Vinho e vinagre na alegria do Evangelho
Exortação apostólica do Papa Francisco – Um vade-mécum sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual
Depois de uma longa fase depressiva do tempo pós-conciliar da Igreja católica, com a Exortação Apostólica “A alegria do Evangelho” (Evangelii gaudium, 24.11.2013) do Papa Francisco voltou a reflexão sobre a “alegria” como desejo de reforma, pressuposto de conversão e autocrítica (cf. EG 14), como convite não somente a “todos os que invocam o nome de Cristo”, mas, segundo a Constituição Pastoral “Gaudium et spes”, a toda a humanidade (cf. GS 2). Parecia que a ponte entre o Concílio Vaticano II e a Igreja de hoje não suportava mais os caminhões pesados da realidade contemporânea. Novos caminhos desatualizaram os mapas de motoristas experientes.
Em sua Exortação, o Papa Francisco se dirige aos motoristas desses caminhões. Sem muitos rodeios, procura lhes dizer que o perigo não está no caminho ou na ponte, mas nos motoristas desabilitados. Estes percorrem as paisagens pastorais com excesso de velocidade ou com lentidão sem rumo. Francisco pergunta a cada um de seus agentes de pastoral: Com sua carteira de motorista vencida, seu exame de vista caducado e o mapa de estradas desatualizado – como você pode passar a ponte para o mundo de hoje? Com “A alegria do Evangelho”, Francisco oferece a todos nós um manual de motorista atualizado – um vade-mécum pastoral em chave missionária sobre mudanças necessárias e possíveis. Contudo, nem todas as estradas novas constam nesse mapa. Uma vez que Francisco não tem o poder de um príncipe renascentista, nem tudo que seria necessário mudar ele vai poder transformar. A gerontocracia eclesial, por exemplo, é uma questão cultural e a transformação de cristalizações culturais são transformações que levam muito tempo. Enfaticamente, o Papa Francisco afirma: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG 27). O sonho antecipa realidades possíveis. Acontece que muitos dos próprios irmãos do Papa sonhador, que têm medo dessa nova realidade na qual o poder lhes será tirado, já pensam em como livrar-se do sonhador e buscam a cisterna mais próxima (cf. Gn 37).
Depois de uma contextualização concisa do documento, procuro através de sete núcleos interligados sistematizar a apostila missionária de Francisco. Ela nos dá os contornos pastorais de seu pontificado em forma de uma Exortação, às vezes, elementar e revolucionária outras vezes prolixa e tradicional, contudo sempre oferecendo algo do frescor da nossa alma latino-americana ao mundo.
- Contextualização
A chave de leitura de gestos, palavras e escritos do Papa Francisco é a misericórdia de Deus que desde cedo ilumina a sua vida. Foi na festa litúrgica de São Mateus, coletor de impostos convertido em discípulo, dia 21 de setembro de 1954, Dia dos Estudantes, festejando o início da primavera na Argentina, que Jorge Mario Bergoglio sentiu, pela primeira vez o chamado misericordioso de Deus que “saiu ao seu encontro e o convidou a segui-lo”.[1] Mais tarde, em sua última entrevista radiofônica, antes de ser eleito Papa, diria sobre essa experiência que fez nascer sua vocação sacerdotal: “Deus me priorizou. […] Senti como que se alguém me agarrasse por dentro e me levasse ao confessionário”.[2] O episódio está presente em seu lema episcopal: “Olhou-o com misericórdia e o escolheu” (miserando atque eligendo), que resume a ação de Deus em sua vida: “Jesus viu um homem, chamado Mateus, sentado à mesa de pagamento dos impostos, e lhe disse: `segue-me´”.[3] É na casa de Mateus, na casa de um marginal social, que Jesus defende a misericórdia para com publicanos e pecadores contra o rigorismo dos fariseus: “Misericórdia é que eu quero, e não sacrifício” (cf. Mt 9,13; Os 6,6). Eis a mensagem transversal da vida e dos escritos do Papa Francisco: Nós não podemos podar a misericórdia de Deus com a tesoura do legalismo. Misericórdia, porém, não significa nem auto complacência com vícios internos da Igreja nem autorreferencialidade de certo narcisismo teológico e pastoral. A graça do chamado de Deus e sua misericórdia com a fragilidade daquele que foi chamado, a conversão permanente do povo de Deus e a autocrítica dos seus pastores são o Leitmotiv da Exortação sobre a “Alegria do Evangelho”.
