05/12/2011

Muita terra para quem?

Gilberto Vieira dos Santos, conselheiro do Cimi Regional Mato Grosso

Inácio José Werner, coordenador do Centro Burnier de Fé e Justiça

 

A utilização de dados estatísticos vem servindo, há alguns anos e cada vez mais, para inúmeros fins. Desde a loja que publica números estratosféricos de vendas, de clientes, ao candidato que, antes e durante as eleições, divulga pesquisas feitas por um instituto de pesquisa qualquer em que o tal candidato sempre aparece bem cotado. Claro, há institutos de pesquisas sérios como o conhecido Ibase, fundado pelo já saudoso sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Contudo, um pipocar de institutos de pesquisas vem servindo, dependendo do gosto e das demandas do freguês, para uns e outros interesses.

 

Vejamos os recentes dados publicados pelo Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária, que vem sendo utilizado pela Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso (Famato). Antes, um parêntese: as duas instituições são presididas pela mesma pessoa. Esta pesquisa, focando estrategicamente as terras indígenas de Mato Grosso, não tem outro objetivo senão buscar elementos para afirmar ou reafirmar, que os povos indígenas “têm terras demais”. Ou, de outra maneira: ‘é muita terra para pouco índio’ (sic).

 

Os dados da tal pesquisa também têm por objetivo, fato claramente expressado nas palavras de José Riva, deputado que certamente é filiado à federação citada, reafirmar que o governo brasileiro demarca a revelia as terras indígenas ou que estas demarcações colocam em risco seus “agro-negócios”.

 

Outro fato que demonstra a intenção articulada entre Famato, o presidente da Assembleia Legislativa, José Riva, e o governador Sinval Barbosa, de barrar a demarcação ou retirada de terras indígenas, aconteceu no dia 15 de setembro. Em comitiva, solicitaram ao ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que as demarcações em Mato Grosso fossem avaliadas a partir de um dossiê a ser elaborado por um grupo de trabalho que todos já sabemos como seria formado ou pelo menos imaginamos. Embora a criação deste grupo tenha sido citada em matéria da Secom/Assembleia Legislativa de Mato Grosso, a Assessoria de Comunicação do Ministério da Justiça divulgou, dias depois, nota em que esclarece que o tal grupo não foi pauta da reunião.

 

Afirmar que são terras indígenas demais, nada mais é do que a tentativa de maquiar a verdade mais gritante que é o fato de o latifúndio ainda imperar nestas terras.

 

Senão vejamos: o último Censo Agropecuário de 2006 apresenta 3.638 latifúndios no Estado, todos com área acima de 2.500 hectares, num total de 28.639.419 hectares. Em outras palavras, 61% das terras, propriedades rurais regularizadas de Mato Grosso, está nas mãos de uns poucos. Multipliquemos estes latifúndios por quatro pessoas e teremos 14.552 pessoas vinculadas aos mesmos.

 

E as terras indígenas? Segundo dados do Censo 2010, a população indígena com domicílio rural é formada por 36.717 pessoas, que a Famato diz que poderiam ter 16.000.000 de hectares de terras. Mesmo sabendo que a população indígena é muito maior, mas para mantermos os dados com os quais trabalha a dita pesquisa, vejamos:

 

 

Área em hectares

População

Área por pessoa

Latifúndio

28.639.419

14.552

1.968

Indígenas

16.000.000

36.717

436

 

Quem afinal tem muita terra? Não poderíamos dizer que ‘é muita terra para pouco branco’? O ‘branco’ latifundiário tem 4,5 vezes mais terra que o ‘índio’.

 

Tratemos agora das demarcações. Diferentemente do que querem fazer crer os representantes do latifúndio, o processo de demarcação de uma terra indígena é longo e este sim, afronta a Constituição Federal já que o texto de 1988 estipulava o prazo de cinco anos para que todas as demarcações fosse realizadas. Assim, não sendo efetivadas em seu todo, não se pode falar em excessos, mas em letargia. Não fosse isso e as demarcações distorcidas, os territórios de vários povos indígenas de Mato Grosso estariam com suas situações resolvidas. Neste aspecto não podemos esquecer também que Blairo Maggi, quando governador em 2006, solicitou ao então ministro da Justiça que as demarcações fossem suspensas, sob o mesmo “argumento” de que estas impediam o desenvolvimento do Estado. Lembramos ainda que muitas terras já demarcadas, ainda por Rondon no início do século passado, foram cedidas ou vendidas por governantes de Mato Grosso que entregaram títulos ilegítimos a amigos e outros invasores.

 

A constituição de um grupo de trabalho para o estudo da área reivindicada, até a declaração, homologação e registro no Serviço de Patrimônio da União, na grande maioria dos casos, demanda anos. E boa parte da demora, se deve aos apelos e liminares concedidas aos invasores destes territórios que, embora haja a inegável tradicionalidade dos territórios, insistem em seus supostos direitos.

 

Escondido, mas não muito, atrás do discurso de ilegitimidade da Funai em demarcar as terras indígenas, está a determinação de que estas não sejam demarcadas, que é o que significa passar este processo para as mãos do Congresso Nacional. Exemplos não nos faltam como o Estatuto dos Povos Indígenas – que já deve debutar em breve – e o Código Florestal. Ou será que os deputados federais e senadores de Mato Grosso, que constantemente repetem o mesmo discurso de sua federação, passarão, numa conversão paulina, a defender os interesses dos povos indígenas se o Congresso passar a ser responsável pelas demarcações? Ou querem estes que as demarcações, que já demoram anos, fiquem penduradas nos cabides da burocracia e das manobras regimentais das tais ‘casas’? Por que ainda não se regulamentou o processo de consultas às comunidades indígenas sobre os grandes empreendimentos, como Belo Monte?

 

Não se pode deixar de dizer o que tem significado ao longo de décadas, as diferentes ocupações destas terras pelos povos indígenas e pelos auto-denominados ‘produtores’. Basta uma rápida olhada no mapa ambiental de Mato Grosso para verificarmos quem devasta as riquezas e quem as gera. Quem vem, há séculos, preservando as florestas, rios, e a biodiversidade e quem, há décadas, devasta estas até onde não podem. As atividades base do agronegócio, geradoras de pseudo-riquezas apropriadas por poucos, vêm significando devastação, envenenamento de rios, solos e meio ambiente, potencializando as queimadas e contribuindo, sobremaneira, para o aquecimento global, principal causador das mudanças climáticas.

 

Os povos indígenas, através de seus usos coletivos da terra, vêm assegurando a preservação do cerrado, do pantanal, dos rios e da floresta amazônica que ainda resistem no Estado. Com suas formas tradicionais, suas maneiras de se relacionar com a natureza mantêm os verdadeiros bens naturais para todos.

 

É para garantir a apropriação e exploração privada dos territórios que os arautos do agronegócio – essencialmente de base latifundista e devastadora – que pesquisas e argumentos como os utilizados pela Famato se prestam.

 

Há séculos que a mentira contada muitas vezes quer sobrepor a verdade, sempre a favor de uns, em detrimento de muitos.

 

Fonte: Cimi - Regional Mato Grosso
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