PEC 215: as bancadas ruralista e evangélica contra os povos indígenas
“Os povos indígenas precisam ter clareza de que não podem ficar esperando o apoio do governo no enfrentamento à PEC 215. No bojo das opções governamentais, a mudança na Constituição pretendida pela PEC é conveniente para o governo”, adverte o secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Confira a entrevista.
“O Estado brasileiro historicamente incentivou o preconceito em relação ao jeito de ser dos povos originários, bem como a invasão e a depredação dos territórios ocupados tradicionalmente”. É a partir dessa constatação que Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi, diz que a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição – PEC 215/2000 pela Comissão de Constituição e Justiça – CCJ da Câmara reforça a posição do governo federal pelo desenvolvimentismo baseado no agronegócio, na reprimarização da economia e na exportação.
Buzatto acompanhou a votação da PEC 215/2000 noCongresso Nacional junto dos povos indígenas e relata que “é evidente a existência de uma aliança” entre diferentes bancadas congressistas, que pretendem enfraquecer os direitos dos povos indígenas e quilombolas assegurados pela Constituição Federal. “As bancadas ruralista e evangélica estão votando em bloco contra os povos indígenas. São parlamentares de diferentes partidos, independentemente de estarem ou não na base de governo ou na oposição a ele. Votaram a favor da PEC todos os deputados do PMDB, PP, DEM, PSD, PR, PSDB, PTB, PDT e PPS. Apenas os representantes do PT, PCdoB, PSB e Psol se movimentaram contra a aprovação da PEC na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ”.
Em sua avaliação, os parlamentares querem alterar a Constituição Federal para garantirem a ampliação do “acesso ao território brasileiro por parte um grupo muito reduzido e já intensamente privilegiado de grandes fazendeiros e grandes empresas transnacionais que atuam no Brasil”. Caso a PEC 215 seja sancionada, poderá paralisar o processo de demarcação das terras indígenas. Segundo Buzatto, das 1.046 terras indígenas, somente 363 estão regularizadas. “335 terras encontram-se em alguma fase do procedimento de demarcação e outras 348 são reivindicadas por povos indígenas no Brasil. Mas até o momento o órgão indigenista não tomou nenhuma providência a fim de dar início a sua demarcação”, informa à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele avalia as implicações da PEC 215/2000 e assegura que a não realização da reforma agrária e a intensa retração dos processos de demarcação das terras indígenas “não são frutos da falta de planejamento do governo, mas de decisões e opções políticas bem delimitadas”.
Cleber César Buzatto é graduado
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o Cimi recebeu a notícia de aprovação da PEC 215/2000 pela Comissão de Constituição e Justiça – CCJ da Câmara? E como se posiciona diante dessa matéria?
Cleber César Buzatto – A aprovação da PEC 215/2000 pela CCJ foi recebida com perplexidade e grande indignação pelo Cimi. Acompanhamos passo a passo, junto com lideranças de povos indígenas de todas as regiões do país e com representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, desde o mês de novembro de 2011, todas as sessões da Comissão que trataram sobre a matéria. Fizemos todos os esforços possíveis para evitar a votação da PEC e participamos do protesto realizado pelos povos indígenas na própria CCJ e no interior da Câmara dos Deputados por ocasião da aprovação da PEC. O Cimi assume posicionamento radicalmente contrário à continuidade da tramitação da PEC 215 no Congresso.
IHU On-Line – Como a notícia da aprovação da PEC215/2000 está repercutindo entre as comunidades indígenas?
Cleber César Buzatto – A aprovação da PEC pela CCJ está causando muita revolta junto dos povos indígenas de todo o Brasil. Nossa avaliação é de que essa revolta poderá, em breve, se transformar em ações de repúdio e protesto, em várias regiões do país, por parte dos povos.
IHU On-Line – Por que a PEC 215/2000 foi retomada neste momento? Que circunstâncias políticas trouxeram à tona essa discussão?
Cleber César Buzatto – Vivemos um momento histórico de fortalecimento político e econômico de setores da sociedade que, historicamente, defendem teses conservadoras e elitistas. A opção do governo Lula, ainda mais explícita com Dilma, pelo desenvolvimentismo, fundado na reprimarização da economia e na exportação, veio acompanhada da opção pelos setores da sociedade que “precisariam” ser incentivados para implementá-lo bem como daqueles que deveriam ser “inibidos” por representarem “riscos” à sua implementação.
Desenvolvimentismo
No campo, a opção governamental foi pelo agronegócio e seus atores sociais: os grandes fazendeiros e latifundiários, produtores de commodities, e as empresas transnacionais, que controlam toda a cadeia de produção, comercialização e exportação desses produtos. Os discursos de Lula, em diferentes momentos, tratando os usineiros – reconhecidos depredadores do meio ambiente e responsáveis pelo assassinato de dezenas de lideranças sociais na disputa pela terra ao longo da história – de “heróis nacionais”, bem como a referência explícita aos povos indígenas como “entraves ao desenvolvimento”, são sintomáticos e simbólicos nesse sentido.
