Caminhando para não parar a história: a resistência do povo Mỹky no Mato Grosso
O Povo Mỹky habita a margem direita do rio Papagaio, a
São falantes de uma língua isolada, contatados em 1971, quando eram vinte e três pessoas, pela então Missão Anchieta. De lá para cá, mantém um crescimento demográfico
O povo Mỹky mantêm suas práticas de cultivo tradicionais de grandes roças, comunitárias e familiares, de milho, mandioca, batata, cará branco e roxo, amendoim, algodão, cana e várias espécies de feijão. Também praticam o extrativismo da castanha, caju do mato, tucum, pequi, buriti, e bacaba, entre outras frutas silvestres. Caçam anta, queixada, caititu, primatas, tamanduá, veados, além de pescarem diversas espécies de peixes.
Mesmo realizando expedições na porção de seu território que ficou fora da atual demarcação – em busca de castanha, tucum e demais pontos de coleta e caça -, não é mais possível para os Mỹky manter a tradição dos acampamentos. Isso acontece porque as áreas necessárias à extração desses recursos são atualmente fazendas (propriedades privadas), dificultando a permanência do costume.
Na busca por manter suas práticas tradicionais e sua cultura, o povo iniciou a luta para reaver a integralidade de seu território. Após longos anos de reivindicação e de iniciativas em conjunto com o Ministério Público Federal
A partir daí, o processo de demarcação foi judicializado. Entre decisões ora favoráveis aos indígenas e Funai, ora favoráveis aos fazendeiros, a efetivação do direito constitucional à terra é postergada.
Em maio de 2012 o juiz federal, através de liminar, considerou nulos todos os estudos realizados para a demarcação, atendendo a Associação de Produtores Rurais de Brasnorte (APRUB). A Fundação Nacional do Índio obteve em Brasília decisão favorável junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para dar continuidade aos estudos de revisão e demarcação da Terra Indígena. Para esta decisão também já se conseguiu outro recurso favorável aos fazendeiros. E assim segue até não haver mais possibilidade de recursos.
Enquanto o direito à terra integral não se efetiva, os Mỹky sofrem diversas pressões dos ruralistas de Brasnorte, unidos aos ruralistas de toda a região – Juína, Tangará da Serra, Campo Novo dos Parecis e Sapezal. Essas pressões se expressam por manifestações na cidade de Brasnorte, reuniões de fazendeiros e deputados ruralistas travestidas de audiências públicas em Juína, por campanhas feita no comércio e em outros espaços com panfletos – além de campanhas discriminatórias e criminosas em rádio, jornal impresso local e pela internet.
Ao passo que isso acontece fora da terra, na terra reivindicada vai-se, progressivamente, ocorrendo desmatamentos por supostos “planos de manejo”, destruindo o que se pode, enquanto o processo não chega ao fim previsível que reconhecerá aos indígenas seu direito ao bem roubado.
Para evitar as distorções, ou a visão tendenciosa de alguns interessados, de que a luta deste povo é de agora, recorremos ao histórico descrito por Andrea Jakubasko (2011). Os destaques são nossos:
“No século XIX, em meio ao crescente processo de ocupação do Centro-Oeste, motivado pela extração comercial de poaia e seringa, passando pelas linhas telegráficas e pela Marcha para o Oeste, os povos indígenas sofreram os impactos diretos gerados pelas frentes pioneiras de expansão e, num efeito dominó, a disputa por espaços, terras e recursos naturais deflagrou a intensificação dos conflitos interétnicos. Durante a primeira metade do século XX, os Mỹky procederam a diversos deslocamentos no interior desse território histórico, em função de massacres por seringueiros, ataques de inimigos […] e da proximidade dos não-índios engajados na abertura de estradas e extração da seringa. Em fins da década de 1950, o povo sofreu agudo processo de depopulação ocasionado pela contração de doenças, chegando à beira da extinção, sobrevivendo apenas nove (9) pessoas. Os Mỹky sempre resistiram ao contato, e após inúmeras tentativas de aproximação da Missão Anchieta (MIA) durante a década de 60, o encontro com 23 indígenas ocorreu apenas em 1971. Todas as áreas visitadas, filmadas, fotografadas e descritas pelas sucessivas expedições de contato, como aldeias e áreas ocupadas pelos Mỹky, ficaram fora do traçado da demarcação, inclusive a aldeia onde ocorreu o primeiro contato. Os Mỹky foram empurrados na direção oposta a seu território histórico, arrancados do ambiente que lhes dá sustentação física, histórica e cultural, localizado em regiões de floresta, em meio a um contexto de aliciamento, repressão e ameaças, no litígio com o Sr. Mauro Tenuta – fazendeiro que avançou sobre as