Documentário À Sombra de um Delírio Verde vence o tradicional prêmio Margarida de Prata
O documentário À Sombra de um Delírio Verde é o grande vencedor do prêmio Margarida de Prata, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), na categoria média-metragem. O filme trata da exploração desumana de indígenas Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul em plantações de cana, incidentes sobre terras indígenas, e as consequências para o povo.
As canções, documentário de longa-metragem, de Eduardo Coutinho, Diário de uma Busca, documentário de longa-metragem, de Flávia Castro, e A música Segundo Tom Jobim, documentário de longa-metragem, de Nelson Pereira dos Santos, foram os outros vencedores do troféu.
Um dos diretores de À Sombra de um Delírio Verde é o jornalista Cristiano Navarro, que entre 2002 e 2006 foi editor do jornal indigenista Porantim, sendo que depois, até meados de 2009, foi missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) no MS – período em que gestou e produziu o filme.
Navarro hoje é um dos editores do jornal Brasil de Fato e coleciona prêmios jornalísticos tratando da questão indígena. O trabalho do jornalista representa grande contribuição para a causa destes povos resistentes e o prêmio joga luz sobre um dos principais processos de genocídio contra indígenas do mundo.
Em dezembro do ano passado, a revista Le Monde Diplomatique publicou entrevista com o jornalista, que explica, entre outros fatores, como foi a produção do documentário e sua urgência ao tratar da realidade de violência e vulnerabilidade social a que estão submetidos os Guarani Kaiowá.
A cerimônia de entrega do prêmio acontecerá durante a 50ª assembleia anual dos bispos, no dia 20 de abril, em Aparecida (SP). Criado em 1967, o troféu já premiou mais de 100 filmes brasileiros entre longas e curtas-metragens e menções especiais. Foram agraciados com o Margarida de Prata cineastas como Walter Salles por “Central do Brasil”, “Terra Estrangeira” e “Abril Despedaçado”; Silvio Tendler por “Os anos JK”, “Jango”, “Castro Alves – Retrato do poeta” e “Utopia e Barbárie”; Roberto Farias por “Pra frente Brasil”; Leon Hirszmann por “São Bernardo”, “Eles não usam black-tie” e “Imagens do Inconsciente”; João Moreira Salles por “Nelson Freire”,” Notícias de uma Guerra Particular” e “Santiago”; Eduardo Coutinho por “Boca de Lixo”, “O Fio da Memória”, “Santo Forte”, “Edifício Master”; Nelson Pereira dos Santos por “A Terceira Margem do rio” e “Raízes do Brasil”.
À Sombra de um Delírio Verde soma-se a essa lista de grandes obras do cinema brasileiro.
“É no canavial que a gente vê a cara do diabo”
Documentário À Sombra de um Delírio Verde, lançado agora em HD, denuncia a presença das transnacionais no massacre aos indígenas Guarani Kaiowá no MS
Renato Santana
Jornalista
Logo após o sol nascer no acampamento Tekoha Guaiviry do povo Guarani Kaiowá, na última sexta-feira, 18 de novembro, um bando armado tomou de assalto a comunidade. Era o início de mais um episódio de violência contra os indígenas na região sul do Mato Grosso do Sul (MS), estado com a segunda maior população originária do país – 75 mil – e líder em assassinatos de índios – estando, nos últimos oitos anos, mais de 50% acima da média nacional.
O jornalista Cristiano Navarro conhece bem tal realidade. Atuou junto aos Guarani, residindo no MS, durante quase três anos, entre 2007 e 2009, e viu de perto massacres tão covardes e violentos quanto o ocorrido contra o Tekoha Guaiviry, que, conforme o relato de indígenas, registrou a execução do cacique Nísio Gomes e o sequestro de seu corpo pelos pistoleiros que atacaram o acampamento.
