Os discursos e estratégias contra as demarcações de terras dos povos indígenas e quilombolas no Rio Grande do Sul
No Rio Grande do Sul, se intensificam os ataques às demarcações de terras para comunidades indígenas e quilombolas. Nos discursos disseminados nos meios de comunicação, especialmente por autoridades, os problemas causados pelas demarcações são explicados basicamente a partir de três argumentos: o primeiro afirma haver interesses de grupos estrangeiros nas terras indígenas e isso explicaria o empenho de ONGs e entidades indigenistas (de assessoria aos índios) na defesa das demarcações. O segundo afirma que se trata de muita terra para os "índios", porque estes "não trabalham" e/ou porque arrendam as terras que possuem. O terceiro argumento, e certamente o mais contundente, reitera que não se pode, a pretexto de demarcar terras para índios, cometer injustiças com os agricultores que “produzem” alimentos para a população.
Em um primeiro olhar, esses argumentos podem parecer bastante convincentes, porque estão naturalizados especialmente nos discursos midiáticos e cotidianos, mas eles têm sido utilizados como escudo para desviar a atenção de questões bem mais complexas (a exploração ao meio ambiente, favorecimento aos setores do agronegócio e o racismo institucionalizado). Antes de tudo, é necessário esclarecer que povos indígenas têm seus direitos originários (sobre as terras que ocupam) amparados pela Constituição Federal de 1988 – Art.231 e 232. Tais direitos já estavam resguardados, antes da promulgação desta lei, através de outras normas que a precederam e onde se previa que terras indígenas fossem reservadas aos “índios”. Basta lembrar que as primeiras demarcações de terras – na forma de reservas indígenas – ocorreram há mais de um século. Antes ainda, há registros de que os povos indígenas tenham obtido a garantia de suas terras por serviços prestados ao governo, por exemplo, na Guerra do Paraguai, em 1864. Portanto, não é nenhuma novidade a necessidade de se demarcar terras indígenas.
Em relação ao primeiro argumento elencado anteriormente, de que nos movimentos em defesa das demarcações de terras indígenas haveria algum tipo de complô de interesses "estrangeiros" contra a "Nação", basta lembrarmos que as terras indígenas são bens da União, que devem ser protegidas e resguardadas ao uso exclusivo dos povos indígenas. Este dispositivo legal é suficiente para mostrar que, se há interesses estrangeiros sobre terras brasileiras, certamente as áreas indígenas seriam as menos adequadas, porque qualquer investimento sobre elas que não possua a autorização do Congresso Nacional é considerado ilegal. A pressão do movimento indígena e de setores aliados pela demarcação é, portanto, legítima e se orienta pelos termos da própria Constituição Federal de 1988 que estabeleceu, no artigo 67 das Disposições Transitórias, um prazo de cinco anos para que o governo procedesse às demarcações de todas as terras indígenas. Passaram-se 26 anos, e a maioria das terras ainda não foi regularizada. Não bastasse a demora na demarcação das terras, indispensáveis à manutenção física e cultural das comunidades indígenas, elas são ainda vítimas do preconceito, posto que se imagina haver “outros interesses” que as manipulam, como se seus direitos não fossem legítimos.
O segundo argumento contrário às demarcações, no qual se afirma que "é muita terra para poucos índios", filia-se a um entendimento de que as terras são recursos necessários ao desenvolvimento nacional, regional, local e que, por isso, devem ser produtivas. Nessa direção, indaga-se sobre o porquê de os índios quererem “tanta terra” acionando-se uma lógica racista a partir da qual se avaliam as formas de viver e de trabalhar de todos os povos e culturas a partir dos critérios ocidentais e de uma racionalidade neoliberal, tomada como universal. Por essa ótica racista, só trabalha quem efetivamente faz a terra “produzir”, quem atua sobre ela aproveitando seus potenciais; em oposição, aqueles que desenvolvem uma relação mais respeitosa com o ecossistema e uma atitude preservacionista são vistos como sujeitos que não trabalham, não tem ambição, não sabem dar valor (econômico) à terra.
E o argumento de que se trata de muita terra para os índios se desdobra em outro – de que eles não precisam da terra, por isso a arrendam. Mesmo que eventualmente se registrem casos isolados de arrendamento em terras indígenas, vale lembrar que esta é uma prática ilegal, passível de penalização, e que a fiscalização sobre as terras indígenas é de responsabilidade do poder público. A Constituição Federal instituiu, para as comunidades indígenas, o direito a posse permanente e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Art. 231, § 2º). O usufruto nas terras indígenas tem caráter coletivo e não individual e, portanto, o direito é das comunidades indígenas e não de cada pessoa individualmente, não podendo ser utilizadas por terceiros. Se o arrendamento ocorre, tal fato denota muito mais a omissão do poder público, que não fiscaliza e não assegura o usufruto exclusivo aos indígenas, o que prejudica enormemente as comunidades por práticas como estas.
O terceiro argumento contrário às demarcações também pode ser desnaturalizado: trata-se da ideia corrente de que, a pretexto de demarcar terras para índios, não se poderia cometer injustiças com os agricultores que produzem o alimento da população. Para entender essa questão, é necessário retomar alguns aspectos históricos que nos levam a situação atual, em que índios e agricultores disputam as mesmas terras.
