela qual, em partes baseadas na decisão de 2009 referente à Raposa Serra do Sol, foi redigida a portaria 303 que restringe consideravelmente os direitos indígenas.

Por fim, foi analisado que o efeito final destas medidas que afetam os procedimentos demarcatórios é sentido na pele por milhares de indígenas em suas aldeias. Demonstrações de violência direta executadas diariamente contra os povos indígenas se intensificam a cada nova decisão gerando um clima de tragédia anunciada para os povos indígenas, não só no Mato Grosso do Sul, mas em todo território brasileiro.

Os olhares e palavras de compromisso e solidariedade mútua entre os representantes dos povos Guarani, Kaiowá, Terena e Kinikinau semearam por fim um processo de resistência geral dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul que indubitavelmente ecoou e encontrou respaldo no seio das comunidades indígenas espalhadas por todo o estado.

Em documento final os indígenas reforçam que sua decisão é de resistir aos desmontes de seus direitos, e que estão dispostos a morrer se a decisão do Governo Federal e da Justiça for de manter sua postura de aproximação com o agronegócio. “Esta é nossa resposta às cartas e promessas dos presidenciáveis” Reforça a liderança Daniel Lemes Vasques, da aldeia Kaiowá de Guaiviry, “Iremos resistir a cada processo de reintegração e aos ataques que cada um destes povos está sofrendo, mobilizando os quatro povos e resistindo diretamente. Em Guyraroká, Kurussu Amba, Mãe Terra, onde for estaremos lá. não queremos Guerra, mas já estamos sendo massacrados”, diz Daniel, “a decisão é do Governo Federal”.

É chegado o tempo de cessarem as migrações forçadas. É chegado o tempo de que os povos indígenas deixem de ser exilados em seus próprios territórios. Quem sabe assim os pássaros voltem a colorir as manhãs e os poentes de Guyraroká e de todos os Terreiros de mata que certamente renascerão. A partir desta Aty Guasu a resistência dos quatro povos passou a colorir esperança para centenas de aldeias palmilhadas por cada canto deste chão. 

Fonte: Matias Benno, Cimi regional MS
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