Nos canaviais das fazendas instaladas em territórios tradicionais dos Guarani Kaiowá – áreas de exploração desumana do trabalho dos próprios indígenas – foi que o jornalista encontrou foco para junto com a repórter belga An Baccart e o cinegrafista argentino Nico Muñoz realizar o documentário À Sombra de um Delírio Verde, denúncia contundente da ação das transnacionais do agronegócio da cana-de-açúcar e de seus efeitos no contexto de violência do MS.
Por este fio condutor, os realizadores comprovam que a realidade de fome, miséria, morte, resistência e luta pela terra dos Kaiowá está atrelada aos efeitos da ação devastadora de um modelo de desenvolvimento que serve de combustível ao capital nacional e internacional – à custa de direitos fundamentais expressos na Constituição Federal, além de motivar episódios de assassinatos permanentes.
Dentro desta perspectiva, o filme denuncia também a ausência do Estado brasileiro em garantir os direitos dos indígenas, que acabam indo viver às margens de rodovias em condições subumanas de existência. Desde
“É lá (nos canaviais), naquele trabalho, que os Guarani Kaiowá se alcoolizam, se matam e são escravizados. São os filhos desses trabalhadores que morrem de fome. É na sua terra, com a sua água e com seu suor que o combustível é produzido”, diz Cristiano Navarro em entrevista ao Le Monde Diplomatique e que agora você lê os principais trechos.
Como surgiu a ideia do documentário e a qual realidade e conjuntura ele está submetido?
No ano de 2008, uma comissão internacional da Fian foi ao Mato Grosso do Sul verificar a questão das violências contra os Guarani Kaiowá na região de Dourados, especialmente a situação de subnutrição das crianças. Poucos meses antes havia acontecido o massacre de Kurusu Amba, pior do que o que aconteceu na semana passada. Nele homens e mulheres foram mortos, feridos e, ainda por cima injustamente presos. Bem, acompanhavam a comissão internacional An, uma jornalista belga, e Nico, um cinegrafista argentino. Foi aí que tivemos nosso primeiro contato e rapidamente acordamos em fazer o documentário.
Qual foi a metodologia utilizada para se fazer o filme?
Nós partimos para as filmagens sem um roteiro pré definido. O que tínhamos era a vontade de filmar e a situação grave para abordar. Como base para as filmagens e entrevistas, utilizamos os relatórios de violações de direitos indígenas publicados pelas entidades de apoio e as orientações das lideranças e professores Guarani Kaiowá. Por fim havia a minha experiência fazendo reportagens na região que ajudou a definir o roteiro e a edição final.
Por que a escolha das plantações da cana-de-açúcar como linha guia da construção retórica da produção e qual o impacto da ação das transnacionais do agronegócio entre os indígenas?
Poderíamos ter falado do boi, da soja ou de todas as outras culturas que são tão maléficas aos Guarani quanto a cana. Mas o filme busca uma leitura dialética. E é no canavial que a gente vê a cara do diabo. É lá, naquele trabalho, que os Guarani Kaiowá se alcoolizam, se matam e são escravizados. São os filhos desses trabalhadores que morrem de fome. É na sua terra, com a sua água e com seu suor que o combustível é produzido. Numa terra que não tem mais árvore nenhuma e que de noite queima em chamas. É deste inferno que as transacionais enriquecem gente daqui, dos Estados Unidos, da Europa, da China e de não sei onde. São esses diabos que esse governo de babacas chamou de herói.
A região sul do Mato Grosso do Sul, onde se passa À Sombra de um Delírio Verde, foi nomeada pela vice-procuradora da República Deborah Duprat como uma das principais tragédias humanas sobre indígenas que se tem notícia no mundo. Que tragédias o documentário revela e quais as razões delas acontecerem?
