18/01/2012

Lideranças lembram dois meses do assassinato de cacique

Em nota, lideranças recordam a trajetória de Nísio Gomes e denunciam novas ameaças

 

Indígenas de todo o Brasil, especialmente os Guarani Kaiowá, celebram nesta quarta-feira (18) dois meses da morte do cacique Nisio Gomes. Nisio desapareceu em 18 de novembro do ano passado e seu corpo nunca foi encontrado. Liderança importante nas aldeias do Cone Sul do estado do Mato Grosso do Sul, os indígenas acreditam que ele foi morto a mando de fazendeiros. O caso ainda não foi esclarecido pela Justiça.

 

Nísio era ainda autoridade religiosa e espiritual dos Guarani Kaiowá, cargo irrenunciável e responsável pela reza e proteção do território. Originário do território tekoha guasu Guaiviry, ele sempre lembrava aos indígenas que, se fosse preciso, deveriam morrer para garantir que a terra indígena continue pertencendo às gerações indígenas futuras.

 

No último domingo (15), a comunidade de Guaiviry foi ameaçada por um homem que disse ser funcionário de fazendas vizinhas à área. O funcionário perguntava sobre as lideranças locais e afirmou que novos ataques de pistoleiros irão acontecer. Ele foi preso pela comunidade que acionou a Força Nacional e a Polícia Federal.

 

Leia nota das lideranças da Grande Assembleia Guarani e Kaiowá Aty Guasu sobre a trajetória de Nísio.

 

Nota da Aty Guasu à imprensa – aos dois meses do ataque ao Guarani

 

O objetivo desta nota das lideranças da Grande Assembleia Guarani e Kaiowá Aty Guasu é explicitar em detalhe e socializar a história e trajetória de vida do rezador ñanderu Nisio Gomes.

 

Nossa iniciativa tem o sentido de reafirmar a grande honradez e dignidade de uma autoridade religiosa e espiritual de nosso povo, que vem sendo atacada de forma leviana ao longo das investigações sobre o ataque sofrido pelo grupo de Nísio, no Tekoha Guaiviry, em 18/11/11.

 

Assim, destacamos que, ao longo das últimas três décadas, na condição de rezador e protetor do território, vida e cultura sagrada guarani e kaiowá, Nisio Gomes participou de todas as grandes assembleias Aty Guasu, coordenando nossos rituais religiosos. Por essa razão, ele é bem conhecido tanto pelas autoridades federais como pelas lideranças guarani e kaiowá de todas as aldeias do Cone Sul-MS.

 

A família extensa de Nisio Gomes é originária do território tekoha guasu Guaiviry. Ele nasceu no tekoha Guaiviry, casou-se com a também rezadora Odúlia Mendes, já falecida. Casado, foi expulso do Guaiviry em meados da década de 1970. Nisio tem dois filhos, duas filhas e vários netos(as). Analfabeto, Nísio tampouco sabia falar bem o português, entendia com dificuldade a língua portuguesa. No último ano, ele se sentia doente, portanto tomava remédios caseiros diversos. Não comia as comidas salgadas e nem doces.

 

Ao longo das últimas três décadas, Nisio Gomes foi realizador do importante ritual de batismo de crianças, que é um ritual de assentamento de nome/alma no corpo das crianças – mitã mongarai –, realizado de 15 em 15 dias. Nisio era portador do instrumento sagrado xiru marangatu e de vários cantos-reza específicos para a realização de ritual de batismo. Ele também era um grande conhecedor de plantas medicinais.

