02/10/2014

Boletim Mundo: Lideranças Guarani Kaiowá pedem nulidade de decisão que os impedem de ocupar território tradicional

Por Luana Luizy,

de Brasília (DF)

Inconformados com a decisão da 2° Turma da Corte do Supremo Tribunal Federal (STF) que anula o reconhecimento tradicional da Terra Indígena, Guyraroká, quatro lideranças indígenas Guarani Kaiowá compareceram em Brasília esta semana reivindicando a nulidade da decisão que os impedem de ocupar o território tradicional.

O Ministério da Justiça, baseado em estudos da Funai reconheceu como território tradicional a TI Guyraroká, ainda sim, o posseiro da região pediu a nulidade dos atos no MJ. O Superior Tribunal Judicial (STJ) considerou inadequada a ação movida pelo fazendeiro, seguido pelo relator do processo no Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandoswski. No entanto, o ministro Gilmar Mendes contestou a decisão, acompanhado pelos ministros Celso de Mello e Carmem Lúcia.

Portanto, com três votos a um declararam que o particular tinha o direito sobre a terra, mas em nenhum momento a comunidade indígena foi ouvida durante o processo. “Na minha visão, o STF agiu de má fé, pois caso contrário teria respeitado a Constituição, mas não reconheceram a situação dos Guarani Kaiowá. Antigamente quem expulsava índio era a ditadura militar, mas agora é a Justiça Federal, a Polícia Federal. Nós vivemos que nem animal, existe lei mas não ta cumprindo. Não estão nos levando a sério”, afirma Adalto Barbosa de Almeida, indígena Guarani Kaiowá e integrante da Aty Guasu (Grande Assembleia Guarani Kaiowá).

Para o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto, a decisão deve ser revogada. “Existe uma súmula no STF, a 631, que determina a comunidade envolvida ser chamada para discutir o processo quando tem direito subjetivo. Então esse é o entendimento prioritário pelos tribunais. Em nenhum momento a comunidade foi citada para defender seus direitos no processo. Então peticionamos a nulidade de todos os atos, inclusive a sentença do STF que não ouviu a comunidade para tomar os devidos cuidados processuais”.

Expulsos da área em 1930 quando o Estado brasileiro começou a ceder para particulares a terra sagrado Kaiowá, os indígenas vagaram, mas nunca deixaram de ter vínculo espiritual com seu tekoha, o território tradicional Guarani Kaiowá, voltando mais tarde. Em 1990, um grupo de 30 famílias que viviam confinadas na reserva Tey’kue, em Caarapó, conseguiu ocupar 60 hectares, dali foram expulsos e permaneceram quatro anos na beira da estrada, até que conseguiram voltar para seu território tradicional.  .

Estudos antropológicos comprovaram a tradicionalidade de Guyraroká, os 12 mil hectares e uma portaria declaratória foi publicada pelo Ministério da Justiça, em 2009. Confinados em uma pequena porção do território, os indígenas vivem hoje em barracões de lona e sofrem com a falta de assistência na área da saúde, dificuldades para plantar, além das constantes ameaças e mortes promovidas por ações de fazendeiros locais.

“Até 1930 a gente vivia livremente na mata, no chão, pelado, aí veio uma resposta que ia haver guerra contra nós. E o General Rondon ia juntar todos indígenas pra não matar índio. Fomos levados, caminhando, mais de 1.500 índios, para Guykué, mas muitos ficaram. Antes ainda da primeira viagem, morreram 180 índios de diarreia, sarampo, febre amarela e tosse, mas agora enquanto estou vivo luto pra deixar herança pro meu povo indígena, que é a terra”, conta o cacique Tito Vilhalva, pai de Ambrósio Vilhalva, indígena Guarani Kaiowá morto em 2013.

Em um contexto de confinamento de reservas, altas taxas de suicídio e alcoolismo os indígenas Guarani Kaiowá estão expostos e é nesse meio de violência que Ambrósio, um dos protagonistas do filme Terra Vermelha foi morto, o indígena também sofria de alcoolismo.


Vídeo da TV Justiça sobre o protocolo no STF do pedido de nulidade:


 

Confira aqui a carta do cacique Aldeia Guyraroká ao ministro do Supremo Tribunal, Gilmar Mendes:

 

Senhor Ministro,

 

Sou TITO VILHALVA, cacique da aldeia GUYRAROKÁ do povo GUARANI KAIOWÁ, lugar onde nasci e onde meus pais e milhares de parentes estão enterrados. Meus documentos datam de 1930, embora nasci no ano de 1920. Minha esposa é a Sra. MIGUELA ALMEIDA, também nascida em GUYRAROKÁ. Nós vivenciamos e assistimos tudo o que aconteceu com o povo GUARANI KAIOWÁ.