Há meio século, a autocrítica tornou-se um produto raro na Igreja católica. Parecia mais fácil bronzear-se no “Esplendor da Verdade” (Veritatis esplendor, 1993) e reunir ateus, agnósticos, racionalistas e secularizados no aprisco do “Átrio dos Gentios”, do que passar um aspirador de pó por baixo dos tapetes vermelhos onde se acumulou a poeira da autorreferencialidade de séculos.
Aliás, o subtítulo da Gaudium et spes (“Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje”) poderia também configurar como subtítulo da Exortação de Francisco. No intuito de reanimar e realinhar o público interno da Igreja com a radicalidade do Evangelho e de propor o conteúdo programático de seu papado, Francisco se dirige – segundo o gênero literário das “Exortações” e semelhante à Evangelii nuntiandi (1975), de Paulo VI, que versava “sobre a evangelização no mundo contemporâneo” – não ao mundo, mas aos bispos e ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos.
Depois de cada Sínodo Romano, seu “resumo” faz parte do dever de casa do Papa que o devolve como “Exortação Apostólica” à comunidade católica. A Evangelii gaudium, de Franciso, remete à XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que em 2012 discutiu “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”. Em vários itens o Papa menciona o Sínodo (cf. EG 14, 16, 73, 112, 245), contudo, faz do seu texto não só um resumo de materiais herdados, mas um escrito autônomo e programático de seu papado. Expressa nele seu sonho de “uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual que à autopreservação” (EG 27).
Na Igreja, a fala sobre a alegria, que aponta como a maioria dos pronunciamentos eclesiais para uma ausência — cada um sonha daquilo que está almejando, mas ainda não tem — não é nova. Paulo VI, em sua “Exortação Apostólica sobre a Alegria Cristã” (Gaudete in Domino), retoma durante o Ano Santo, de 1975, a universalidade da alegria da Gaudium et spes “para todo o povo” (AC III,2): “O chamado dirigido por Deus Pai para participar plenamente na alegria de Abraão, no festim eterno das núpcias do Cordeiro, é uma convocação universal” (GD V,3), “porque da alegria trazida pelo Senhor ninguém é excluído” (EG 3). Francisco retoma os fios da Constituição Pastoral “Gaudium et spes” (1965) do Vaticano II em sua Exortação Apostólica “Evangelii gaudium” (2013). A corrente agostiniana, com seu pessimismo intrínseco e minoritária durante o Vaticano II, mas hegemônica no tempo pós-conciliar, atribuiu à Gaudium et spes uma overdose de otimismo. A Evangelii Gaudium coloca um contraponto e traz de volta as palavras de João XXIII, com as quais, no dia 11 de outubro 1962, abriu o Vaticano II: “Alegra-se a Santa Mãe Igreja, porque […] amanheceu o dia tão ansiosamente esperado em que solenemente se inaugura o Concílio Ecumênico Vaticano II”. O que une João XXIII e Francisco é que em seu Evangelho não tem lugar para “profetas de desgraças” (EG 84) e “prisioneiros da negatividade” (EG 159). Seguindo o Vaticano II, ambos acreditam na possibilidade da “conversão eclesial” e na necessidade da “reforma perene” da Igreja (cf. EG 26) que atinge estruturas e conteúdos pastoralmente excludentes, incompreensíveis ou irrelevantes. Conversão pastoral significa conversão ao “estado permanente de missão” (EG 25; DAp 551) – além fronteiras e sem fronteiras (cf. EG 11; 25; 27; 32).
