No Dia Mundial da Justiça Social, nada a declarar?
Por Iara Tatiana Bonin,
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da ULBRA e Doutora em Educação pela UFRGS
Seguindo para o trabalho, um tanto irritada com os congestionamentos decorrentes das obras da Copa, escutei, no rádio, que hoje (20 de fevereiro) era o Dia Mundial da Justiça Social, data instituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2009. Conforme a reportagem, a data deveria motivar os governos para a promoção de medidas efetivas de combate à pobreza, à fome, ao desemprego, à exclusão social. Coincidentemente o sinal fechou numa movimentada avenida no centro de Porto Alegre e dois pequenos meninos, com seus corpos maltratados pela miséria, se aproximaram e pediram “um trocadinho pra comprar comida”. Perto dali, vi os primeiros movimentos no amanhecer de famílias que ocupam a parte inferior de um viaduto, seus corpos castigados pelo completo abandono e pelo sono em alerta, temendo a violência.
Também escutei pelo rádio a notícia de que a presidente Dilma Rousseff estava no Rio Grande do Sul. Os eventos de sua agenda cheia, devido ao período pré-eleitoral, não indicavam que a presidente ao menos sabia da comemoração do Dia Mundial da Justiça Social! Não transitou pelas ruas, nem escutou a voz daquele esfomeado menino porque estava, logo cedo, numa visita inaugural ao Estádio Arena Beira-Rio,
Depois de apreciar a obra monumental, a presidente Dilma prosseguiu em sua rápida turnê pelas querências deste estado e chegou a Caxias do Sul. Almoçou em um dos mais conceituados restaurantes da região, onde se serviu polenta – comida de imigrante italiano pobre, convertida em iguaria e inserida num refinado cardápio. Depois participou da cerimônia de abertura da 30ª Festa da Uva e da 24ª Feira Agroindustrial. Em seu discurso, nenhuma palavra sobre justiça social! Sob o caloroso aplauso dos presentes, declarou: “Vocês têm uma presidente que é parceira da produção agrícola e industrial dessa região”, dando destaque também ao volume crescente de crédito concedido pelo governo para o setor agroindustrial, que chega a R$ 150 bilhões. Ironicamente, a agenda da presidente no Dia Mundial da Justiça Social parece ser a síntese das opções feitas pelo seu governo.
A agenda da presidente entre os gaúchos me fez lembrar outra ocasião, em 11 de fevereiro de 2014, quando ela esteve na cidade de Lucas do Rio Verde (MT), participando da Cerimônia de abertura oficial da colheita da safra brasileira de grãos 2013-2014 e início do plantio da 2ª safra. Em seu discurso, antes de cumprimentar as autoridades presentes, ela dirigiu a palavra aos produtores rurais: “Quebro o protocolo e começo cumprimentando esses produtores e essas produtoras responsáveis pelo sucesso e pela vitória do nosso agronegócio. (…) É uma imensa alegria assistir aquela quantidade de soja jorrando pela colheitadeira”. Nas palavras da presidente, o espetáculo da super-safra mostra que o Brasil é viável, quando asseguradas certas condições, dentre as quais destacou a terra, o empreendedorismo dos produtores do agronegócio e o financiamento dos equipamentos e das máquinas com tecnologia de ponta. E a presidente finalizou seu discurso declarando: “Essa vitória é o que nós estamos celebrando hoje aqui também. É uma vitória do agronegócio do Brasil e é uma vitória do agronegócio do Mato Grosso”.
Não por acaso, a agenda da presidente contemplou vários eventos ligados ao agronegócio, um dos setores considerados mais lucrativos no contexto brasileiro e também um dos segmentos que, para prosperar, tem recebido variados tipos de incentivos e linhas de financiamento (destaque feito no próprio discurso da presidente, citado anteriormente). A produtividade dos empreendimentos agroindustriais e a capacidade de gerar lucro têm sido enaltecidas como motivos de “orgulho nacional” em discursos proferidos por vários representantes do governo. O agronegócio é, assim, alçado à condição de alavanca capaz de tornar o Brasil competitivo.
Governando numa perspectiva desenvolvimentista e para salvaguardar os setores considerados produtivos e superavitários, resta pouco espaço na agenda do governo federal para planejar medidas efetivas de promoção da justiça social. Obviamente que os recursos financeiros são canalizados para assegurar a lucratividade e a competitividade de setores que supostamente colocariam o Brasil numa condição de “primeiro mundo”, enquanto são contingenciados e pouco aplicados os recursos destinados às políticas sociais.