Vivemos felizes em GUYRAROKÁ, nas matas e do nosso modo tradicional, até o início da década de 1930 e não tinha homem branco, só índio. Até que chegaram os soldados e avisaram que ia ter guerra se nós não saíssemos de nossas aldeias. Fomos levados, caminhando, mais de 1.500 índios, para GUYKUÉ (distante aproximadamente 80 km), mas muitos ficaram. Antes ainda da primeira viagem, morreram 180 índios de diarreia, sarampo, febre amarela e tosse.

Em 1936 ou 1937, retornamos, também caminhando, para GUYRAROKÁ, mais de 250 índios, pois fomos avisados que os brancos queriam ficar com nossas terras. Chegando em GUYRAROKÁ, ao entardecer, os brancos começaram a atirar e só pararam no meio da noite. Três mulheres morreram naquela noite e o índio SANTIAGO morreu dias depois, pois a bala acertou uma de suas pernas. Nosso cacique FLORIANO fez reunião e disse que desconfiava que o fazendeiro queria matar todos e não havia como ficar. Saímos a noite caminhando para GUYKUÉ. Quem mandou atirar foi ANTONIO ALBUQUERQUE, que se apresentou como tenente e disse que comprou todas as nossas terras.

No início da década de 1940, mais uma vez, decidimos voltar para GUYRAROKÁ, caminhando, entre 70 e 80 índios, com nossas crianças e tudo o que possuíamos. Mas logo chegou o fazendeiro JORGE que disse que comprou parte das nossas terras, que haviam sido loteadas em pedaços. O fazendeiro JORGE, que veio de São Paulo, mandou nós sair da área pois iria derrubar o mato e criar boi, mas deixou ficar na beira do córrego PASSO FUNDO, dentro de GUYRAROKÁ.Nessa época morreram 27 índios de doenças (febre amarela, sarampo, diarreia e gripe) e foram enterrados próximo ao córrego. No mesmo período foi morto meu cunhado SILVÉRIO, com um tiro nas costas enquanto pescava na beira do córrego PASSO FUNDO. Ficamos lá mais ou menos até 1947, trabalhando nas fazendas (roça e gado). Tivemos que sair porque a terra foi vendida para outro fazendeiro de São Paulo, que não queria índios dentro da fazenda. Os índios ficaram espalhados, trabalhando nas fazendas.

Em 1998 retornamos para GUYRAROKÁ com 234 índios, sempre caminhando e carregando nossas galinhas, cachorros e pertences. O fazendeiro JOSÉ TEIXEIRA disse que a fazenda era dele e em seguida colocou todos os índios em caminhões e levou para GUYKUÉ. O fazendeiro disse que se fosse terra indígena devolveria a fazenda e deu prazo de 90 dias para dar uma resposta, pois iria consultar antropólogo e negociar com a FUNAI.

Noventa dias após retornamos caminhando paraGUYRAROKÁ com 233 índios. Entramos na fazenda, mas o fazendeiro trouxe polícia e pistoleiro armados. Deram muito tiro com bala de borracha. Muitos índios foram feridos, inclusive crianças. Tivemos que sair, pegamos nossas galinhas, cachorros e o que foi possível e montamos acampamento na beira da estrada, em APUIQUÍ, próximo da fazenda, em frente a uma igreja. Ficamos dois anos sendo ameaçados pelos fazendeiros que davam tirosa noite. Bebíamos água de pipas e não tinham como plantar. Ficamos doentes e com fome.

Decidimos entrar na fazenda do SAULO, dentro da aldeia GUYRAROKÁ, nossa aldeia. O fazendeiro deixou ficar, disse que não vai contratar pistoleiro e delimitou uma área para a comunidade. A FUNAI abriu poço para puxar água e queria ligar energia. Porém, os fazendeiros AVELINO e JOSÉ TEIXEIRA não permitiram.

Vivemos sem saúde, pois não recebemos visitas de médico. Os fazendeiros ameaçam não deixar nossas crianças estudar na escola Padre Anchieta que fica fora da Terra Indígena GUYRAROKÁ.

Eu já estou com idade avançada e sei que não vou durar muito tempo. Mas antes de morrer quero conversar com VOSSA EXCELÊNCIA e contar tudo o que sei e vivenciei. Quero deixar nossa terra ao meu povo e ser enterrado dentro da nossa aldeia GUYRAROKÁ, terra dos índios GUARANI KAIOWÁ.

Brasília, 2 de outubro de 2014.

 

Cacique da Aldeia Guyraroká

Fonte: Assessoria de Comunicação-Cimi
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