- Núcleos estruturantes
A Exortação sobre a alegria do Evangelho, do Papa Francisco, é uma verdadeira apostila missionária com imperativos e convites, dicas metodológicas e pedagógicas interligadas para fazer avançar a “nova evangelização”. Procurei agrupar os múltiplos temas em torno de sete núcleos de radiação. Alguns desses núcleos já fazem parte do set pastoral latino-americano, outros pertencem à tradição da Igreja universal e ainda outros são “bergoglianos”. Em seu conjunto podem servir para as comunidades aprofundarem a relevância do Vaticano II e do Documento de Aparecida para os dias de hoje em função de uma pastoral missionária em estado de conversão permanente.
2.1. A misericórdia
O núcleo da misericórdia, muito significativo na vida do Papa Francisco, se insere no campo semântico mais amplo da justiça, do reconhecimento do outro, do serviço humilde e generoso de fraternidade, solidariedade e paz: «A Igreja, guiada pelo Evangelho da Misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças» (EG 188; cf. 183). A misericórdia é a resposta transversal de Deus à humanidade porque “a salvação, que nos oferece, é obra da sua misericórdia” (EG 112). Essa misericórdia inabalável é sinônimo da fidelidade do Seu amor infinito (EG 3; 6). Por causa desta identificação com o amor, Francisco considera, com São Tomás de Aquino, a misericórdia “a maior de todas as virtudes” (EG 38). Nela se manifesta a onipotência de Deus e o limite para que a nossa religião não se torne uma “escravidão” que impede o Evangelho de chegar a todos (cf. EG 43s): “A Igreja deve ser o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (EG 114). O dossiê bíblico a respeito da misericórdia é muito claro (cf. EG 193) e em nome de uma duvidosa “ortodoxia” não devemos ser cúmplices indulgentes de “situações intoleráveis de injustiça” (EG 194). Para Jesus, a misericórdia para com os pobres “é a chave do Céu” (cf. Mt 25, 34-40; EG 197). Por fim Francisco pergunta: “Para quê complicar o que é tão simples” (EG 194)?
2.2. Os pobres
Da misericórdia como graça da salvação emerge a opção pelos pobres que, em primeiro lugar, é uma opção de Deus que “manifesta a sua misericórdia antes de mais a eles” (EG 198). É o Pai que dá o Reino ao “pequenino rebanho” (Lc 12,32). Jesus, “transbordando de alegria no Espírito, bendiz o Pai por Lhe atrair os pequeninos” (cf. Lc 10,21; EG 141).
Se o Evangelho deve chegar a todos, porque privilegiar os pobres? Trata-se na universalidade da Evangelii gaudium, de Francisco, como já na Gaudete in Domino, de Paulo VI, de uma universalidade com prioridades: “Não nos podemos esquecer de que o Evangelho foi anunciado em primeiro lugar aos pobres e aos humildes, com o seu esplendor tão simples e com todo o seu conteúdo” (GD V,1). A alegria da salvação resplandece nos lugares de despojamento do nosso salvador: no presépio, no rio Jordão do batismo, na casa de Nazaré, nos caminhos percorridos, na cruz e na ressurreição. A prioridade de lugares e pessoas simples ecoa também no documento de Francisco: “Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer“ (EG 47).
A alegria cristã é alegria pascal. Historicamente, a vocação humana para a felicidade “passa sempre pelas sendas do conhecimento e do amor, da contemplação e da ação” (GD, Conclusão 4), da cruz e da ressurreição. E Paulo VI conclui: “Sem ser necessário abandonar uma visão realista [que] as comunidades cristãs se tornem centros de otimismo, em que todos os membros se exercitem vigorosamente no discernir o aspecto positivo das pessoas e dos acontecimentos!” (ibid. 5).
“Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, `àqueles que não têm com que te retribuir´ (Lc 14, 14). […] Hoje e sempre, os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos” (EG 48)! A opção pelos pobres é também uma opção pelos últimos, “por aqueles que a sociedade descarta e lança fora” (EG 195). Na Alemanha nazista, os judeus geralmente não foram os pobres, mas os últimos. O estatuto de alteridade não coincide automaticamente com o estatuto de classe.