Nas primeiras décadas do século XX, sob argumentos positivistas e desenvolvimentistas, os governos empenharam-se em promover a ocupação territorial e a colonização de espaços considerados “devolutos”. Neste período, a literatura sobre o tema registra a ocorrência de inúmeras práticas de “limpeza étnica”, a partir das quais aldeias inteiras foram exterminadas. Centenas de outras comunidades foram expulsas de suas terras tradicionais e despejadas em outras localidades. Tais remoções forçadas ao longo da história originam os conflitos contemporâneos, posto que, são estas as terras, loteadas e vendidas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul em décadas anteriores, que agora estão sendo pleiteadas para demarcação. Tanto do lado dos povos indígenas e quilombolas, quanto do lado dos agricultores (que hoje residem sobre as terras) há muitos homens e mulheres que vivenciaram aquele período e que relatam os acontecimentos, indicando que nas terras pleiteadas para demarcação existem indícios materiais da presença indígena e de quilombos, como cemitérios, destroços de antigas moradias, restos de artefatos utilizados para caça, entre outros.
Pois bem, se a tradicionalidade da ocupação indígena e de quilombos não pode ser negada, valem os preceitos constitucionais de que estas terras – no caso das indígenas – são bens da União, que são inalienáveis e indisponíveis e que os direitos indígenas sobre elas são imprescritíveis (Art. 231, §4º). Não é possível, portanto, imaginar que o erro cometido pelo Estado – ao disponibilizar para colonização e titular terras que não lhe pertenciam – não seja corrigido agora para evitar que ocorra uma injustiça contra os agricultores. É necessário, isso sim, exigir que o Estado responda por seus erros sem que se penalizem os agricultores, estes que, com seu suor, produzem alimentos. Eles têm direito a uma justa indenização e a uma alternativa viável, que deve ser apresentada pelo Estado, para continuar a viver da agricultura, em terras legalmente tituladas e compatíveis com seus modos de produção.
Também é importante lembrar que, entre os injustiçados, as maiores vítimas são os povos indígenas e quilombolas, porque não têm acesso às condições mínimas de vida, estão confinados em pequenas porções de terra. Exemplo disso é o que ocorre na área indígena Estiva, onde 40 famílias do povo Guarani sobrevivem em apenas sete hectares. Outras tantas comunidades indígenas vivem em acampamentos provisórios, aguardando que o poder público realize os procedimentos de demarcação: são pelo menos 18 acampamentos situados às margens de rodovias no estado do Rio Grande do Sul. Não é por acaso, portanto, que os maiores índices de desnutrição, de incidência de doenças e de mortalidade infantil são registrados entre as populações indígenas.
E mais uma vez, por falta de vontade política para proceder às demarcações das terras indígenas e quilombolas, se apresenta como alternativa a remoção das comunidades para pequenas áreas adquiridas pelo estado. A pergunta que fica, diante destas propostas, é: por que o governo não oferece terras para o reassentamento dos agricultores? Aos povos que estão em luta pela demarcação às propostas apresentadas significam, no limite, a negociação do direito constitucional. Através do reassentamento em pequenas porções de terra e de assistência às necessidades básicas, as comunidades abririam mão de territórios tradicionais que hoje estão em processo de demarcação, “finalizando-se” assim os conflitos. Essa é uma solução que se supõe justa e pacífica, mas penaliza os povos originários, e mais uma vez se pratica uma violência contra estes.
Aliás, violenta é também a forma de assédio que algumas comunidades vêm sofrendo, quando servidores do poder público estadual apresentam como única alternativa, neste contexto de disputas, a transferência de famílias indígenas para áreas que o estado está oferecendo, caso contrário, em não aceitando a proposta, permanecerão indefinidamente em acampamentos provisórios e em situação de abandono e de desassistência. Causa estranheza e preocupação o fato de o governo do Rio Grande do Sul em suas investidas para a remoção das famílias indígenas não apresentar como alternativa imediata à conclusão do procedimento de demarcação do “Parque Estadual de Itapuã”, atualmente administrado e explorado economicamente pelo Estado. Os estudos realizados pela Funai comprovaram que o parque é terra tradicional do povo Guarani.
Por fim, não se pode a pretexto de retirar os "índios da beira das estradas", impor-lhes o castigo de nunca mais terem direito a demarcação de suas terras. Infelizmente vem sendo realizados acordos que prevê a redução dos limites de terras já demarcadas, caso de Mato Preto em Getúlio Vargas (onde o próprio procurador do MPF participou da negociação), bem como a transferência de comunidades para áreas distantes de suas terras tradicionais, casos das comunidades Guarani do Arroio do Conde e Irapuá.
Na prática, os governos fazem uso da situação de miséria e pobreza em que se encontram algumas comunidades indígenas para relativizar o alcance de seus direitos constitucionais e impor, como contrapartida, medidas paliativas e compensatórias. Perpetuando-se, com isso, as injustiças aos povos indígenas e quilombolas.
Em 07 de fevereiro de 1756 os Exércitos da Espanha e Portugal se uniram para massacrar os povos indígenas que lutavam pela defesa de seus territórios. Em uma das batalhas foram mortos mais de 1500 guerreiros Guarani e assassinado Sepé Tiaraju. Continua a luta de Sepé e seus companheiros 258 anos depois. Os povos indígenas e quilombolas, como naquele período, permanecem em batalha contra as injustiças, a discriminação e pelo direito de viverem num pedaço de terra.
Porto Alegre, RS, 07 de fevereiro de 2013, dia de Sepé Tiaraju.