Demarcação de terras indígenas e quilombolas: direitos constitucionais transformados em moeda de troca
Por Roberto Antonio Liebgott,
de Porto Alegre (RS)
Ao longo de décadas se consolidou a ideia de que as terras reivindicadas pelos povos indígenas e quilombolas são obstáculos ao desenvolvimento econômico do país, portanto sua destinação deve ser reorientada ao atendimento dos interesses “produtivos”. Funde-se nesta lógica de pensamento duas concepções ideológicas preocupantes: a de que “índios e quilombolas são improdutivos” e, como consequência, tornam-se "descartáveis para a economia” e para a "sociedade de consumo". Depois, que a terra é essencialmente bem a ser mercantilizado e não espaço vivo a ser partilhado e preservado para a continuidade da vida.
A Constituição Federal, em seu artigo 231, estabelece que os povos indígenas são detentores de direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e compete a União demarcá-las. A mesma Constituição, no artigo 68 da ADCT – Artigo das Disposições Constitucionais Transitórias -, consagrou o direito dos remanescentes das comunidades de quilombos às terras que estejam ocupando (artigo regulamentado pelo Decreto 4.887/03).
Os direitos, apesar de expressamente estabelecidos, não são assegurados pelo governo. Além disso, vem se posicionando, especialmente através do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, de forma ambígua no que concerne às suas atribuições constitucionais. Perante lideranças indígenas o ministro garante que demarcará as terras e afirma: “os ruralistas (um dos segmentos que mais se opõem aos direitos indígenas) não terão seus pleitos atendidos pelo governo”. Perante os setores ligados ao agronegócio e o latifúndio, os discursos seguem em sentido oposto, ou seja, anuncia que mudará os procedimentos administrativos de demarcação das terras, chegando inclusive a sugerir que a bancada ruralista no Congresso Nacional construa alternativas legislativas com o objetivo de inviabilizar as demarcações de terras. É o que parece ter ocorrido com a edição do PLP 227/2012: com a desculpa de regulamentar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal, parlamentares ligados ao agronegócio tentam permitir a livre exploração das terras indígenas.
Simultaneamente às ações parlamentares no Congresso Nacional, o governo federal, em articulação com alguns governadores estaduais (do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Paraná), busca consolidar ações administrativas destinadas a atender as expectativas econômicas de fazendeiros e empresários, que têm suas “posses” e interesses dentro de terras indígenas e quilombolas. Tais ações vinculam-se ao pagamento de indenizações pela “terra nua”. A Constituição Federal veda a possibilidade desta prática de indenização quando a terra é caracterizada como sendo de ocupação indígena, e sobre a qual os títulos de propriedade são declarados nulos. Não obstante, a Constituição estabelece que as terras indígenas pertencem à União e compete a ela o pagamento pelas benfeitorias (edificadas dentro de área indígena), quando construídas de boa fé.
A proposta de pagamento pela “terra nua” fundamenta-se no argumento de que os afetados pelas demarcações de terras possuem títulos de propriedade, portanto eles têm um direito que vem sendo violado por outro direito, o dos povos indígenas. Há, no entender do governo, uma sobreposição de direitos e que isso precisa ser equacionado sem lesar nenhuma das partes envolvidas. Justifica-se ainda a existência de títulos de propriedade adquiridos há décadas e até séculos, o que comprovaria a legitimidade destes títulos.
Por sua vez, no caso das demarcações e titulações dos territórios quilombolas, as normas estabelecidas prevêem a indenização pelas benfeitorias e pela “terra nua” àqueles que possuem títulos sobre as áreas a serem demarcadas. Mas, apesar dessa previsão legal, o governo federal não esboça nenhum interesse em proceder a titulação dos territórios das comunidades quilombolas. Ou seja, ao que parece, não são as leis ou a ausência delas o impeditivo para que se reconheça e garanta os direitos dos povos indígenas e quilombolas.