A universalidade com prioridades vale não só para os destinatários do Evangelho. Vale também para seus conteúdos. No contexto do ecumenismo, o Vaticano II nos recomendou observar “que existe uma `hierarquia´ de verdades na doutrina católica” (UR 11,3) e, por conseguinte, uma “hierarquia de valores” (GS 37,1). Vale toda a doutrina, mas no anúncio existe uma hierarquia, algo que é mais e algo que é menos importante. O Papa Francisco lembra o “princípio da hierarquia das verdades” (EG 245) e questiona a transmissão “de uma imensidade de doutrinas” em vez da concentração do anúncio ao “essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). Citando São Tomás de Aquino, lembra que “também na mensagem moral da Igreja, há uma hierarquia nas virtudes e ações. […] O elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo” e “a misericórdia é a maior de todas as virtudes” (EG 37).
Seguindo “os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus (Fl 2, 5), […] a Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma `forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja´” (EG 198). O Papa Francisco deseja “uma Igreja pobre para os pobres. […] É necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles: não só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos, a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos quer comunicar através deles” (EG 198). “Sem a opção preferencial pelos pobres, o anúncio do Evangelho […] corre o risco de não ser compreendido ou de afogar-se naquele mar de palavras que a atual sociedade da comunicação diariamente nos apresenta” (EG 199). Francisco pede “novos caminhos” para que as nossas comunidades acolham os pobres e os últimos em primeiro lugar (cf. EG 201).
2.3. A atração
Quando a “Palavra se encarne numa situação concreta e dê frutos de vida nova” (EG 24), quando ela se faz presente no meio dos abandonados e desprezados, ela se torna atraente para o resto da humanidade. Mas, a palavra de Deus não só atrai pelo que faz e produz. Ela é intrinsecamente atraente porque “o Filho feito homem, revelação da beleza infinita, é sumamente amável e atrai-nos para Si com laços de amor” (EG 167). O anúncio e a transmissão da fé proposta no Evangelho acontecem prioritariamente pela atratividade de gestos e não através do proselitismo de palavras: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas «por atração» (EG 14); o “dinamismo evangelizador” atua “por atração” (EG 131).
Os mártires da América Latina não eram caçadores de almas, mas defensores da vida. O conceito de “pastoral integral”, que os norteou, opera pela resposta à atração de Deus pela dedicação e o serviço. A paciência de escutar e servir é mais importante do que a fala normativa, imperativa e impaciente daquele que quer que o outro assuma nossas convicções. Em videomensagem aos seus patrícios, por ocasião da Festa de São Caetano, o Papa Francisco questiona o discurso de convencimento com a finalidade proselitista e pergunta:
Vais convencer o outro a tornar-se católico? Não, não, não! Vais encontrar-te com ele, é o teu irmão! E isto é o suficiente. E tu vais ajudá-lo; o resto é feito por Jesus, o Espírito Santo faz. […] E talvez Jesus te indique o caminho para te encontrares com quem tem maior necessidade. Quando te encontrares com quem tem maior carência, o teu coração começará a aumentar, a crescer, a dilatar-se! Pois o encontro multiplica a capacidade de amar.[4]
Francisco é avesso ao “assédio espiritual” e à redução da religião a prescrições e castigos pelo não cumprimento das “obrigações”. Bem na linha da Evangelii nuntiandi (1975), de Paulo VI, o Papa Francisco sabe que “o homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN 41). E Bergoglio cita a expressão de Bento XVI, que ele qualifica de muito bonita: “A Igreja é uma proposta que chega por atração, não por proselitismo”.[5]
Por isso, ele prefere o discurso de testemunhas convencidos e convincentes na certeza de que Jesus e o Espírito Santo fazem “o resto”. Nosso “ir ao encontro” é a atitude de deixar Deus, através de nós, “atrair” os fugitivos de sua bondade e verdade. No encontro, dia 29 de agosto, com jovens da diocese italiana de Piacenza-Bobbio, na Basílica de São Pedro, o Papa Francisco deu também à verdade essa dimensão do encontro: “A gente não tem a verdade, não a carregamos conosco, mas a gente vai ao seu encontro. É o encontro com a verdade, que é Deus, mas precisamos procurá-la”, ás vezes jogada na lama: “Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a Igreja, aquilo que muitas vezes disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).