A terra é destacada pela presidente como condição indispensável para que o agronegócio – menina dos olhos deste governo – prospere. A terra, então, é vista como um recurso, a ser maximizado, pensamento que posiciona como obsoletos os direitos assegurados na Constituição Federal aos índios, quilombolas, comunidades tradicionais. Uma evidência disso é o fato de que, em 2013, apenas uma área indígena, pertencente ao povo Kayabi, foi homologada pela presidente, e mesmo assim o registro desta área foi impedido pelo ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF).
A demarcação das terras indígenas é uma questão de justiça social
Pode-se então “medir” o desempenho do governo nas ações de demarcação observando-se, por exemplo, os dados de execução orçamentária de 2013: na ação “Fiscalização e Demarcação de Terras Indígenas, Localização e Proteção de Índios Isolados e de Recente Contato” os recursos disponibilizados foram da ordem de R$ 87.863.432,00, sendo liquidados somente R$ 17.402.383,22 (o equivalente a apenas 19,8% dos recursos disponíveis). Nos desdobramentos desta ação, existe o item “Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas”, cuja dotação orçamentária em 2013 foi de R$ 21.642.811,00, mas foram liquidados apenas R$ 5.403.834,59 (ou 24,06% do montante).
Uma questão atinente à justiça social, utilizada inclusive para incitar a população contra as demarcações, é a justa indenização das benfeitorias que resultam de ocupação de boa fé em terras indígenas. Sobre esse aspecto, embora exista uma infinidade de processos de indenização em curso (e conheço alguns agricultores do município de Chapecó (SC), por exemplo, que estão aguardando indenizações há mais de 15 anos), nenhum centavo foi pago, em 2013, da ação “- Indenização aos Atuais Possuidores de Títulos das Áreas sob Demarcação Indígena”, cuja dotação foi de R$ 20 milhões.
A reforma agrária é também uma questão de justiça social, e se liga igualmente ao problema da terra e de sua destinação. Recorrendo novamente aos dados de execução orçamentária, vale observar que, no programa “Reforma Agrária e Ordenamento da Estrutura Fundiária”, elencam-se ações voltadas à concessão de créditos às famílias assentadas, ao desenvolvimento dessas famílias e à desapropriação de imóveis rurais para a reforma agrária. Dos R$ 2,5 bilhões autorizados em orçamento, apenas R$ 975,2 milhões foram aplicados, o que representa 38,7% do total. A situação é tão grave que, no dia 13 de fevereiro, cerca de 15 mil integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) protestaram no centro de Brasília e exigiram mudanças nas políticas agrárias. As lideranças do movimento reclamam do baixo número de famílias assentadas por desapropriações e da burocracia para ingressarem em programas sociais básicos.
A superação das desigualdades é uma questão de justiça social
Para isto, é necessário que se promova uma mudança de rota, um novo “mapa do desenvolvimento” deve ser traçado, cuja orientação seja a promoção da justiça social e da dignidade humana. De acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o Brasil é hoje o quarto país no mundo em desigualdade entre pobres e ricos. Registra-se nesta pesquisa que, no ano de 2012, 10% da população mais rica concentrava 42% da renda do país. No atual modelo de governo privilegiam-se setores lucrativos, o que acentua o fosso que separa ricos e pobres.
As desigualdades, que nos discursos oficiais sempre aparecem atenuadas, já não podem ser vistas como efeitos colaterais do modelo desenvolvimentista – elas têm sido constituídas no jogo da concorrência. Quando a concorrência (entre empresas, entre trabalhadores, entre setores da sociedade) é o princípio de organização do mercado e do governo, não se pode vislumbrar a superação das desigualdades. A concorrência é, no atual modelo de governo, um jogo que deve ser continuamente alimentado e sustentado. Por esta razão, a agenda da presidente está lotada de compromissos vinculados aos setores que, na concorrência, se mostram fortes e produtivos. O agronegócio é, neste contexto, um setor alimentado e nutrido, que recebe atenção especial do governo.
Não é possível vislumbrar a conquista e a garantia de direitos em um modelo concorrencial, pois neste, há sempre vencedores e perdedores. No jogo da concorrência, os povos indígenas, os quilombolas, as comunidades tradicionais não são tidos como “setores viáveis”, e sim como grupos residuais. Assim, o que se oferece (quando muito) a estes grupos, são ações de “gestão das desigualdades”, ou seja, ações assistenciais, paliativas, de impacto momentâneo, que não conduzem à conquista efetiva dos direitos – em especial do direito à terra.
É necessário, portanto, retomar a pauta da justiça social, reconhecendo que um governo existe para proporcionar bem estar e segurança para toda a sua população, e para promover a esta o acesso a bens, recursos, tecnologias, resguardando direitos humanos que não podem ser subvertidos e adequados a uma lógica empresarial.
Porto Alegre, 24 de fevereiro de 2014