Usina sucroalcooleira instalada em TI ameaça queimar palha da cana para destruir acampamento Apyka’i
Por Carolina Fasolo,
de Brasília (DF)
“O projeto é que a Usina São Fernando torne-se a maior do país num prazo de 10 anos”, disse nesse segunda-feira (28) ao jornal sul mato-grossense Correio do Estado um funcionário da Prefeitura de Dourados que acompanhou a venda de 49% da empresa de açúcar e álcool para um grupo econômico de Dubai, Emirados Árabes Unidos, pela quantia de R$ 2 bilhões.
Enquanto o dinheiro da transação bilionária é aplicado na expansão da usina que planta em terras indígenas, quinze famílias Guarani/Kaiowá que reivindicam o Tekoha Apyka’i, onde incide a fazenda Serrana – uma das principais arrendadoras da usina-, vivem dias de tensão desde sábado (26) quando um funcionário da São Fernando entrou no acampamento e anunciou que a usina queimaria a palha da cana-de-açúcar para destruir os barracos dos indígenas, que estão entre a plantação de cana e uma pequena porção de mata, área de reserva legal da fazenda.
A queima da palha da cana-de-açúcar é proibida desde 2012 na região sul do estado, sendo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) o único órgão competente para conceder o licenciamento ambiental de empreendimentos agrícolas na região. De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), o Ibama exige das empresas um Estudo de Impacto Ambiental “para analisar as consequências da queima para a saúde humana, as áreas de preservação ambiental, remanescentes florestais e a população indígena”.
Acampados no local desde setembro de 2013, os indígenas de Apyka’i sofrem com constantes ameaças de funcionários e ‘seguranças’ contratados para aterrorizá-los. “Ele chegou aqui com carro da usina e disse que eles queimariam a cana para acabar com a gente e com nossos barracos, igual aconteceu aquela vez”, conta a líder Damiana Cavanha, referindo-se ao incêndio ocorrido em agosto do ano passado que iniciou no canavial da Usina São Fernando. Na época, os indígenas acampavam às margens da rodovia BR-463 e tiveram barracos, comida e pertences devastados pelas chamas.
A comunidade está em pânico com a possibilidade de um novo incêndio. “Estamos apavorados. Temos muitas crianças aqui. Da outra vez perdemos tudo, mas pelo menos todos sobrevieram E se botarem fogo a noite, não der tempo de a gente fugir?”, diz Damiana, preocupada em perder mais membros da família e companheiros da luta pelo direito de viver na terra sagrada.
Oito pessoas já morreram durante os anos de espera pela demarcação de Apyka’i, a maioria vítima de atropelamentos. Neste ano, Delci Lopes, de 17 anos e Ramão Araújo, 41, morreram atropelados por um caminhão que transportava bagaços de cana e por um automóvel Toyota Hillux, respectivamente.
Reintegração de posse
A comunidade ainda corre o risco de voltar para a BR-463, onde viveram por mais de 20 anos em condições degradantes e sem nenhum tipo de assistência. Em maio, uma decisão judicial determinou a retirada dos indígenas da fazenda arrendada para o plantio de cana. Felizmente, à época, a Polícia Federal (PF) informou que não tinha efetivo para uma operação de reintegração de posse, por conta da realização da Copa do Mundo. A juíza determinou então que a Funai retirasse os indígenas da área. O órgão indigenista recorreu da decisão, mas a qualquer momento a ordem de despejo contra a comunidade pode ser cumprida pela PF, dado o encerramento do evento esportivo.
Uma das últimas esperanças dos indígenas de Apyka’i é uma ação ajuizada pelo MPF neste mês para forçar a compra, pela União, de uma área de 30 hectares dentro da fazenda, onde os indígenas devem permanecer até a demarcação definitiva da terra. Além disso, a Fundação Nacional do Índio (Funai) pode ser multada em mais de R$ 1,7 milhão por descumprir Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrado em 2007 que determina a demarcação das terras indígenas no MS, entre elas Apyka’i. Para o MPF “A inércia do Estado tem custado caro à comunidade, que, sem expectativa de regularização fundiária, vive em péssimas condições, arriscando o bem mais precioso de seus integrantes: a vida”.
Usina São Fernando – Dívida bilionária e planos de expansão
José Carlos Bumlai, conhecido nome do agronegócio em MS e amigo próximo do ex-presidente Lula, é o arrendatário da fazenda Serrana (que incide sob o território indígena) e proprietário da usina São Fernando. Atualmente administrada por Maurício e Guilherme, filhos de Bumlai, a usina esteve perto da falência no ano passado e recorreu à Lei de Recuperação Judicial, que dá longos prazos para que o empresário pague as dívidas sem precisar fechar o negócio.
De acordo com a Justiça, quase metade da dívida da empresa, que é de R$ 1,2 bilhão, surgiu por meio de empréstimos liberados ainda no governo Lula pelo BNDES (R$ 540 milhões) e Banco do Brasil (R$ 240 milhões). Outra parte é referente a débitos trabalhistas (R$ 1, 693 milhão), fiscais (R$ 30, 342 milhões) e com prestadores de serviços e fornecedores (R$ 132, 648 milhões). Estima-se que o restante da dívida era com arrendadores de fazendas para o plantio da cana-de-açúcar.
“Os proprietários chegaram a ficar três meses sem receber, mas logo foram pagos. Essa usina tem ligação com políticos grandes, de vez em quando o Lula aparece pra visitá-la… Basta outro aporte do BNDES e fica tudo certo”, disse uma fonte que investigou em Dourados o processo de Recuperação Judicial da usina. Do montante de R$ 2 bilhões arrecadados com a venda de 49% da empresa, R$ 800 milhões serão usados para quitar parte das dívidas e R$ 1,2 bilhão aplicado na expansão do empreendimento.
Os planos devem afetar diretamente a vida dos Guarani/Kaiowá de Apyka’i, que há 25 anos aguardam a demarcação de sua terra ancestral, sofrendo toda a sorte de violações e vivendo em condições subumanas. A violência contra o povo recrudesceu a partir de 2009, quando a usina São Fernando instalou-se no território e a comunidade passou a ser atacada por ‘seguranças’ armados, contratados pelos fazendeiros.
“Se eles têm esse dinheiro todo e querem a gente fora daqui então que nos matem de uma vez, e não aos poucos, como estão fazendo. Porque eu quero morrer na terra onde os meus foram enterrados, é aqui nosso lugar, no tekoha Apyka’i e daqui não vamos sair”, disse Damiana quando informada a respeito dos planos da usina.