A atratividade do anúncio tem suas raízes na partilha da alegria, na visão de um horizonte e na oferta gratuita de um “banquete” com dimensões históricas e escatológicas. Vivemos em tensão entre a conjuntura do momento e a lua […] da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai” (EG 222). Mas a atratividade do Evangelho não é um mecanismo automático (“ex opere operato”). Francisco insiste também no anúncio explícito (cf. EG 110). A atratividade inerente ao Evangelho exige para a sua transmissão uma “linguagem positiva […] para não se ficar pela queixa, o lamento, a crítica ou o remorso” (EG 159, cf. 157).
2.4. O anúncio
O anúncio do Evangelho que, por causa da temática do Sínodo precedente faz parte do subtítulo da Exortação, é um convite para partilhar uma alegria, indicar um horizonte e oferecer um banquete (cf. EG 14; 11). É necessário que esse anúncio “exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que não imponha a verdade, mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza a pregação a poucas doutrinas” (EG 165). Por não excluir nem forçar ninguém, o anúncio é universal e aberto ao mundo. Esse anúncio simplifica a doutrina e “concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). O essencial do cristianismo é Jesus Cristo: “Não pode haver verdadeira evangelização sem o anúncio explícito de Jesus como Senhor” (EG 110). O anúncio do Evangelho “implica tomar muito a sério em cada pessoa o projeto que Deus tem para ela” (EG 160). O caráter trinitário faz parte do “essencial” do querigma como o anúncio do amor de Deus faz parte do primeiro anúncio: “Jesus Cristo ama-te, deu a sua vida para te salvar, e agora vive contigo todos os dias para te iluminar, fortalecer, libertar” (EG 164). Para a centralidade do querigma é importante “que exprima o amor salvífico de Deus como prévio à obrigação moral e religiosa, que não imponha a verdade, mas faça apelo à liberdade, que seja pautado pela alegria, o estímulo, a vitalidade e uma integralidade harmoniosa que não reduza a pregação a poucas doutrinas, por vezes mais filosóficas que evangélicas. Isto exige do evangelizador […] proximidade, abertura ao diálogo, paciência, acolhimento cordial que não condena” (EG 165). Finalmente, “o querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade” (EG 177; 179; cf. 258). Francisco respira o espírito do Documento de Aparecida que ele ajudou a redigir: “A missão do anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo tem destinação universal. Seu mandato de caridade alcança todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência e todos os povos. Nada do humano pode lhe parecer estranho” (DAp 380; EG 183). “A verdadeira esperança cristã, que procura o Reino escatológico, gera sempre história” (EG 183) e a história gera conflitos. Por isso “o anúncio do Evangelho começa sempre com a saudação de paz; e a paz coroa e cimenta em cada momento as relações entre os discípulos. A paz é possível, porque o Senhor venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, «pacificando pelo sangue da sua cruz» (Col 1, 20; EG 229).
