Por baixo dos panos e no apagar das luzes, Governo do Estado e Funai atuam como “ponta de lança” no desmonte dos direitos indígenas no RS
No início do mês de dezembro, depois muitas manobras, deputados ruralistas conseguiram instalar a Comissão Especial para tentar aprovar o Projeto de Emenda a Constituição Federal (PEC) 215/2000, que visa transferir do Poder Executivo para o Legislativo, onde a bancada ruralista tem grande peso, a aprovação da demarcação das terras indígenas. O detalhe é que 72% dos deputados que compõe esta comissão são ligados diretamente a setores de interesse dos ruralistas.
Porém, este não é o único golpe que esta sendo articulado neste momento contra os povos indígenas. Se no âmbito do Congresso Nacional, tendo o próprio Governo Federal como instrumento facilitador, os ruralistas encontram coro para o desmonte inconstitucional dos direitos dos povos originários, a nível local, no estado do Rio Grande do Sul, o governo estadual junto com a Fundação Nacional do Índio (Funai) utilizam o Conselho Estadual dos Povos indígenas (CEPI) como ferramenta para promover uma verdadeira campanha de sabotagem aos procedimentos demarcatórios das áreas Guarani e Kaingang. Neste sentido o Governo estadual tem funcionando, de maneira direta, como “ponta de lança” para a implementação prática daquilo que querem os ruralistas e o Governo Federal, com seus projetos de lei e emendas constitucionais.
Diferentemente do que ocorre em outros estados, o Governo do Rio Grande do Sul tem responsabilidade direta no que tange a garantia das demarcações de terras indígenas, uma vez que em muitos casos, os pequenos agricultores foram assentados indevidamente sobre áreas indígenas pelo próprio Estado e, a estes, sobretudo, foram vendidos e concedidos títulos que são constitucionalmente nulos.
Desde junho de 2013, quando o governador Tarso Genro pactuou, inconstitucionalmente, com a Ministra Chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, a paralisação dos procedimentos de demarcação das terras, o movimento indígena assumiu uma postura combativa para cobrar do Governador suas atribuições junto a União: o pagamento da justa indenização dos agricultores que foram assentados sobre as terras indígenas, e, depois disso, as terras serem efetivamente demarcadas.
Porem a resposta do Governo foi ao contrário do esperado. A tática assumida por Tarso Genro e seus secretários de governo foi de apostar em ações políticas para brecar toda e qualquer demarcação. Inclusive, para atingir o objetivo, houve tentativas de cooptação de lideranças indígenas através da oferta de políticas assistenciais de saúde, saneamento, educação e doação de veículos, mas tudo isso condicionado a que as lideranças aceitassem a redução do tamanho das áreas a serem demarcadas. O assessor de gabinete do governador Milton Viário e os secretários Ivar Pavan e Fabiano Pereira foram os encarregados a cumprir esta determinação.
Depois de as manobras terem sido denunciadas pelo movimento indígena e pelas entidades indigenistas, o governo mudou seu discurso e decidiu retirar-se de cena. O Secretário Ivar Pavan em reunião com os indígenas de Passo Grande do Rio Forquilha, realizada em 18 de novembro de 2013, admitiu, na presença do Ministro da Justiça, que o governo foi “insuficientemente habilidoso para com suas pretensões” e, portanto abdicou de sua participação no processo demarcatório.
Afastando-se dos holofotes, mas seguindo com as determinação do Governo Federal de não demarcar absolutamente nenhuma área indígena os agentes governamentais, aproximaram-se dos servidores da Funai e com eles passaram a intervir junto às lideranças e comunidades indígenas, especialmente aquelas que vivem em situação muito precária, com o objetivo de convencê-las a aceitar a permuta de seus territórios tradicionais por pequenos espaços de terra cedidos pelo estado do Rio Grande do Sul. Na prática, o Governo e a Funai tem montado uma política de “negociação” com as comunidades indígenas, na tentativa de convencer, especialmente os Guarani, de que a permuta das terras agilizaria o acesso deles à terra e amenizaria o sofrimento. É importante destacar que as áreas oferecidas pelo governo estadual são, em geral, degradadas (pois se tratam das sobras de empreendimentos e antigos hortos, ou áreas que os interesses dos grandes rechaçaram).
