Juiz Federal concede reintegração a fazendeiro por considerar “cultivo de plantações” do povo Terena “esbulho possessório”
Cerca de 78 famílias do povo Terena da aldeia Mãe Terra, que integra a Terra Indígena Cachoeirinha, município de Miranda (MS), estão sob risco iminente de despejo de área reconhecida pelo Estado como de posse permanente dos indígenas. A Justiça Federal considerou “flagrante” ato de “esbulho possessório”, e de intimidação, o cultivo de plantações, por parte dos Terena, em fazenda de 600 hectares localizada no perímetro declarado indígena desde 2007.
Mesmo com recursos liberados para o pagamento de benfeitorias, e com o avançado estágio de demarcação do território, o juiz Federal Renato Toniasso, de Campo Grande, capital do estado, decidiu pela reintegração de posse ao proprietário do imóvel rural Fazenda Santa Vitória, cuja área abrange a Mãe Terra. O fazendeiro João Proença de Queiroz se nega a receber a indenização da União e tenta, a todo custo, se manter na área.
Esbulho possessório é considerado crime de usurpação – quando alguém invade terreno alheio com violência à pessoa, grave ameaça. O que mais surpreendeu os indígenas foram as justificativas do juiz em sua decisão, ao argumentar que o fazendeiro estava sendo ameaçado com o esbulho por intermédio das plantações dos Terena: “Estariam (os indígenas) adotando atitudes intimidatórias em relação a si (Queiroz) e aos seus familiares. Nesse sentido, teriam lhe comunicado que iriam iniciar o cultivo de plantações. Argui que, diante do flagrante esbulho possessório ali ocorrido, não lhe resta alternativa senão buscar proteção jurisdicional”.
Nenhuma investigação foi aberta para se apurar as denúncias feitas pelo fazendeiro. Para Lindomar Terena, morador da Mãe Terra, o juiz foi atrás de boatos. “A casa grande fica distante da área onde a aldeia está instalada. Nunca vimos a família dele. Agora é muito estranho um juiz federal dar uma decisão sem nenhuma prova, com boatos inventados por alguém que já não tem mais argumentos. O dinheiro da indenização, pago pela União, está lá para ele pegar”, afirma.
Lindomar rechaça as acusações lembrando que são os Terena alvos de ameaças e atentados. Em todos os casos não houve punição. Em novembro de 2013, por exemplo, um ônibus escolar foi atacado e incendiado. “Basta um fazendeiro inventar qualquer coisa que dão reintegração, criminalizam lideranças. Tudo rápido, sem investigar. Agora quando um índio é assassinado ou ameaçado a Justiça não age rápido; e quando age, desconfia do que dizemos. Estamos ali há quase 10 anos. Não há nenhuma acusação contra a gente”.
Em sua decisão, Toniasso constrói elo entre a intimidação alegada por Queiroz com a agricultura dos Terena. “Não precisamos intimidar ninguém para plantar. Foi por isso que lutamos: para termos nossas terras e alimentar nossas famílias. Antes ali era para engordar boi, agora alimenta pessoas, abriga uma comunidade ligada com a terra. Plantamos de tudo, criamos animais. Tudo de forma coletiva”, explica Lindomar. A liderança salienta que, inclusive, a terra está com os procedimentos demarcatórios em fase final para a homologação definitiva. Por isso a decisão é ainda mais surpreendente.
Toniasso optou por uma posição civilista: “O fato de o processo administrativo de demarcação e ampliação da Terra Indígena Cachoeirinha estar em fase adiantada (publicação da Portaria Ministerial nº. 791, em 20/04/2007) não permite que os índios tomem a posse da área demarcada, antes do seu desfecho, o que se dará apenas mediante decreto homologatório do Presidente da República, nos termos do artigo 5º, do Decreto nº. 1.775/96”.
Porém, conforme o jurista Dalmo Dallari, a discussão de direitos indígenas não se baseia no Código Civil, mas no direito constitucional. “O direito originário é imprescritível e mais: demarcação é ato declaratório e não constitutivo (as terras já são dos índios, o que falta é traçar seus limites) e este é o objetivo do processo administrativo, conforme Dallari. Temos muitas decisões nesse sentido, sobre a posse indígena”, explica Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Tal argumento também serve para responder questão suscitada pelo juiz na decisão: “Então é de se perguntar se os chamados "fazendeiros" entenderem que terras no interior de alguma aldeia lhes pertencem, poderão eles, por força própria, retomar essas áreas?”. Ou seja, não. Enquanto isso, atentados como os sofridos por Paulino Terena, na foto, seguem impunes.
TRF-3 negou outro pedido de reintegração
Em 2005, logo após a retomada da aldeia Mãe Terra pelos Terena, Queiroz entrou com pedido liminar de reintegração da área. O Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região, com sede em São Paulo, indeferiu o pleito do fazendeiro. Desde então a aldeia não foi mais importunada. A aldeia Mãe Terra ganhou escola, saneamento básico, posto de saúde e as plantações passaram a garantir alimentação farta. Em 19 de abril de 2007, a Portaria 791 demarcou a Terra Indígena Cachoeirinha com 26 mil hectares. A União começou então a indenizar as 54 propriedades localizadas neste perímetro, entre elas a Fazenda Santa Vitória, incidente na Mãe Terra.
No entanto, Queiroz havia perdido na Justiça 600 hectares do imóvel rural, de um total de 1.200, num litígio envolvendo outro fazendeiro. O ganhador da ação judicial não perdeu tempo e pegou a indenização de R$ 700 mil estipulada e paga pela União. Com isso, a comunidade pode se espalhar nessa área e estruturar a aldeia, antes improvisada. Os outros 600 hectares seguiram nas mãos de Queiroz, que se nega – até o momento – a acessar os valores destinados às benfeitorias de sua antiga propriedade.
Os 7 mil Terena que vivem na Terra Indígena Cachoeirinha ocupam pouco mais de 2.600 hectares, cerca de 7,22% do total demarcado. Este perímetro habitado corresponde à reserva destinada aos Terena pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na primeira metade do século XX. “O espaço é pequeno. Se vive confinado. Tem muito terena vivendo nas periferias das cidades, com dificuldades. Então ele (Queiroz) pode inventar o que for, ou qualquer outro fazendeiro, que seguiremos lutando pelas nossas vidas; porque só nossa terra pode nos dar vida”, salienta Lindomar.