terras indígenas com seus tratores, expulsando os Mỹky da aldeia que ele destruiu em 1974, em troca de arroz, açúcar, farinha, feijão, foices, machados, facões e roupas. Dada a interdição das áreas de litígio, após um lento processo jurídico-burocrático, o acordo para demarcação ocorreu em 1978, como medida que atendia aos interesses dos não-índios. Cabe enfatizar que os trabalhos de demarcação da terra indígena foram custeados pelo Sr. Mauro Tenuta, e que a atuação dos missionários da MIA e da FUNAI pautou-se pela intenção de garantir, em caráter emergencial, as condições mínimas de sobrevivência do grupo, completamente fragilizado, frente ao avanço desenfreado das frentes de expansão no Mato Grosso. Desse modo, a definição dos atuais limites da T.I.Menkü aconteceu ao arrepio da legislação vigente à época, (Decreto 76.999/76 e a Lei nº 6.001/73), em um processo pautado pelo vício, dolo e esbulho renitente desconsiderando a totalidade das áreas tradicionalmente ocupadas pelos Mỹky, uma vez que a demarcação física baseou-se na área definida pelo Auto de Reintegração de Posse (1974), excluindo-se até mesmo as aldeias avistadas pelas expedições de contato, bem como as regiões do Jenipapo, do Castanhal, Tucunzal e nascentes do Rico e Águas Claras, utilizadas intensamente pelos Mỹky.”
Sem a necessidade de recorrer ao histórico matogrossense de distribuição de terras pelos antigos governadores a parentes e amigos, estes elementos provam por si só os vícios no primeiro processo demarcatório – e a necessidade de corrigir este crime para com esta comunidade já tão violentada.
Mais recentemente, fatos mais que absurdos somaram-se às diversas formas de pressão e esbulho efetivado por quem, por um lado, se nega a reconhecer o direito dos Mỹky – e por outro busca extinguir o mais rápido possível os bens naturais ainda presentes nesta porção rara da biodiversidade brasileira.
No dia 12 de maio de 2013 um indígena Mỹky que estava na sede do município de Brasnorte foi abordado e preso por três policiais. Ao questionar o motivo de sua prisão, recebeu a resposta de que estava sendo preso “porque era índio e tava mexendo com terra”. O indígena não foi levado para a delegacia, mas para as proximidades do rio do Sangue (a cerca de 30km de Brasnorte), onde foi ameaçado e agredido fisicamente.
Segundo o indígena, os policiais perguntaram: "Para que os índios que não trabalham querem terra?". Disseram ainda que ele, o indígena, não tinha visto nada, mas se a terra sair ele iria ver o que iria acontecer com ele. Posteriormente, os policiais foram embora, o indígena esperou na referida casa abandonada, saiu andando pela estrada, rumo à cidade de Brasnorte, onde chegou ao amanhecer.
Um mês após este estes fatos, Marcelo Pietsch, presidente da Associação dos Comerciantes de Brasnorte, dono de uma olaria e que tem terras na área reivindicada pelo povo Mỹky, foi à rádio local fazer uma "denúncia" – que, na prática, se mostrou um incentivo explicito para que a população local reaja contra os indígenas, aderindo à campanha contra esses povos.
A suposta denúncia está na página do Facebook de Willian Braz Oliveira, sendo compartilhada por várias pessoas. Entre os comentários, há apelos a violência, discriminação e desrespeito aos direitos humanos. Este ataque aconteceu às vésperas da manifestação organizada pela FAMATO, quando os fazendeiros de Brasnorte e de outras regiões de Mato Grosso buscavam angariar adeptos para pressionar contra as demarcações dos territórios indígenas e em favor da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 215, que tramita na Câmara dos Deputados.
Utilizando-se de outras campanhas também de cunho racista e discriminatório – uma delas teve por base falsas acusações de infanticídio contra indígenas e uma vídeo montagem, já desmentida, em que se visualizaria o suposto enterro de uma criança indígena -, Pietsch inflama a população contra os indígenas dizendo que durante festa na cidade um indígena teria agredido uma criança cadeirante, vinculando a suposta agressão ao que chamou de "tradição cultural" de infanticídio.
Entre seus argumentos, o presidente da Associação afirmou coisas como: “em algumas comunidades, a mãe pode matar um recém-nascido, caso o mesmo possua deficiências físicas, ou ainda esteja amamentando outro, ou se o sexo do bebê não for o esperado. Para a maioria dos índios, o nascimento de gêmeos ou crianças anômalas indica promiscuidade da mulher durante a gestação. Ela é punida, e os filhos, enterrados vivos. É importante ressaltar que não são apenas recém-nascidas as vítimas de infanticídio. Há registros de crianças de 3, 4, 11 e até 15 anos mortos pelas mais diversas causas".