Eles também pressionam, para atender aos interesses de “produtores rurais”, as comunidades para que passem a concordar com a redução dos limites das áreas declaradas como de ocupação tradicional (são os casos de Mato Preto, Irapuã e Passo Grande do Rio Forquilha). Utilizam, como pretexto, o argumento de que o estado, em parceria com a União, garantiria toda a assistência e infraestrutura necessárias nas aldeias. Deu-se inicio a uma verdadeira campanha onde, caso a caso, tem-se tentado convencer as comunidades a abdicarem de seu direito mais profundo e irrevogável, o de terem demarcado seus territórios tradicionais.
Um destes casos ocorreu com a comunidade indígena Mbya Guarani do acampamento do Irapuá localizado no município de Caçapava do Sul, onde há mais de trinta anos, 20 famílias aguardam, em uma faixa de domínio público, o direito de acesso a seu território ancestral, que foi identificado e delimitado pela Funai. No entanto funcionários do Estado, representando a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), e servidores da Funai, tentaram convencer a comunidade a abdicar da luta por sua terra e trocar a área tradicional por duas pequenas porções de terra (05 e 04 hectares) em município vizinhos, cobertas de Pinus e já bastante degradadas. Uma parte dos Guarani rechaçou a proposta e segue esperando que se garanta o direito ao seu tekoha, que historicamente vem sendo reivindicado. Enquanto outro grupo de famílias, que aceitou deslocar-se a uma terra cedida pela prefeitura de cachoeira do Sul, começa a se dar conta de que a área onde foram assentados é pequena e nela não haverá condições de exercer atividades de agricultura e logo, como relata o cacique Lorenço, chegará “no limite do que se pode oferecer aos Guarani.”
Para além da discussão da produtividade e das condições destas diminutas áreas oferecidas, o problema a ser enfrentado é o da negação ao direito de demarcação de suas terras tradicionais. O quesito da tradicionalidade, ou seja, áreas que garantam as condições dos indígenas viverem de acordo com sua cultura levando em conta a presença imemorial de seu povo é justamente o que fortalece a vivência destes povos sobre seu território. Diferentemente de agricultores, os indígenas não buscam apenas hectares suficientes para produzir, mas sim terras que lhes garantam viver de acordo com sua cultura, costumes e tradições. Este princípio, o da tradicionalidade, é aspecto central a ser levado em conta pelos Grupos de Trabalho de Demarcação de Terras da própria Funai.
Lideranças indígenas vêm denunciando as manobras dos agentes do Estado, a exemplo do que ocorreu na aldeia do Moro do Osso, em Porto Alegre, onde o Cacique Valdomiro relata que a Funai, através do seu coordenador de Passo Fundo, ofereceu outra área ao povo Kaingang, condicionando-a desde que se retirassem do território pelo qual lutam há muitas décadas. A liderança Guarani Karaí Papá refletindo sobre a questão avalia: “eles querem tirar nós de onde nós vivemos, para deixar a terra para os interesses do Jurua (branco), na verdade aquilo que o Jurua não quer mais eles oferecem aos Guarani, nós temos que viver com a sobre dos Jurua”.
Outro problema enfrentado pelos Guarani e Kaingang está vinculado ás duplicações de rodovias. Tais duplicações que atingem diretamente e indiretamente as áreas reivindicadas pelos indígenas, como ocorre na BR 116, BR 290 e BR 386, o DNIT fica responsabilizado por garantir compensações a serem revertidas às comunidades. Estas compensações seriam na realidade melhorias de estrutura e condições básicas dos indígenas, podendo, mediante consulta à comunidade, haver compensações de terra, de preferencia no sentido de demarcar ou ampliar a terra tradicional que estes povos reivindicam ou onde já estão vivendo. A Funai, com o apoio de representantes do estado, pretende trocar às terras que estão sendo demarcadas como de ocupação tradicional pelas áreas a serem adquiridas pelo DNIT. Na verdade, ao que parece, o Estado e Funai querem consolidar o que vem sendo denominado de “política do cercadinho”.