As tragédias são de todas as ordens: assassinatos, desnutrição infantil, trabalho escravo, desassistência, falta de perspectiva. E as razões são realmente profundas. Vêm do nosso colonialismo. Da idéia de evolucionismo cultural que ensinam para as crianças nas escolas que a história começa com a escrita ou que a democracia nasceu na Grécia e vem evoluindo até os dias de hoje. São essas coisas que servem de combustível para a ganância, para o preconceito, para o ódio. Nas cidades próximas às aldeias, as pessoas odeiam os índios sem nunca ter trocado uma palavra com eles. É assim, não sabem o porquê, apenas odeiam e pronto!
O documentário tem a sua versão em HD para a internet lançada dias depois de mais um massacre contra os Kaiowá Guarani da comunidade Tekoha Guaiviry, no último dia 18 de novembro. O documentário mostra que há décadas tais massacres são constantes, sendo que nos últimos oito anos mais de 200 indígenas foram assassinados no MS. Por que tal realidade mostra-se intermitente?
Essa realidade é fruto de conflito desigual, onde praticamente tudo é desfavorável, sobretudo o poder judiciário que não pune os assassinos de lideranças. Mas veja bem, os Guarani enfrentaram os exércitos de Espanha e Portugal, em seu apogeu como império, por mais de 150 anos. Eles resistiram bravamente e escreveram uma das mais belas, se não a mais bela, histórias de resistência do nosso continente. O problema hoje é que a resistência continua, o Estado e o poder econômico continuam colonialistas, mas a correlação de forças piorou. Pois as comunidades estão ultra fragilizadas, sem seu espaço, sem ter como fazer suas roças, plantar o que comer, isso tira qualquer poder de reação autônoma dos Guarani Kaiowá.
Há um trecho em que é mostrado um indígena assassinado. Como foi a execução dessa cena e como foi lidar com tamanha violência, posto que durante o período em que o filme foi rodado estão os maiores índices de mortes – não só assassinatos, mas de crianças desnutridas, fome, doenças?
Foi difícil… Aliás, é difícil. Por que essas cenas reaparecem, e não como fantasmas na minha cabeça ou no documentário. Elas ressurgem em casos como o que vimos semana passada e chocam as pessoas por um tempo, somem e depois reaparecem.
Os acampamentos também são outra dura realidade mostrada. De 2009 para cá eles saltaram de 22 para 31 – abrigando 1.200 famílias nas margens de rodovias. Quais as consequências disso para a vida dos indígenas?
Na verdade os acampamentos já são uma consequência da questão central. Pois com ou sem o reconhecimento dos territórios por parte do governo os Guarani Kaiowa precisam voltar para sua terra, seja por falta de espaço nas reservas que estão superlotadas e a vida se tornou inviável, seja porque os caciques mais velhos percebem que estão morrendo e querem retornar para o lugar onde nasceram. De qualquer, forma a vida nos acampamentos é ainda pior que nas aldeias, por causa dos crimes de pistolagem aos quais as pessoas estão expostas e da total falta de assistência do governo federal como, por exemplo, é o caso da Funasa (Fundação Nacional de Saúde que atualmente está em transição para a Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai) que se nega a atender nesses acampamentos.
Apesar do cenário de terror, o documentário revela que os Kaiowá Guarani são um povo de muita resistência, beleza e cultura. De que forma se dá isso em meio a tamanho caos e mortes? O grupo de rap Brô vem desse contexto?
Pois é, se por um lado se vive a tragédia, existe a leveza, a fé, a coragem, a transcendência deste povo que são inspiradoras e parecem invencíveis. É difícil compreender esta força. Os Guarani Kaiowá juntam três, quatro, cinco dezenas de pessoas e a pé e de bicicleta entram desarmados em fazendas onde já sabem o que os esperam. As armas que têm são o arco, a flecha e a reza. Me pergunto: numa situação tão desfavorável, o que faz essa gente retornar para suas terras com tanta coragem? É difícil dizer. E essa força a gente vê também na cultura. A força dos pajés, da língua. E, claro, o grupo Brô é resultado dessas coisas.