Pietsch continua: "e já que falamos em ‘Tradição Cultural’, podemos fazer uma comparação dessa tradição com o que é vivido por esses supostos nativos. Os mesmos nativos que matam crianças por acreditarem nas tradições, usam celulares, tem barco a motor, motocicletas, caminhões e caminhonetes. Os mesmos nativos que cometem a atrocidade chamada infanticídio participam de manifestações clamando por mais terras. Esses nativos dos quais me refiro, são os mesmos, que você e eu encontramos comprando e na maioria das vezes roubando em lojas e supermercados, são os mesmos que dirigem nas vias públicas sem o mínimo de noção de trânsito, são os mesmos que bebem em festas de tradições do homem branco, com a total certeza de impunidade!”
Na página de Oliveira ainda, o comentário de chamada é: "nossos índios matam crianças portadoras de necessidades especiais?", ao que seguem inúmeros comentários de seguidores, que reverberam palavras de discriminação e declarações de que os indígenas “são maus”, “parasitas” e “selvagens”.
Alem da veiculação de entrevista no dia 11 de junho, a rádio Transamérica local repercutiu comentários em outros dias.
Em documento encaminhado ao Ministério Público Federal, a organizações de Direitos Humanos, ao Ministério das Comunicações, Funai e outros órgãos, a comunidade Mỹky desmentiu a suposta agressão “denunciada” por rádio e internet. Indígenas de outros povos conversaram com a família da criança cadeirante, que afirmou não concordar com as declarações vinculadas por Marcelo Pietsch.
O incentivo à violência contra os Mỹky segue, enquanto não agem os órgãos responsáveis pela fiscalização e garantia de que, visto que está sob litígio, não se efetivem supostos planos de manejo ou novos desmatamentos para soja e eucalipto, como os que estão em curso.
Os Mỹky, resistentes, mas preocupados com os fatos absurdos que lhes atinge diretamente, seguem questionando:
“Quando a nossa terra vai ser demarcada, homologada e devolvida para o nosso povo? Nós queremos a nossa terra de volta, pois ela é nossa e os fazendeiros a tomaram. Nós precisamos da terra para viver, pois nascemos lá.
Nós estamos preocupados com as árvores que eles estão tirando e também com os moradores das árvores, os espíritos que estão morrendo ou fugindo para outro local. Estas árvores são a Casa dos Espíritos que controlam a chuva, o tempo, o vento, o raio. Eles ficam dentro dos troncos das árvores grandes, aí eles choram ao amanhecer, porque as árvores estão morrendo. Então a gente fica preocupado em não derrubar mais, porque as árvores controlam.
Os espíritos da mata ficam bravos porque a casa deles vai ser destruída e cai. Eles (espíritos) ficam bravos, pegam o espírito da gente e matam ou machucam a gente com os galhos que caem em cima.
O Mumju’u (Mãe de Chuva) é igual o tamanduá (na aparência): quando destrói a árvore, ele morre ou vai embora, ai não chove mais e fica seco, por isso está mudando a chuva. Se morrer tudo, vai secar a água e aí vem o sol muito quente, porque eles gostam de viver assim na mata fechada. Assim o tempo fica seco e não pode por fogo, porque queima tudo, por isso que tem que fazer aceiro. A árvore grande faz sombra e umidade, quando a gente anda, segura o sol muito quente.
Os pássaros e os animais, assim como o ser humano, dependem também da água e da fruta da mata, por isso não pode fazer pulverização de veneno com secante na nossa terra. Está matando as árvores e contaminando a água das nascentes que correm para o rio.
Os animais que nós caçamos, porco, anta, cateto, paca e cutia, estão comendo na lavoura de soja e se contaminando com o veneno, que depois vai envenenar a gente, que come a carne da caça. Alguns animais estão em extinção por causa do desmatamento e queimada que os brancos fazem na nossa terra.”
Em seu mito de origem, os Mỹky saíram de dentro da pedra, e caminham nesta vida rumo à ‘Grande Casa’. Vencendo a “dureza” já em sua gênese, os mais velhos afirmam que não se pode parar de caminhar – como reforçam em seus rituais -, pois senão a história pára.
É assim, caminhando, que os Mỹky fazem e refazem sua história, resistindo às ameaças, às efetivas violências e ensinando que RESISTÊNCIA e RESILIÊNCIA, além de gente, também é sinônimo de Mỹky.