09/02/2012

Informe nº1001: “Aqui só resolvem quando morremos então nós não vamos sair”, diz liderança Guarani Kaiowá

Renato Santana

de Campo Grande (MS)

 

Cada palmo de terra é um potencial latifúndio para a plantação de soja no Mato Grosso do Sul. O pasto perde espaço dia a dia; no pedaço mais improvável de chão, a soja cresce. Agora, além do boi, uma saca do grão vale mais do que qualquer Guarani Kaiowá. Para os fazendeiros, os benefícios da terra servem apenas para a soja e para o boi. Terra serve para produzir e gerar lucro.

 

Nas imediações do município de Rio Brilhante, região sul do estado, Laranjeira e Nhanderu eram dois irmãos que viviam sob outra lógica no final do século XIX e início do XX. Tal como seus antepassados, produção não era sinônimo de lucro, competitividade e trabalho exaustivo. O modo de vida Guarani Kaiowá era preservado, apesar do avanço cada vez maior das frentes de colonização – sobretudo os gaúchos plantadores de mate.

 

Ainda assim se vivia na aldeia, lugar onde os mortos eram enterrados, a caça e a pesca eram férteis, podia-se olhar para o céu à noite, praticar os rituais e retirar o mel e os remédios da natureza. O tekoha estava preservado. Laranjeira e Nhanderu morreram lutando para permanecer no chão sagrado. Com os filhos deles, o destino não foi diferente.

 

“Meu avô (filho de Laranjeira) morreu assim e meu pai também. Querem nos tirar daqui novamente. Querem matar mais? Se é para morrer atropelado, de suicídio, morremos resistindo, morremos dentro do nosso tekoha”, declara o cacique Faride Guarani Kaiowá, do tekoha Laranjeira Nhanderu.

 

A história do tekoha passa pela chegada da frente de colonização das plantações de mate, na primeira metade do século XX, segue com expulsões e assassinatos promovidos pelos latifundiários criadores de gado, perpassa a cana-de-açúcar e agora com a soja, além de cultivos paralelos, caso do arroz.

 

Depois de feita uma primeira retomada, os Kaiowá foram expulsos de Laranjeira Nhanderu em setembro de 2009. Seguiram direto para a beira da estrada, bem ao lado da entrada de uma das fazendas que incidem sobre o território de ocupação tradicional. Os indígenas permaneceram acampados até maio do ano passado, quando novamente retomaram pouco mais de 400 hectares de Laranjeira, o território tradicional.

 

Para os indígenas chegarem ao local da aldeia, percorrem cerca de 1 quilômetro no meio da plantação de soja de uma das propriedades. A instalação das 26 famílias, cerca de 150 indivíduos, fica em outra fazenda, a Santo Antônio, também de soja. O grau de tensão é alto: um dos fazendeiros vigia diariamente a movimentação dos indígenas e recentemente organizações indigenistas foram proibidas judicialmente de passar pela propriedade para se dirigir até a aldeia.

 

Ordem de despejo

 

No último dia 27 de janeiro, a Polícia Federal (PF) chegou ao tekoha Laranjeira Nhanderu. Os agentes levavam uma ordem de despejo da Justiça Federal do MS, com a recomendação de que os indígenas fossem informados de que ela seria cumprida dali 15 dias. “Os policiais disseram que voltariam com helicópteros, muitos homens e armas para nos tirar. A gente dizia que não ia sair e eles se irritaram”, relata Roselino Guarani Kaiowá.

 

A ligação dos Guarani com a terra é especial como com os demais povos indígenas. No entanto, guarda suas peculiaridades. Longe dela, muitos Kaiowá já se suicidaram ou arrefeceram ao alcoolismo. Durante o período em que estiveram acampados, cacique Faride afirma que dois jovens se suicidaram e outros três indígenas foram atropelados.

 

“Nós queremos nosso tekoha. Por isso nós resistimos firmemente. Temos que nos fortalecer e criar coragem; esperar até que venha a decisão do antropólogo. E vamos esperar no tekoha mesmo, porque ali é o nosso lugar e não outro. Agora nós não vamos sair dali não. Vamos resistir ali. É assim que é o guerreiro”, resume a liderança Zezinho Guarani Kaiowá.

 

O Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (DNIT) ofereceu um terreno aos indígenas até que o trabalho de demarcação das terras seja concluído pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – razão pela qual o juiz despachou a reintegração de posse da área ocupada pela comunidade de Laranjeira.  

 

“Aqui está a história dos nossos antepassados. A comunidade sabe a história mais antiga e em outro lugar isso não tem. Sem contar que lá não temos caça, água, mel e remédios naturais. Perto da cidade, os índios ficam expostos ao álcool”, diz Zezinho.

 

Despejo suspenso e desembargador questionado

 

"Não é possível fazer um juízo de certeza sobre a legal ocupação tradicional da terra pelos indígenas. Porém, é certo que há indícios de que se trata de área tradicionalmente ocupada pelos índios, tendo em vista relatos históricos juntados pelo Ministério Público Federal e pela Funai”, avaliou a juíza Louise Filgueiras, relatora do agravo de instrumento que pede a suspensão do despejo.

 

O processo tramita no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, onde teve primeira votação na última segunda-feira (6). Para a juíza, “não é demasiado dizer que a única solução justa e definitiva para esse caso passa necessariamente pela finalização dessa perícia. Todas as demais soluções serão paliativas".

 

Os dois votos restantes permaneceram indefinidos. O desembargador federal Luiz Stefanini, que presidia a sessão, pediu “vista dos autos” e adiou o julgamento, sem prazo para o processo voltar. Stefanini, no entanto, sofre questionamentos sobre se pode ou não votar o agravo.

 

A procuradoria da Funai entrou com recurso no TRF-3 alegando que a esposa do desembargador possui processo no órgão indigenista de indenização por benfeitorias em propriedade no Mato Grosso do Sul, ou seja, ela possui terras em área indígena demarcada.

 

O tribunal rejeitou o pedido dos procuradores da Funai, que recorreram. “Mesmo com o recurso, nada impede o desembargador de votar. Vamos aguardar”, explica o procurador Alexandre Silva Soares.   

 

Futuro

 

“Estou muito preocupado com a minha comunidade. Com o suicídio na minha comunidade. Já tinham se suicidado duas pessoas, ano passado. Ninguém quer ver despejo. Não é medo, mas o Kaiowá prefere morrer a ficar longe do seu tekoha”, destaca cacique Faride.

 

Ele aponta ainda a vulnerabilidade da população de Laranjeira, sobretudo com relação a indígenas cegos, deficientes, além de idosos e crianças. “Como dá para viver na beira de estrada assim? Nós vamos ficar lá dentro”, sentencia.

 

Cacique Faride afirma que o destino dele será o mesmo do líder espiritual Nísio Gomes, do tekoha Guaiviry, atacado por pistoleiros e depois levado pelos assassinos, caso nada seja feito para se assegurar a permanência dos indígenas no local. “Aqui só resolvem quando morremos então nós não vamos sair. Ficamos aqui de todo jeito”.

 

Visita da CNBB

 

A realidade vivida pelos indígenas Guarani Kaiowá, incluída a de Laranjeira Nhanderu, foi vista de perto pelo Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Leonardo Ulrich Steiner. Leia a cobertura completa da visita na edição de janeiro-fevereiro do jornal Porantim e no site do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).  

 

Fonte: Assessoria de Comunicação - Cimi
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