Em processo político, Júri Popular selará destino de vice-cacique Xukuru
Por Renato Santana,
de Brasília
A história de resistência dos Xukuru do Ororubá, indígenas do agreste de Pernambuco, registrará nesta quinta-feira, 5, mais uma dura batalha contra a criminalização das lideranças do povo. O vice-cacique José Barbosa dos Santos, mais conhecido como Zé de Santa, irá a Júri Popular acusado de ser o mandante do assassinato de Chico Quelé, ocorrido em agosto de 2001 dentro da Terra Indígena Xukuru, situada no município de Pesqueira.
Quelé, destacada liderança Xukuru, sofreu uma tocaia perto de Pedra D’Água, área ritual do povo na Serra do Ororubá. A morte ocorreu três anos depois do assassinato de cacique Xikão, em 1998. Na ocasião, Zé de Santa também foi acusado pela Polícia Federal de estar por trás da morte do cacique, mas logo a tese foi derrubada: o fazendeiro Zé de Riva acabou preso como mandante do assassinato de Xikão.
“Então essas acusações estão no contexto da luta pela terra. Por mais que a tenhamos agora de forma definitiva, ainda tem a perseguição policial e judiciária”, afirma Zé de Santa. O indígena diz estar preocupado com o que pode acontecer, pois os interesses não-indígenas sobre as terras Xukuru permanecem. “Temo pela minha vida. Não sei o que pode acontecer se eu for preso”, diz o indígena.
O julgamento ocorrerá na 28ª Vara Federal da Subseção de Arcoverde, município do sertão pernambucano. Conforme os advogados de Zé de Santa, entre eles Adelar Cupsinski, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não há provas que incriminem o indígena que não sejam derrubadas por argumentos e fatos consistentes para comprovar a inocência do acusado.
“Não há nada que ligue Zé de Santa ao assassinato. O que temos é um processo político, que remete a histórica disputa pela terra de ocupação tradicional dos índios Xukuru”, declara Cupsinski. A opinião é compartilhada por especialistas. A antropóloga e professora da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), Vânia Fialho, escreveu um extenso relatório, anexado aos autos de defesa do vice-cacique, mostrando que desde o século XVI o povo Xukuru sofre com sucessivas criminalizações, sendo os indígenas taxados no processo histórico de bandidos e assassinos – durante um longo período da colonização os Xukuru não podiam assumir a identidade indígena.
Santuário na Serra do Ororubá
A morte de Chico Quelé foi uma emboscada. “Tínhamos uma reunião com a Funai no posto do órgão que fica dentro da terra Xukuru. Um dia antes a administração do órgão desmarcou, marcando para outra data. Na manhã da nova data, eu estava na aldeia São José esperando as lideranças para a reunião quando um irmão de Chico chegou dizendo que ele tinha sido assassinado perto de Pedra D’água. Eu estava distante uns quatro quilômetros do corpo já sem vida de Chico”, conta Zé de Santa.
De acordo com a acusação, baseada na investigação da Polícia Federal, concluída 15 dias depois do assassinato, o indígena arregimentou outro Xukuru, João Campos, para executar Quelé. Campos morreu no ano passado, vítima de um câncer no estômago; para Zé de Santa, a razão da doença é clara: “O João sofria muito com essa acusação. Chico era muito querido, um lutador do nosso povo e por mais que não fosse de sangue, era nosso irmão porque é assim que os Xukuru se tratam: como irmãos”.
Chico Quelé, desde os tempos de Xikão, se destacava pelo empenho em retomar o território de ocupação tradicional. Depois da morte do já lendário cacique, Quelé seguiu na mesma linha, ao lado de dona Zenilda, viúva de Xikão, Zé de Santa, Pajé Zequinha e tantas outras lideranças do povo Xukuru, que também sofreriam processos de criminalização. Com a homologação do território, em 2001, os fazendeiros invasores mudaram de tática e para manter a obtenção de lucros com a terra buscaram convencer os indígenas a construírem nela um santuário destinado a Nossa Senhora das Graças, supostamente vista por duas meninas na aldeia Guarda 70 anos antes.
Uma pequena parcela dos Xukuru concordou com a ideia, que envolvia a construção de hotéis, estacionamento para cinco mil carros e demais estruturas para a recepção aos romeiros. Porém, Chico Quelé, Zé de Santa, dona Zenilda, Pajé Zequinha e a ampla maioria das lideranças disseram que o território seria ocupado pelos índios, apenas; Quelé, inclusive, dizia que o santuário só sairia sobre o seu cadáver. A divisão do povo, também explicada do ponto de vista antropológico pela professora Vânia Fialho nos autos de defesa, culminou no assassinato de Chico Quelé.
Dois anos depois, em 2003, cacique Marcos, filho de Xikão e recém alçado à função de cacique Xukuru, sofre um atentado na estrada que corta a terra indígena. Dois indígenas, um Atikum e outro Xukuru que faziam a segurança de Marcos, já ameaçado, acabaram mortos no conflito direto com os pistoleiros; o cacique escapou e buscou proteção nos rochedos típicos do agreste. A construção do santuário serviu de motivação ao atentado, pois Marcos manteve a posição contra o empreendimento.
“A elite ainda está lá
Histórico de criminalização
Do processo de lutas iniciado por cacique Xikão ainda nos anos 1980 até a retirada completa dos não-indígenas do território, os Xukuru sofreram e ainda sofrem com a criminalização da Polícia Federal e Poder Judiciário. No Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), com sede em Recife, corre processo contra 34 indígenas acusados dos mais diversos crimes durante retomada da Vila de Cimbres, logo após o atentado sofrido pelo cacique Marcos, que configura entre os acusados. Se condenados pegarão dez anos de prisão.
“A prática que observamos da polícia ao longo desses 30 anos é de acusar em primeiro lugar as lideranças indígenas por supostos crimes. Na morte de cacique Xikão foi assim: primeiro acusaram a viúva, dona Zenilda, depois Zé de Santa até que as provas deram conta de que foram pistoleiros a mando do fazendeiro Zé de Riva”, analisa o secretário adjunto do Cimi, Saulo Feitosa.
Zé de Santa lista os Xukuru já apontados como assassinos em processos de criminalização: dona Zenilda, Toinho e Augusto Pereira, cacique Marcos e ele. A criminalização é tão latente que o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, chegou a intervir e em 2003 impedir que Zé de Santa fosse preso pela morte de Quelé alegando que não existiam provas capazes de condenar o vice-cacique. Todavia mais casos condenam o povo Xukuru.
No posto da Funai situado dentro do território, dois outros indígenas pagam pena acusados de matar o filho de Chico Quelé. Rinaldo Feitoza Vieira e Edmilson Guimarães foram apontados como os culpados pela morte depois de dois meses do assassinato. Provaram que não estavam no local e na hora do crime, mas não foi o suficiente para inocentá-los. Nem mesmo o fato do crime ter ocorrido numa madrugada de intenso nevoeiro dissuadiu as autoridades do entendimento de que uma testemunha os identificou; tampouco que ambos não sabem pilotar motocicleta, transporte usado pelos assassinos.
“Nada é capaz de parar o povo Xukuru. São séculos de violências contra a gente. Não matei o Chico nem ninguém. Dói pensar que posso pagar por algo que não fiz, mas esse é o preço da luta por nossa terra”, encerra Zé de Santa, com os olhos marejados, mas firmes.