2.5. A inculturação
A alegria do Evangelho “não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico” (EG 117). Francisco sonha não só de uma Igreja de portas abertas e que espera nessas portas a humanidade mutilada, mas que vai ao seu encontro nas periferias (EG 20) e no diálogo (EG 165). Lá a igreja aprende a arte do acompanhamento para “dar ao nosso caminhar o ritmo salutar da proximidade, com um olhar respeitoso e cheio de compaixão” (EG 169). A inculturação é um sinônimo do “ir ao encontro” que no diálogo na periferia com os diferentes estratos sociais exige o aprendizado de novas linguagens, “renovação das formas de expressão” (EG 41) e simplicidade de expressão. “A simplicidade tem a ver com a linguagem utilizada. Deve ser linguagem que os destinatários compreendam, para não correr o risco de falar ao vento. […] Há palavras próprias da teologia ou da catequese, cujo significado não é compreensível para a maioria dos cristãos. […] Se se quer adaptar à linguagem dos outros, para poder chegar até eles com a Palavra, deve-se escutar muito, é preciso partilhar a vida das pessoas e prestar-lhes benévola atenção” (EG 158). Esta assunção cultural – muito enfatizada em Puebla (DP 400; GS 22; LG 13; AG 3 e 22) – não só redime a cultura do outro, “mas torna-se instrumento do Espírito para iluminar e renovar o mundo” (EG 132).
Nas novas culturas em formação “o cristão já não costuma ser promotor”, mas receptor de “outras linguagens, símbolos, mensagens e paradigmas que oferecem novas orientações de vida, muitas vezes em contraste com o Evangelho de Jesus” (EG 73).
Os processos de inculturação nos fazem distinguir entre elementos normativos, paradigmáticos e convencionais na expressão da fé (cf. EG 32; 41; 43). O sensus fidei ou fidelium – Francisco fala do olfato do próprio rebanho (EG 31) – “ajuda a discernir o que vem realmente de Deus” (EG 119; cf. 198) e o que é roupagem cultural (cf. EG 118; questões de gênero) ou norma humana (cf. EG 68-70; celibato). A inculturação é o caminho para realizar a catolicidade da Igreja na diversidade pentecostal das culturas: “Nos diferentes povos, que experimentam o dom de Deus segundo a própria cultura, a Igreja exprime a sua genuína catolicidade e mostra «a beleza deste rosto pluriforme»” (GS 40; EG 116).
Por fim, Francisco adverte: “Se deixamos que as dúvidas e os medos sufoquem toda a ousadia [da inculturação], é possível que, em vez de sermos criativos, nos deixemos simplesmente ficar cómodos sem provocar qualquer avanço e, neste caso, não seremos participantes dos processos históricos com a nossa cooperação, mas simplesmente espectadores duma estagnação estéril da Igreja” (EG 129).
2.6. As estruturas
O núcleo das estruturas se insere no campo semântico de relações fraternas que correspondem à mensagem do Evangelho e à organização de sua transmissão histórica. Olhando mais de perto se sobressaem deste núcleo palavras-chave como estruturas hierárquicas e ministeriais, relações entre Igreja local e universal, relações entre povo de Deus e pastores, relações colegialidade e gênero, Igreja sedentária e Igreja caminho, centralização e descentralização. Como era de esperar, a Exortação não se pronuncia sobre todos esses nós que se formaram na garganta da Igreja no decorrer dos séculos. A rouquidão eclesial exige uma radioterapia todo especial. É difícil desatar os nós e separar suas substâncias químicas amalgamadas de poder, cultura e doutrina.
O Papa sabe que a alegria do Evangelho e “uma nova etapa evangelizadora” (EG 17) não vão desabrochar de pessoas tuteladas, mas de pessoas livres e responsáveis. Por isso promete reanimar na Igreja a colegialidade com os bispos: “Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem-nos seus territórios” (EG 16).
As exigências pastorais começam a desafiar as estruturas sacramentais da Igreja. Francisco questiona mecanismos de controle da pureza da fé: “A Eucaristia […] não é um prêmio para os perfeitos, mas um […] alimento para os fracos. Estas convicções têm também consequências pastorais, que somos chamados a considerar com prudência e audácia. Muitas vezes agimos como controladores da graça e não como facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa” (EG 47).
