06/02/2013

Premissas universais do reino do agronegócio

Em contextos de globalização eclodem práticas culturais, religiosas, econômicas, sociais diversificadas, que adquirem visibilidade e confrontam as noções de unificação. Contudo, nestes mesmos contextos, não raramente ocorre um recrudescimento dos fundamentalismos, que conferem caráter absoluto a um ponto de vista, como se este fosse a verdade irrefutável, a única direção, que então deveria ser seguida sem questionamentos.

 

Ocorre, no Brasil, algo semelhante. Nunca como hoje, as diferenças tiveram tamanho espaço de expressão, o que oportuniza a emergência de múltiplas formas de pensar e de vislumbrar o “futuro da nação”. Contudo, vemos emergir também aqui um tipo particular de fundamentalismo – vinculado a um único ponto de vista sobre o desenvolvimento nacional, tomado então como absoluto, inquestionável, verdadeiro e bom em si mesmo. Esse novo “desenvolvimentismo” emerge como uma urgência, que deveria ser assumida como prioridade política e pública, acima de qualquer outro aspecto da vida social ou, melhor ainda, submetendo tudo o que é social ao plano das métricas e equações econômicas.

 

O historiador inglês Eric Hobsbawm, considerado um dos mais importantes intelectuais do século XX, afirma que o pensamento econômico vigente se vale de uma retórica teológica, embora seja, como sabemos, contingente e dependente de condições políticas e históricas específicas. Para o historiador, o modelo capitalista, em sua forma atual, tem apelos semelhantes aos do discurso religioso. 

 

Seguindo esta linha argumentativa, pode-se dizer que o desenvolvimentismo se sustenta numa fé suprema – a fé no caráter redentor do mercado – de tal modo que, mesmo quando todos os indicadores demonstram que o caminho é tortuoso e incerto, acredita-se que seja linear, quase como se fosse um destino. A fé é um elemento central no manejo dessa retórica: é preciso crer fielmente que não há saídas para a crise energética, a não ser a construção de hidrelétricas gigantes; é uma questão de fé imaginar que os recursos naturais são inesgotáveis e uma questão de (má)fé afirmar que recursos contingenciados e, portanto, não aplicados em saúde e educação serão revertidos em benesses para todos. Um dos braços mais vigorosos e convictos desse novo tipo de fundamentalismo é o “culto” ao agronegócio.

 

Mesmo não tendo base religiosa, o agronegócio possui um “catecismo”, no qual um conjunto de pressupostos é tomado como absoluto – destaca-se, entre eles, o uso “racional” (leia-se exaustivo) das terras para assegurar a elevação da produtividade, maximização dos resultados e dos lucros, conversão da natureza em recurso, conversão do trabalhador do “campo” em um empreendedor, conversão dos direitos de cidadania em direitos de consumo.

 

Mesmo não tendo base étnica, o fundamentalismo ligado ao agronegócio produz como efeito o ódio ao outro – ao diferente, a todo aquele que supostamente se contrapõe às premissas do desenvolvimento rural, a toda coletividade que não se enquadra, que não se converte ao modelo produtivista, que não professa a mesma crença. E a retórica do agronegócio tem claramente uma base social, uma vez que nele se marca a classe representada, aquela que define o caráter e a urgência das ações e políticas de desenvolvimento para o espaço rural.

 

A vivência deste tipo contemporâneo de fundamentalismo produz também “pastores”, ou seja, aqueles fervorosos porta-vozes, que expressam sem escrúpulos as premissas absolutizadas da fé que professam. Esses porta-vozes profetizam tempos de prosperidade, advindos da máxima produtividade e da vocação para a exportação de produtos oriundos dos negócios rurais. Conforme Kátia Abreu, no texto intitulado “Entre o passado e o futuro”, publicado na Folha de S. Paulo em 19/01/2013, “a moderna empresa agrícola é de alta produtividade, com uso intensivo de tecnologia”, portanto é para poucos, apenas para quem dispõe de capital para isso.

