Avante caminhantes
Vinte dias de travessia e partilha. Quase 100 km de troca de passos, espaços e saberes. Uma caminhada memorável atravessando os medos e as belezas da maior ilha fluvial do planeta. Fomos os primeiros a fazer a travessia a pé. Muitas recomendações e temores: cuidado com as onças, os jacarés, as piranhas. Atravessamos ilesos todos esses medos e apreensões.
Os Jawaé, Karajá e Avá Canoeiro, povos guerreiros e resistentes, nos acolhem com alegria e sabedoria. Tudo no seu tempo e significado. As redes atadas na beira do rio ou da estrada, as barracas embaixo de frondosas mangueiras ou vegetação do cerrado. Tudo acontecendo a contento e a seu tempo.
Quarenta e quatro caminhantes, pé na estrada, mochila nas costas e o coração aberto para o diferente. Fomos sendo surpreendidos pelos bandos de biguá, garças, socó boi e uma infinidade de pássaros. Até os enormes Tuiuiu, em seus ninhos no alto das árvores, vigilantes com seus filhotes, deram os ares de sua graça.
Quando as bolhas, calos começaram aparecer, era a hora da solidariedade e as paradas para refazer as energias e tratar as feridas no corpo e na alma com os óleos naturais e os cuidados necessários.
A ilha do Bananal: belezas, impactos e ameaças
A ilha do Bananal é berço natural de povos indígenas como os Jawaé e Karajá. Há mais de dois séculos se iniciou um processo de contatos e invasões por parte dos interesses nos recursos naturais e belezas da ilha. Porém, a invasão maior se deu a partir de meados do século vinte, com a marcha para o Brasil Central. A partir de então interesses turísticos e da expansão pecuária se estabeleceram na ilha. Apesar de ser declarada Parque Nacional e a partir da década de 80 dois terços serem declarados Terra Indígena, as invasões estimuladas por políticos e o latifúndio, fizeram com que mais de 20 mil pessoas ocupassem a ilha, chegando a ter mais de 100 mil cabeças de gado.
No governo de Juscelino Kubitschek, foi construído um grande hotel, próximo à aldeia Kararjá de Santa Izabel, com o intuito de desenvolver ali um pólo turístico. Serviu como local de férias e safári para os militares durante a ditadura. Foi repassado para o governo de Goiás no início da década de 80, para exploração do turismo na ilha. Felizmente o projeto não se consolidou. Os índios se livraram do pesadelo ateando fogo no lendário Hotel JK. Hoje restam apenas as ruínas entre árvores e as casas de palha de babaçu.
Outra grande ameaça foi o início da construção da estrada Transaraguaia, em 1983. Houve uma grande reação nacional, pois se considerava essa como “estrada da morte”, da insensatez, da ignomínia. Um absurdo. Teriam que ser feitos mais de 80 km de aterro de 3 a 6 metros. O impacto sobre o ecossistema da ilha seria fatal. Depois de iniciadas as obras os índios Jawaé interromperam os trabalhos e obrigaram a retirada das máquinas. Porém até hoje continuam as pressões dos políticos e do agronegócio para a construção dessa estrada. Ainda no ano passado o governador do Tocantins, Siqueira Campos esteve com os Karajá tentando mostrar as vantagens da estrada, fazendo promessas e doando objetos agrícolas. Uma liderança Jawaé solicitou aos caminhantes que os apoiássemos na luta contra a construção dessa estrada. Nos comprometemos com essa luta pelo bem da vida e da mãe terra. Vimos, sentimos e nos sintonizamos com o direito amplo de todas as formas de vida existentes na ilha do Bananal.
D. Pedro comentou que há mais de quatro décadas, quando aí chegou a ilha era um espetáculo pela exuberância de vida. Infelizmente já foi bastante impactada pelas sucessivas e variadas formas de invasão, principalmente pela pecuária e turismo.
Nos unimos, no caminho da resistência, afirmação de direitos e da vida, a todos os que lutam para que a ilha do Bananal continue sendo não apenas a maior ilha fluvial do mundo, mas também um exemplo de preservação sócio-ambiental.
Caminhantes da vida na “troca de saberes”, não apenas vivenciamos uma experiência admirável desse grande Brasil desconhecido, mas construímos e assumimos um compromisso com os povos indígenas e a ameaçada biodiversidade dessa região.
Avante caminhantes, o caminho se faz caminhando, com lutas concretas, sonhos e utopias.
Egon Heck e Laila Menezes
Cimi-Secretariado
Brasilia, 24 de julho de 2014