RS: governo Tarso Genro propõe permuta
Há questões mais profundas, além das econômicas, que estimulam e determinam as opções governamentais em atender quase que exclusivamente os interesses de mineradoras, do agronegócio e do latifúndio. Nos fundamentos destas opções residem o preconceito e a discriminação contra povos tradicionais e comunidades quilombolas a quem são imputados (mesmo que subjetivamente) conceitos de improdutividade, incapacidade e falta de humanidade. Ocorre, no caso das garantias constitucionais de indígenas e quilombolas, uma espécie de entendimento consensual no posicionamento anti-indígena de que elas são exageradas e desnecessárias, portanto devem ser burladas, descumpridas e descaracterizadas.
Diante da prepotência e do sistemático desrespeito aos direitos indígenas, faço referência ao que vem sendo proposto no Rio Grande do Sul pelo governo Tarso Genro. Servidores ligados à Secretaria de Agricultura estão visitando comunidades Guarani Mbya para propor a permuta de terra. Ou seja, o governo apresenta pequenas áreas que são de propriedade do Estado e as oferece em substituição às terras reivindicadas pelos indígenas. Há nesta conduta o agravante de que as terras encontram-se em estudo ou já demarcadas pela Funai. Dois casos chamam a atenção: um deles é a terra de Irapuã, onde agentes do governo estadual tentaram convencer a comunidade a aceitar área distante da terra já demarcada. Sobre ela há fazendas, sendo que um dos proprietários é funcionário da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE).
O segundo caso é referente à terra reivindicada pelos Guarani nos municípios de Arroio do Conde e Guaíba, na grande Porto Alegre. A área está submetida ao procedimento de identificação e delimitação desde
Neste contexto, onde direitos são violados inclusive por autoridades do Estado, chega-se a conclusão de que os governos estão mais preocupados em assegurar a "governabilidade" e consolidar alianças tendo em vista mandatos futuros. Para tanto estabelecem acordos e negociam os direitos indígenas e quilombolas com os setores da economia e da política que efetivamente têm o poder de decisão sobre os “rumos do país”. E isso explica, em parte, a omissão, a morosidade e as tratativas por soluções meramente protelatórias ou paliativas aos impasses. Nas reuniões e debates entre governo, indígenas e os afetados pelas demarcações de terras, as alternativas apontadas residem na tentativa de convencer os ocupantes de terras indígenas (de boa ou má fé) de que os pagamentos indenizatórios serão, no momento, mais lucrativos do que o uso e exploração que se faz ou se fará das terras
Essas propostas, se levadas adiante, incorrem em erros graves: primeiro porque trata sem distinção os ocupantes de terras indígenas, e é de conhecimento público que houve invasão e grilagem das terras de ocupação indígena. Portanto, o invés de serem indenizados, os invasores deveriam ser responsabilizados civil e criminalmente pelo uso indevido das terras e pelos danos causados aos povos indígenas. Segundo, aqueles que se dizem possuidores de títulos que incidem sobre terras em demarcação, estão sendo genericamente considerados ocupantes de boa fé. Há necessidade de uma análise profunda de cada caso e realizar levantamentos acerca da cadeia dominial da terra em questão, e com isso identificar os responsáveis pela concessão dos títulos. Se há responsabilidades da União, que esta assuma o ônus; se há culpa dos estados, os governadores devem encontrar meios jurídicos e administrativos para proceder ao pagamento das indenizações.
Caso seja adotado o caminho mais “fácil”, tratando a todos os ocupantes de terras indígenas como legítimos detentores de títulos, a grilagem, os assassinatos de lideranças e as demais violações advindas do terrível processo de esbulho e degradação dos territórios indígenas serão legitimados. Transformarão, na ilegalidade, os direitos indígenas e quilombolas em moeda de troca num balcão de negócios. Nele os ocupantes das terras, de boa ou má fé, terão "o direito" de estabelecer o “melhor preço”. O esbulho e a violência serão legitimados e recompensados com o dinheiro público.