Essa opção vem se traduzindo também em ações governamentais concretas. O exponencial aumento do crédito aos grandes proprietários, a não realização da reforma agrária sem que nem ao menos tenha sido feita a atualização dos índices de produtividade – que remontam à década de 1970 – e a intensa retração dos processos de demarcação das terras indígenas no país não são frutos da falta de planejamento do governo, mas de decisões e opções políticas bem delimitadas.
Agronegócio sem limites
Essa opção governamental fortaleceu ainda mais um setor amplamente minoritário social e historicamente privilegiado de nosso país. A essa altura, é importante termos presente que os representantes do agronegócio não têm limites em suas pretensões e ações. Na ponta, seus atores principais são responsáveis pelo assassinato de líderes sem terra, quilombolas, defensores do meio ambiente, de indígenas. Está aumentando o número de casos em que, não se satisfazendo em matar essas lideranças, avançam a um ponto tão alto de selvageria e desumanização que “escondem” os corpos dos assassinados. No Congresso, vaiando publicamente os assassinados, congressistas vinculados a esse setor aplaudem os assassinos e desferem ataques ferozes, raivosos e sistemáticos contra toda a legislação que garanta direitos sociais e ambientais.
Assim, a tramitação da PEC 215 na Câmara vem na esteira das opções do governo e da falta de limites dos atores escolhidos para implementar suas opções político-econômicas.
IHU On-Line – Qual a postura do Estado brasileiro diante dos povos indígenas? O governo poderia ter evitado a votação desta PEC?
Cleber César Buzatto – O Estado brasileiro historicamente incentivou o preconceito em relação ao jeito de ser dos povos originários, bem como a invasão e a depredação dos territórios ocupados tradicionalmente. Centenas de povos foram dizimados em função disso. Dezenas de outros povos foram expropriados e muitos continuam vivendo sem terra sob barracos, em beiras de estradas e rios nas mais diferentes regiões do país.
Os povos indígenas nunca aceitaram essas situações e, com muita luta, enfrentamentos e articulações conquistaram direitos explicitados especialmente nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Observamos hoje a existência de uma espécie de pacto entre os três poderes do Estado brasileiro no sentido de dificultar e impedir a implementação e, até mesmo, desconstruir os direitos desses povos.
Votação da PEC 215
O governo poderia ter evitado a votação da PEC 215 na CCJ. Lideranças indígenas manifestaram, com grande clarividência, ao líder do governo na Câmara, ao Ministro da Justiça e a outros interlocutores, a posição contrária à PEC e à necessidade de uma ação efetiva por parte do governo para impedir a votação. Mas a opção do governo, ao não se manifestar, foi pela aprovação da matéria. O autor do relatório aprovado que admite a constitucionalidade da Proposta é, nada mais nada menos, do que o vice-líder do governo na Câmara, o deputado federal Osmar Seráglio, PMDB do Paraná. Os poucos deputados que se posicionaram e agiram contra a aprovação da PEC não receberam nenhuma manifestação de apoio por parte do núcleo do governo.
Penso que os povos indígenas precisam ter clareza de que não podem ficar esperando o apoio do governo no enfrentamento à PEC 215. No bojo das opções governamentais, a mudança na Constituição pretendida pela PEC é conveniente para o governo. Se não houver mudanças nos rumos até então tomados, não acredito em posição sincera de que o governo tenha posição contrária a esta PEC. Assim, ao contrário do que a mídia tem alardeado, entendo que o governo não foi derrotado nesta matéria. Quem perdeu realmente foram os povos indígenas, os quilombolas, o meio ambiente e a sociedade brasileira como um todo. São esses setores que precisam se mobilizar para evitar a consumação de mais esse retrocesso.
IHU On-Line – Quais bancadas congressistas defendem a votação da PEC 215/2000? O que os parlamentares pretendem com essa mudança na lei? Quem se beneficiará com essa alteração?
Cleber César Buzatto – No Congresso, é evidente a existência de uma aliança bem costurada entre diferentes bancadas em votações que pretendem atingir direitos e ou a imagem dos povos indígenas. As bancadas ruralista e evangélica estão votando em bloco contra os povos indígenas. São parlamentares de diferentes partidos, independentemente de estarem ou não na base de governo ou na oposição a ele. Votaram a favor da PEC todos os deputados do PMDB, PP, DEM, PSD, PR, PSDB, PTB, PDT e PPS. Apenas os representantes do PT, PCdoB, PSB e Psol se movimentaram contra a aprovação da PEC na CCJ.