Logo no início de sua Exortação, o Papa Francisco faz uma declaração de boa vontade e admite a “necessidade de proceder a uma `salutar descentralização´” (EG 16). O bispo de Roma, ontem arcebispo de Buenos Aires, traz as feridas do centralismo curial no seu corpo que ele suportou com disciplina inaciana. Na Doutrina Social da igreja, a descentralização não consta como “salutar subsidiariedade”, mas simplesmente como “subsidiariedade” (cf. EG 240). A subsidiariedade não só compete ao Estado para organizar a sociedade, também para a prática das relações entre Cúria Romana e Igrejas locais, a observação dessa subsidiariedade exige mais ousadia, menos “curadoria centralizada”, ou, com as palavras de Francisco: “Ousemos um pouco mais no tomar a iniciativa” (EG 24)!
Em preparação do Sínodo, em outubro 2014, o Papa Francisco fez um ensaio de descentralização e mandou enviar às Igrejas locais um questionário sobre a situação da família. A resposta do Sínodo vai suspender a exclusão da mesa eucarística os divorciados em segunda união? A “salutar subsidiariedade” indica ainda muito vinagre intervencionista no vinho da alegria do Evangelho.
A participação de todos “de alguma forma na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma razão qualquer. Isto vale, sobretudo quando se trata daquele sacramento que é a «porta»: o Batismo”. Essa abertura das portas (cf. EG 47), que exige da Igreja repensar suas estruturas sacramentais, ainda não se mostra suficientemente nas posturas da Exortação, sobretudo quando fala do ministério sacerdotal e da diaconia da mulher. A frase cortante da Exortação sobre o gênero, que mistura o vinho de missa com vinagre, é essa: “As reivindicações dos legítimos direitos das mulheres, a partir da firme convicção de que homens e mulheres têm a mesma dignidade, colocam à Igreja questões profundas que a desafiam e não se podem iludir superficialmente. O sacerdócio reservado aos homens, como sinal de Cristo Esposo que Se entrega na Eucaristia, é uma questão que não se põe em discussão […]. O sacerdócio ministerial é um dos meios que Jesus utiliza ao serviço do seu povo, mas a grande dignidade vem do Batismo, que é acessível a todos.” (EG 103).
A dignidade na base do batismo transfere o caráter teológico da estrutura hierárquica para um caráter mais funcional: “Estamos na esfera da função, e não na da dignidade” (EG 103). Mas a funcionalidade, que é serviço (ministério), fora de uma sociedade de classe não pode ser discutida separadamente da igualdade. Não é Jesus, mas a tradição social, cristalizada na cultura, que pode excluir de serviços e funções. Sempre somos herdeiros de culturas que nos permitem compreender as plausibilidades do nosso mundo a partir daquilo que nos historicamente tornamos. Novamente precisamos distinguir nos gestos e sinais do próprio Jesus entre elementos normativos, paradigmáticos e convencionais.
Nesta questão, o Papa Francisco chegou a limites, não de pensamento, mas de sua margem de liberdade profissional delimitada pela “alfândega” da tradição milenar da Igreja que produziu com os fios do político, cultural, psicológico, convencional e doutrinário um nó górdio. Cortá-lo com a espada significaria ruptura, cisma e guerras fratricidas na Igreja. Entre continuísmo e rupturas encontra-se a reforma das estruturas. Estes são uma exigência da “conversão pastoral” com a finalidade de “fazer com que todas elas [as estruturas] se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de «saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade” (EG 27).
2.7. O diálogo
O diálogo é a energia nuclear que radia em todas as partes da Evangelii gaudium. Inicia com a citação da Ecclesiam suam, carta magna de Paulo VI sobre o diálogo que faz parte da conversão (EG 26), perpassa as dimensões pastorais do diálogo (cap. III): a liturgia é “diálogo de Deus com o seu povo” (EG 137), a dimensão social da evangelização é dialogal (cap. IV) como também as relações ecumênicas (EG 244-246), as relações com o Judaísmo (EG 247-249) e as relações inter-religosas (EG 250-254).
