Povos indígenas e quilombolas: a mesma luta diante dos mesmos inimigos
Augusta Eulália Ferreira*
Para muitos pode parecer força de expressão afirmar que os inimigos dos povos indígenas são os mesmos dos quilombolas – e pode-se dizer também de outras comunidades tradicionais. Contudo, os fatos evidenciam que a realidade, infelizmente, é esta.
O Brasil já há alguns anos, e cada vez mais, vem intensificando aspectos que caracterizaram o processo colonial primeiro, aquele iniciado ainda no século XVI. Entre estes aspectos destaca-se, em grande vulto, a reprimarização da economia. Ou seja, semelhante àquela aurora das primeiras invasões, hoje este continente destaca-se pela exportação de matérias primas. Da madeira e do açúcar, produtos principais dos saques iniciais, ampliou-se absurdamente a variedade de mercadorias exploradas e exportadas atualmente, como, por exemplo, os grãos, carnes e minérios. Na cadeia de produção, a exploração do ser humano e da natureza entram também como commodities disfarçadas nesta fase neocolonial.
É justamente no literal lastro dessa exploração, os territórios invadidos, que se instalam os inimigos comuns de indígenas e quilombolas. Sabe-se que para a produção em larga escala, os monocultivos de base exportadora utilizam porções quilométricas dos solos brasileiros. Estes, não podemos esquecer, estão concentrados nas mãos de menos de 3% de proprietários que dominam mais de 60% das terras agricultáveis.
Considerando que na essência do latifúndio e dos monocultivos estão a superexploração dos solos, o uso intensivo de venenos, a quebra do equilíbrio da natureza pelo emprego exagerado de maquinários e químicos, a “necessidade” de novas áreas constantemente é imposta. É aqui que entram, ou saem, os povos indígenas e as comunidades quilombolas.
Para garantir a contínua expansão das terras e seus outros interesses, setores como o agronegócio e as empresas multinacionais vinculadas a ele vêm se fortalecendo de diversas maneiras e se confrontando aos direitos dos povos. Neste sentido, constata-se uma crescente articulação contra as garantias constitucionais, a duras penas conquistadas pelos povos indígenas e quilombolas. Destaca-se o amplo poder destes setores no Congresso Nacional e suas iniciativas para alterar ou criar leis que significam um verdadeiro retrocesso nos direitos territoriais. Da Câmara dos Deputados emanam iniciativas absurdas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215 – e outras onze à ela apensadas -, que transfere do Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcação de terras indígenas e titulação de terras quilombolas, além da criação de unidades de conservação ambiental. A bancada ruralista, minoria social brasileira, desproporcionalmente super-representada no Congresso, legisla em causa própria, ao avançar ofensivamente sobre as históricas conquistas dos movimentos indígena e quilombola.
Além dos problemas acima expostos o poder Executivo, que tem a obrigação constitucional de efetivar o direito territorial dessas populações, soma-se ao rol dos inimigos dos povos. Um dos fatos que mais explicita essa postura do Executivo é a efetiva paralisação dos processos de demarcação das terras indígenas e titulação das terras quilombolas. Apesar de uma homologação ter sido assinada, nenhum procedimento demarcatório de terra indígena foi concluído em 2013. Desse modo, a média anual de terras demarcadas da presidente da República Dilma Rousseff diminuiu para 3,6, a pior média desde o fim da ditadura militar, consolidando-a como a chefe de Estado que menos demarcou terras indígenas na história recente do país. Muito possivelmente assim será também quanto às terras quilombolas.
Segundo a pesquisadora Rosa Elizabeth Marinho, da Universidade Federal do Pará (UFPA), não há nenhuma disposição do governo em efetivar este direito às comunidades. Ela afirma que esta paralisação nas titulações visa atender aos interesses do agronegócio. Ou seja, a subserviência governamental também se expressa quando o assunto é o direito quilombola. Dados de uma recente pesquisa divulgada pela Comissão Pró-índio, de São Paulo, indicam que neste ano não foi titulada nenhuma terra quilombola no Brasil. A mesma organização divulgou que em 2013 apenas quatro terras quilombolas foram tituladas, sendo que três receberam títulos parciais. Esta parece ser uma orientação do governo também para as terras indígenas, visto que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em suas pseudo negociações, reduziu terras já reconhecidas pelo órgão indigenista governamental, como as dos Guarani, no Rio Grande do Sul, e dos Xetá, no Paraná.
O que não se reduz são os benefícios concedidos pelo governo ao agronegócio. De R$ 136 bilhões, em 2013, os recurso para o Plano Safra aumentaram para R$ 156 bilhões em 2014/15. Parece, portanto, não ser coincidência o fato de que este foi o setor que mais doou, até o momento, para a campanha à reeleição da presidente Dilma Rouseff, com destaque para a empresa JBS, que doou R$ 5 dos R$ 6,35 milhões repassados pelo setor , segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Tudo indica que, como essas “trocas de gentilezas” tendem a se manter, aos povos indígenas e quilombolas restará intensificar os laços de união e as lutas conjuntas, como vêm acontecendo em diversas regiões do Brasil.
Refazendo, reavivando ou intensificando as antigas alianças, como já ocorreu no passado quando se uniram para enfrentar a escravidão colonial, indígenas e quilombolas tecem as novas redes da história. “Com nossa cantoria e o toque do tambor, no gingado da nossa dança, reafirmamos nossa identidade quilombola. Com nossos maracás e nossos pés batendo forte no chão, anunciamos que somos povos indígenas desta terra e é nosso esse chão. Compartilhamos nossa alegria de viver, denunciamos as injustiças e anunciamos um novo tempo de luta e resistência”, afirmam conjuntamente[1].
*Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
[1] Encontro de Povos Indígenas e Quilombolas, Maranhão, novembro de 2013