O objetivo central que motiva esta mudança da Constituição é a facilitação e a ampliação do acesso ao território brasileiro por parte um grupo muito reduzido e já intensamente privilegiado de grandes fazendeiros e grandes empresas transnacionais que atuam no Brasil. As terras indígenas, as terras de quilombolas e o meio ambiente são considerados, pelo agronegócio, como elementos que limitam o acesso, o controle e a exploração territorial. Para isso, os parlamentares que representam o agronegócio no Congresso almejam serem portadores do poder de decidir e, com isso, inviabilizar por completo os processos de reconhecimento e demarcação de terras (indígenas e quilombolas), bem como a criação de novas Unidades de Conservação no país.
IHU On-Line – Em sua avaliação, a votação da PEC 215/2000 tem alguma relação com a
proposta do novo Código Florestal?
Cleber César Buzatto – Há uma estreita relação entre a votação da PEC 215 e o novo Código Florestal. Ambos são instrumentos usados para flexibilizar a legislação com o mesmo objetivo de facilitar o acesso e ampliar a concentração da posse e propriedade da terra no país. Ambos representam retrocessos históricos que sinalizam o avanço de forças políticas conservadoras e reacionárias.
IHU On-Line – Quantas terras indígenas já foram demarcadas e quantas estão homologadas?
Cleber César Buzatto – Essa situação é extremamente grave, uma vez que das 1.046 terras indígenas, apenas 363 estão regularizadas. 335 terras encontram-se em alguma fase do procedimento de demarcação e outras 348 são reivindicadas por povos indígenas no Brasil. Mas até o momento o órgão indigenista não tomou nenhuma providência a fim de dar início a sua demarcação.
IHU On-Line – Caso essa PEC seja sancionada, quais as implicações para as comunidades indígenas? Os índices de violência tendem a aumentar?
Cleber César Buzatto – A PEC 215 é especialmente danosa aos direitos dos povos indígenas no que diz respeito às suas terras tradicionais. Ela atinge também os diretos dos quilombolas e a questão do meio ambiente. O deputado Osmar Seraglio, em seu relatório e voto, anexou a ela outras 11 PECs que também tramitavam na CCJ. Dessa maneira, na forma do relatório e voto em questão (1) a aprovação da matéria alterará os artigos 49, 225 e 231 da Constituição e, em última instância, entre outras, determinará que toda e qualquer demarcação de terra indígena ainda não concluída deverá ser submetida à aprovação do Congresso Nacional; será exigida a aprovação de lei para a demarcação de terras indígenas; expedição de títulos das terras pertencentes a quilombolas e definição de espaços territoriais especialmente protegidos pelo poder público.
A composição amplamente anti-indígena do Congresso Nacional nos permite afirmar que a aprovação em definitivo desta alteração da Constituição poderá significar, de fato, a paralisação absoluta do processo de demarcação de terras indígenas no Brasil.
Pela experiência, sabemos que os povos locais não desistem de lutar pelos seus direitos, especialmente aqueles relacionados à questão fundiária. A aprovação desta PEC tende a alimentar ainda mais a insanidade de fazendeiros na relação com os povos indígenas. Dessa maneira, é muito provável que a própria tramitação de matéria potencialize a violência contra lideranças e comunidades indígenas.
IHU On-Line – Como o Cimi recebeu a notícia de que a Dr. Marta Azevedo irá assumir a presidência da Funai? Quais as perspectivas que vislumbra?
Cleber César Buzatto – Como parte da opção governamental pelo desenvolvimentismo e pelo agronegócio como modelo a ser incentivado no campo brasileiro e da consequente estratégia de retração dos processos de demarcação das terras indígenas, a Funai tem sido intencional e sistematicamente enfraquecida como instituição. O presidente Márcio Meira nunca foi recebido pela presidente Dilma. Isso demonstra o total desprestígio deste órgão governamental por parte do atual governo. Ouvimos constantemente reclamações de lideranças indígenas de todas as regiões do país dando conta da total falta de condições de estrutura e pessoal da Funai em suas respectivas regiões. Participei de uma audiência na sede de uma Coordenação Técnica Local da Funai que não tinha nem água potável para servir às lideranças indígenas e demais autoridades que estavam presentes. O orçamento da Funai destinado à ação Demarcação de Terras Indígenas é irrisório e tem sido ainda mais reduzido nos últimos anos.
Por tudo isso, entendo que o debate em torno de quem é ou será o presidente da Funai é extremamente periférico. No atual contexto, o presidente da Funai, independentemente de quem seja, tende a ser usado para facilitar a implementação daquilo que realmente interessa e está na pauta do governo, entre outros, ganha destaque especial o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC.
Por isso, não gastamos energia para apoiar a demissão, nem a indicação de presidentes da Funai.
NOTA:
(1) Confira em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562.
(Por Patricia Fachin)