No diálogo pastoral trata-se de um “processo participativo” que visa não somente à participação na Igreja, mas o diálogo com a humanidade (cf. EG 31) e as culturas com suas tendências de segregação e violência (cf. EG 74). Para servir ao pleno desenvolvimento da humanidade e ao bem comum, Francisco aponta três campos de diálogo: “o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica” (EG 238). O interlocutor desse diálogo é o povo e sua cultura, não as elites: “Não precisamos de um projeto de poucos para poucos, ou de uma minoria esclarecida ou testemunhal que se aproprie de um sentimento coletivo. Trata-se de um acordo para viver juntos, de um pacto social e cultural” (EG 239). Esse diálogo exige “uma profunda humildade social” (EG 240).
No diálogo inter-religioso, a verdadeira abertura implica conservar-se firme nas próprias convicções mais profundas, com uma identidade clara e feliz, mas `disponível para compreender as do outro´ e `sabendo que o diálogo pode enriquecer a ambos´ (RMi 56; EG 251). “Os não-cristãos fiéis à sua consciência podem, por gratuita iniciativa divina, viver «justificados por meio da graça de Deus» e, assim, «associados ao mistério pascal de Jesus Cristo»” (EG 254). Porque o Papa cita aqui a Comissão Teológica Internacional, num documento de 1996 (“O cristianismo e as religiões”), e não a Gaudium et spes, com a autoridade coletiva do Vaticano II? Por inconveniência ou autorreferencialidade de colaboradores da Cúria que fizeram enxertos por própria conta? A Gaudium et spes nos diz claramente: “Com efeito, tendo Cristo morrido por todos e sendo uma só a vocação última do homem, isto é divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal” (GS 22,5).
Os sinais, ritos e expressões sagradas de outras religiões “não têm o significado e a eficácia dos Sacramentos instituídos por Cristo” (EG 254). A doutrina oficial do ecumenismo e do diálogo inter-religioso do “Francisco institucional”, que passou pelos filtros da Congregação pela Doutrina da Fé e de outras instâncias curiais, não vai além do Vaticano II e de sua interpretação hegemônica presente, sobretudo, nas posições dos seus antecessores João Paulo II e Bento XVI.
Quem quer saber, o que o Papa Francisco realmente pensa sobre essas questões, precisa ler suas entrevistas, escutá-lo durante suas viagens e interpretar suas tentativas de ir ao encontro do povo simples. Nessas ocasiões aparecem balões de ensaio que marcam o caminho que ainda deve ser percorrido e diálogos de uma cultura do encontro “além fronteiras”: “Sair de si mesmo para se unir aos outros faz bem” (EG 81).
No campo social, o Papa Francisco nos surpreende a cada dia com sinais dessa “cultura do encontro em uma harmonia pluriforme” (EG 220). Na articulação entre as perspectivas, a interna e externa, vale o lembrete que os navegantes de Lübeck mandaram cinzelar no portal de sua cidade hanseática que permitiu gerar e guardar as suas riquezas: concordia domi foris pax – a paz na rua depende da harmonia em casa. Por causa do vinagre ainda guardado nos calabouços do Vaticano, o Papa Francisco nos faz sentir o peso dos desafios herdados no mundo e na própria Igreja, sobretudo “o desafio de descobrir e transmitir a «mística» de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada” (EG 87).
[1] Sergio Rubin / Francesca Ambrogetti, El jesuita: Conversaciones con el cardenal Jorge Bergoglio, Buenos Aires, 2010, p. 128. Tb. CNBB, Papa Francisco: Mensagens e homilias – JMJ 2013, p. 99.
[2] Evangelina Himitian, A vida de Francisco: o Papa do povo, São Paulo, Objetiva, 2013, p. 24s.
[3] O lema do Papa Francisco faz alusão à homilia de São Beda, o Venerável (Hom. 21; CCL 122, 149-151), que comenta a vocação do apóstolo e evangelista Mateus. O texto é lido na Liturgia das Horas na festa de São Mateus, 21 de setembro (cf. Mt 9,9ss).
[4] Videomensagem em: Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, 07/08/13.
[5] Bento XVI na Missa Inaugural da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, Aparecida, 13.5.2007.