No caso das BRs acima referidas é necessário esclarecer que desde 2008 a Funai instituiu grupos de trabalhos para proceder aos estudos de identificação e delimitação de terras. Houve denúncias de que o DNIT adquiriu ou pretende adquirir terras para as compensações em áreas de abrangência dos estudos da Funai, o que é ilegal.
Logicamente, populações indígenas que vivem em situações de maior vulnerabilidade tendem a aceitar estas propostas (em função da aparente solução imediata que elas carregam), pois vislumbram possibilidade de melhorar suas condições de vida. No entanto, é importante lembrar que estas mesmas promessas foram feitas com relação a outras áreas e passados os anos não foram cumpridas. Em casos similares, de que posteriormente o Governo e a Funai fariam a expansão destas mesmas áreas, nunca ocorreu.
Em diversas oportunidades, durante o ano de 2013, em que lideranças indígenas, em suas coletividades, estiveram cara a cara com os representantes governamentais ou com a Funai, rechaçaram com veemência essa política deixando claro que a mesma se tratava de um absurdo inconstitucional. Frente a isso, o CEPI ao invés de respeitar a decisão dos conselhos e fóruns onde as lideranças estiveram reunidas e pronunciaram seu parecer plural, insiste em realizar reuniões com membros isolados de determinadas comunidades para tentar obter êxito no seu planejamento de encontrar soluções tangentes à demarcação de Terras.
Este movimento da parte do governo estadual e da Funai pode ser compreendido como um cabo de força entre os interesses do Governo Federal, do agronegócio e do próprio movimento indígena. Convictos no processo de autodemarcação de seus territórios, comunidades Kaingang como das Terras indígenas de Passo Grande do Rio Forquilha (Sananduva) e Rio dos Índios (Vicente Dutra) acabaram por colocar em xeque-mate os argumentos contrários à demarcação de seus territórios. Em ambos os casos, os pequenos agricultores, caracterizados pelo governo como as vítimas dos “índios” mostraram-se favoráveis aos direitos indígenas, concordam com as demarcações e reivindicam a justa indenização. Mesmo assim, o Ministério da Justiça, o Incra, a Funai e demais instancias das esferas Federal e Estadual, continuam estáticos.
Atualmente os povos indígenas no Rio Grande do Sul ocupam apenas 0,4 por cento do território gaúcho em função do processo de colonização desencadeada sobre seus territórios. Esta ínfima porcentagem de terra será insuficiente para assegurar que estes povos possam ter garantidos, de maneira plena, seus modos de vida e suas culturas. A espoliação dos territórios tem raízes históricas vinculadas à projetos e posturas Governamentais muito similares a esta empregada pelo Governo Dilma, Governo Tarso e pela Funai, como demonstra o artigo de Cleber César Buzzato, Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), intitulado: “Os ciclos colonizatórios no Rio Grande do Sul e os enfrentamentos necessários ao latifúndio na defesa dos direitos territoriais indígenas no Brasil” (https://cimi.org.br/site/ptbr/index.php?system=news&action=read&id=7124).
É lamentável que o governo do estado do Rio Grande do Sul sintonizado com o governo federal, ao invés de assumir suas responsabilidades ajudando a resolver um problema social tão agudo como o dos povos indígenas, utiliza suas estruturas para agir na defesa dos setores ligados ao agronegócio, aos ruralistas. Ao invés de colaborar, o governo esforça-se, a todo custo, para reduzir ainda mais os territórios dos povos originários e brecar as demarcações de terras pelas quais muitas famílias indígenas esperam ao longo de toda a vida.
Os povos indígenas certamente não desistirão de lutar pela garantia de seus direitos. Neste novo ano que se anuncia no horizonte, as forças religiosas dos diferentes povos e os exemplos de resistência que acontecem Brasil a fora (como ocorre no Mato Grosso do Sul, onde os Guarani Ñhandewa de Yvy Katu decidiram defender com a própria vida sua terra) fortalecerão os indígenas “do Rio Grande do Sul” nos embates que travarão para garantir aquilo que lhes é de direito e que não pode mais ser alijado de suas vidas, o acesso a seus territórios tradicionais. Caberá ao Governo e a Funai medirem o peso de suas ações e assumirem as consequências frente as violências que praticam contra aqueles que vivem da terra.
Santa Maria, Rio Grande do Sul, 20 de dezembro de 2013.