 

Os porta-vozes profetizam também os horrores de um mundo mantido na desordem e no caos dos assentamentos, da agricultura familiar, espaços nos quais a produção é operada em pequena escala e baseada no pluricultivo. Kátia Abreu afirma no mesmo texto que “a produtividade dos assentamentos é pífia, muito abaixo da média nacional”, o que mostra mais uma vez que a premissa da produtividade em larga escala é tomada como absoluta.

 

Esses “visionários” do agronegócio alertam, por fim, para os desastres da manutenção de terras produtivas nas mãos de comunidades indígenas, indignas de viver nesse novo tempo, nesse novo mundo do desenvolvimento, visto sob uma única ótica. O arqui-inimigo desta nova “guerra santa” não é, certamente, Satanás, aquele que habita tradicionalmente o fogo do inferno, e sim aqueles que habitam tradicionalmente as terras que hoje deveriam ser convertidas em “modernas empresas rurais”, terras predestinadas (conforme estas sagazes profecias) à produção em larga escala de alguma coisa para o presente (afinal, dentro desta lógica, para que manter áreas de floresta, reservas ambientais ou essas tais terras indígenas como espaços indisponíveis para o mercado, quando essa suprema força produtiva pode e deseja ardentemente expandir suas fronteiras?).

 

O conjunto de premissas desenvolvimentistas, tomadas como “naturais”, explica porque a presidente Dilma recebeu, no último dia 04, diretamente das mãos do presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de MS, Eduardo Riedel, um documento demonstrando os efeitos da demarcação de novas áreas indígenas em Mato Grosso do Sul, mas não recebeu (em mais de dois anos de mandato) diretamente das mãos dos índios qualquer documento que demonstre os efeitos desumanos da omissão do estado em promover a efetiva demarcação das terras de povos que vivem hoje confinados em pequenas áreas ou acampados às margens de rodovias.

 

Aqueles que se contrapõem a tais premissas e defendem, por exemplo, o direito dos povos indígenas à terra, são chamados de nostálgicos, utópicos e “ongueiros”. Mais do que isso, questionam-se os direitos destes povos, com o argumento de que se trata de muita terra, já que, “no mais das vezes, os índios não produzem uma mandioca pra chamar de sua”, conforme Reinaldo Azevedo escreveu no seu blog, publicado no site da Veja, em 28/01/2013.

 

Além das constantes perseguições a lideranças indígenas, um exemplo recente dessa nova “caça aos ímpios”, foi a reação ao texto escrito por Dom Tomás Balduíno, publicado no jornal Folha de S. Paulo, no qual confronta premissas do agronegócio. Dom Tomás é chamado por Reinaldo Azevedo, de estranho “homem de Deus”, pois se atreve a opinar sobre assuntos “profanos”, mas a ironia é que esses assuntos assumem, na atualidade, um viés sagrado.

 

O que torna mais difícil contestar os fundamentalismos econômicos é o fato de que dificilmente se admitirá o radicalismo das premissas de mercado e a arbitrariedade das regras que definem o que é produtivo, o que é prioritário. Tal como em outras formas de pensamento fundamentalista, o braço do agronegócio também exige “a cabeça” de seus oposicionistas, prática que envolve, inclusive, desautorizar ou desacreditar quem se atreve a apresentar resistência (são exemplos disso o questionamento sobre a “capacidade” dos índios de serem mentores de suas ações e reivindicações, que se pode ler em diferentes fontes, ou a suspeita lançada sobre a autoria do texto de Dom Tomás Balduíno – “se escrito por ele, isso já não sei”, no Blog de Reinaldo Azevedo, em 25/01/2013).

 

Tal como nas velhas práticas coloniais, o agronegócio requer a abertura de campos nos quais se possa ceifar “livremente” vidas humanas – aquelas gentes incompetentes, pouco ajustadas, pouco convictas, pouco dispostas à redenção. Tem-se aqui a banalização da vida e são oferecidas, no altar do sacrifício, as condições de sobrevivência, de saúde, de educação, de bem estar de muitos, para o deleite absoluto de alguns segmentos empresariais no “templo” do mercado e do consumo.

 

Iara Tatiana Bonin

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

 

Fonte: Iara Tatiana Bonin
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