 

Como já dito, há três décadas, Nisio, além de reivindicar o território antigo tekoha Guaiviry, passou a ocupar a importante função de liderança religiosa ñanderu. O rezador Nisio pregava na grande assembleia aty guasu que “nós lideranças guarani kaiowá que lutamos pela recuperação dos nossos territórios antigos tekoha guasu nunca devemos desistir de lutar pelo nosso tekoha e jamais abandonar nossos familiares e companheiros de luta”. “Até devemos morrer, se for preciso pelo nosso tekoha guasu, para salvar muitas vidas e o futuro de nossas crianças, mas abandonar o tekoha nunca, porque nós pertencemos ao nosso tekoha guasu”. Essas são algumas frases que o rezador Nisio falava com frequência. 

 

É importante destacar que o rezador/líder religioso, na cultura do povo Guarani-Kaiowá, é um cargo vital, irrenunciável e imutável. Conforme o regimento determinante dos rezadores, o rezador não deve abandonar o território tradicional, nem os instrumentos sagrados xiru marangatu, nem deve se afastar dos seus auxiliares, aprendizes, parentes, principalmente dos filhos(as), netos(as). Isso porque o cargo de rezador é o suporte sagrado e protetor vital do território e dos integrantes do povo Guarani-Kaiowá.

No seio da família extensa e na grande assembleia aty guasu, o rezador é um conselheiro religioso que prega o bom viver sagrado indígena, possuindo o poder educativo, e sua autoridade religiosa é reconhecida por ser um idoso, rezador e protetor espiritual de várias famílias extensas pertencentes aos diversos tekoha guasu, territórios indígenas do Cone Sul de MS.

 

Baseado nesse regimento rigoroso dos rezadores Guarani e Kaiowá, o rezador Nisio Gomes, com vida, não deveria abandonar o território antigo que ele reocupou, não deveria deixar os instrumentos sagrados xiru marangatu, auxiliares, aprendizes, parentes, sobretudo os filhos(as), netos(as). Porém, o território antigo reocupado de Guaiviry, os filhos(as), netos(os), parentes foram abandonados por Nisio Gomes no dia 18/11/2011. Por quê?  Sem dúvida, o rezador Nisio abandonou já sem vida o território tradicional tekoha Guaiviry reocupado, pelo qual lutou três décadas. Só sem vida ele deixaria o instrumento sagrado xiru marangatu e seus familiares em tekoha Guaiviry. Por fim, Nisio não participou mais da última aty guasu por um único motivo: porque o rezador Nisio foi massacrado e morto pelos pistoleiros das fazendas no dia 18/11/2011.

 

No dia em que se completam dois meses desse ataque, nós, do povo Kaiowá e Guarani, continuamos sem respostas para nossa angústia. Queremos que a Justiça mande prender os responsáveis pelo ataque e que as autoridades se empenhem realmente para que a família de Nísio possa reaver o corpo que foi levado pelos criminosos. É preciso que haja punição exemplar para os culpados por esse crime hediondo, ou os povos indígenas continuarão com a impressão de que, no Brasil, a lei só vale para os ricos e brancos.

 

No último domingo, dia 15, um episódio demonstrou que a comunidade de Guaiviry continua correndo riscos e sofrendo ameaças. Um homem não indígena chegou ao local se identificando como funcionário de uma das fazendas vizinhas à área, fazendo perguntas sobre a identidade das lideranças do local e ameaçando o grupo, dizendo que novos ataques de pistoleiros vão ocorrer. A comunidade prendeu o homem e acionou a Força Nacional e a Polícia Federal, que compareceram ao local e o detiveram para averiguações.

 

Se o Estado brasileiro não agir, tememos que o Guaiviry e outras comunidades guarani e kaiowá sofram mais violências. É urgente que o governo olhe para o Mato Grosso do Sul e resolva nossa situação. A situação de impunidade está gerando uma realidade revoltante: os pistoleiros não estão tendo mais vergonha de chegar a um acampamento em plena luz do dia para ameaçar as comunidades e matar lideranças. Queremos JUSTIÇA. Queremos PUNIÇÃO para os culpados. 

 

18 de janeiro de 2012.

 

Conselho da Aty Guasu

 

Fonte: BrasildeFato
Share this: