Guarani-kaiowá: um grito de desespero
O Conselho Indigenista Missionário – Cimi vem a público denunciar e repudiar os ataques terroristas e genocidas desferidos contra os guarani-kaiowá, da comunidade Pyelito Kue, em Iguatemi, no estado do Mato Grosso do Sul, ocorridos nos dias 23 de agosto e 5 de setembro. Além de terem seus pertences destruídos, vários indígenas foram covardemente agredidos por homens fortemente armados.
Para o Cimi, o fato de terem sido encontrados, no local dos ataques, cartuchos de munição calibre 12 antitumulto, as chamadas “balas de borracha”, constitui-se em mais um forte indício de formação de milícia armada, no Mato Grosso do Sul, com a finalidade de cometer crimes contra os indígenas daquele estado.
O coordenador do Cimi-MS, Egon Heck, em entrevista concedida à IHU On-Line, por email, acredita que a situação de Pyelito Kue e Mbaraka’y, no município de Iguatemi, representa bem a estratégia do agronegócio e da classe dominante de impedir, a qualquer custo, a volta dos índios a seus tekohá, territórios tradicionais. “Quatro vezes foram expulsos, seus barracos queimados, feridos com balas antimotim e afugentados como animais indesejáveis. Por outro lado, revela a capacidade de resistência e estratégia de luta dos guarani-kaiowá, a partir de sua cultura, religiosidade e sabedoria secular”, salienta o coordenador.
Egon Heck é coordenador do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, regional do Mato Grosso do Sul, da causa indígena brasileira. Foi padre durante 12 anos e hoje é missionário leigo. Engajado com as comunidades indígenas desde a juventude, adotou a causa como parte integral de sua própria de vida e diz com orgulho e firmeza que este “é um motivo que vale a vida, vale a morte”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor reage e se sente diante do depoimento da vítima do atentado contra a comunidade de Pyelito Kue, que afirmou: "Quase não temos mais chance de sobreviver neste Brasil"?
Egon Heck – Creio que qualquer pessoa com um pouco de sensibilidade e amor à vida terá, no mínimo, que se revoltar e indignar diante da afirmação desse membro da comunidade de Pyelito Kue. E mais do que isso: terá que fazer algo com urgência para mudar essa realidade, sob pena de se tornar cúmplice desse genocídio em curso.
É vergonhoso para o nosso país ter que continuar ouvindo dos primeiros habitantes desta terra o grito de desespero, de quem parece estar sendo tangido como o boi para o matadouro. Ou como diria o kaiowá Anastácio, "aqui o boi vale mais do que uma criança guarani". E de fato, enquanto os indígenas desse povo têm menos de um hectare, em média, para tentar sobreviver, os bois verdes têm a seu dispor, em média, mais de três hectares.
A situação de Pyelito Kue e Mbaraka’y, no município de Iguatemi, representa bem a estratégia do agronegócio e da classe dominante de impedir, a qualquer custo, a volta dos índios a seus tekohá, territórios tradicionais. Quatro vezes foram expulsos, seus barracos queimados, feridos com balas antimotim e afugentados como animais indesejáveis. Por outro lado, revela a capacidade de resistência e estratégia de luta dos guarani-kaiowá, a partir de sua cultura, religiosidade e sabedoria secular.
IHU On-Line – Em que situação encontra-se hoje a questão da demarcação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul?
Egon Heck – Infelizmente, o que se pode dizer é que está em situação indefinida. Ou melhor, todos os prazos e promessas foram descumpridos, gerando uma situação de descrença generalizada entre os indígenas e seus aliados. Quem pode acreditar em quem se revela tão enganador em suas palavras e descumpridor de compromissos assumidos, até judicialmente. O Ministério Público Federal fez mais uma tentativa de obter a conclusão e publicação dos relatórios de identificação das terras guarani-kaiowá. Conforme esse cronograma assumido, a Funai já deveria ter recebido e analisado a publicação dos primeiros relatórios. Nada indica de que isso esteja acontecendo.
Por outro lado, na recente Aty Guasu de Passo Piraju, os indígenas deram novo prazo de 30 dias para que começassem a ser resolvidos problemas de terra pendentes e concluídos os relatórios de identificação. Esse tempo já duplicou e nada aconteceu.
A bem da verdade, é preciso destacar também a feroz oposição que os setores políticos e econômicos, capitaneados pelo governador Pucinelli, têm feito contra a demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do sul.
Por outro lado, tem surgido um aliado importante, que é o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que a partir de um seminário realizado em maio deste ano em Dourados, sobre a questão das terras indígenas, criou uma comissão especial para a demarcação das terras indígenas neste estado.
Enquanto estou fazendo esses registros, em Brasília acontece nova reunião dos membros do governo que participam dessa comissão do CNJ. Existe a esperança de que se consigam traçar algumas estratégias e consensos que façam efetivamente avançar o processo de demarcação das terras no MS. Conforme informações de membros da comissão, é mais provável que se tomem algumas providências em função da pressão do grande capital que está investindo na região, especialmente na construção de usinas para produção de etanol, do que por decisão e ação efetiva do governo federal. A agroindústria afirma não poder investir nessa situação de “insegurança jurídica”, e que, portanto, ou se equaciona isso ou deixarão de investir nessa região do Mato Grosso do Sul.
Neste contexto, o governo do estado esboça um murmúrio de concordar com as propostas de regularização das terras indígenas, desde que se paguem os proprietários pela terra. Nada, absolutamente nada, será fácil ou resolvido rapidamente. Se antes se dizia que cada palmo de terra para retornar aos índios exigia uma batalha, agora a regularização e entrega aos índios de qualquer terra indígena exigirá uma enxurrada de negociações para chegar a algum acordo.
IHU On-Line – Quem está por trás dos recentes ataques terroristas e genocidas desferidos contra os guarani-kaiowá, da comunidade Pyelito Kue? O que representa a suspeita de se tratar de milícia armada?
Egon Heck – É muito provável que a Gaspem, que se autodenomina de empresa privada de segurança e que, conforme tem denunciado o Ministério Público Federal, tem se especializado em reprimir os movimentos indígenas no retorno a suas terras tradicionais, esteja também nesta empreitada de violência contra essa comunidade. O fato da utilização de balas antimotim demonstra, no mínimo, uma orientação que tem estreita relação com a polícia. Ou de uma milícia armada. Isso não descarta a arregimentação de pistoleiros pelos fazendeiros da região.
O fato é que estamos diante de uma realidade extremamente violenta e que não teme a lei. A total desenvoltura com que agem demonstra claramente de que tem a certeza da impunidade.
A forma extremamente violenta e intransigente com que os proprietários da região de fronteira têm se oposto à regularização das terras indígenas se dá no contexto da forma de apropriação com que se deram essas terras, agravado pela atuação do narcotráfico. Já foram identificados mais de trezentos mil hectares de terra que tem relação com essa atividade ilícita, conforme o juiz Odilon de Oliveira. Por ocasião de uma iniciativa de Famasul em levantar as propriedades que se disporiam a ser indenizados no caso de serem identificadas como terras indígenas, o Sindicato Rural de Ponta Porã logo se manifestou, dizendo serem os proprietários contrários à venda dessas terras.
IHU On-Line – O Mato Grosso do Sul é o estado com a segunda maior população indígena do país. Setenta mil índios de diversas etnias aguardam a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas por eles, em cumprimento a um termo de ajustamento de conduta assinado pelo Ministério Público Federal e a Fundação Nacional do Índio – Funai em 2007, e até hoje não cumprido. Esse impasse e, de certa forma, descaso contribui para o esquecimento e até preconceito contra o índio em nosso país?
Egon Heck – A situação de violência e o não reconhecimento das terras indígenas no Mato Grosso do Sul são os casos graves do país. O não cumprimento dessa determinação constitucional e de normas internacionais faz com que o governo brasileiro seja cobrado em várias instâncias nacionais e internacionais.
IHU On-Line – Dada a notória inércia das autoridades, especialmente do governo federal, há possibilidades de que ocorram novos, iminentes e ainda mais graves atentados à comunidade Pyelito Kue?
Egon Heck – Tudo é possível. Os mais diversos cenários, inclusive o de novos ataques à comunidade são possíveis. Porém, dada a grande repercussão nacional e internacional das violências e barbaridades cometidas, tudo indica que a repetição da violência acabará se voltando contra os autores de tais atos e seus mandantes. Ou seja, reverterá contra a própria estrutura do agronegócio na região.
IHU On-Line – A cultura do índio não condiz com o modelo capitalista e totalitário no qual nossa cultura está inserida. Que alternativas nossos índios teriam de sobrevivência hoje, uma vez que quase não existem mais "terras de ninguém" por esse Brasil afora? A preocupação de uma possível extinção das comunidades indígenas existe?
Egon Heck – Estamos falando de modelos de sociedades diferentes. Temos, de um lado, o modelo desenvolvimentista levado adiante pelo atual capitalismo neoliberal, e, de outro, um modelo de vida, de organização social centrado na convivência harmônica de todas as formas de vida da Pacha Mama, Mãe Terra.
A primeira questão a ser considerada é que tanto a Constituição Federal como a legislação internacional, da qual o Brasil é signatário, garantem aos povos indígenas as terras que originariamente ocupam e das quais, na maioria dos casos, foram expulsos. Portanto, não se trata de conceder a eles terras “devolutas”, em geral distantes e diferentes das que tradicionalmente ocuparam. Território indígena é espaço sagrado, e são estes que devem ser reconhecidos e respeitados.
Com relação às ameaças de extinção, creio que eles têm cabalmente afastado essa hipótese com seus mais de quinhentos anos de resistência às mais diferentes formas de opressão e extermínio. Além disso, parece que hoje em dia se sentem ainda mais desafiados e esperançados em fortalecer suas culturas e identidades, até como alternativas à crise civilizacional pela qual atravessa a humanidade. O que está ocorrendo são as dinâmicas de adequação às diferentes culturas que os envolvem. É evidente que os impactos do atual sistema neoliberal globalizado são violentos e com sérias consequências, especialmente no tocante à negação de suas terras.
É bem verdade que governos militares e até sociólogos previam (e desejavam) o fim dos índios até o ano 2000. Felizmente a história caminhou pelo caminho contrário. Os índios no Brasil, estimados, na década de 1960 em menos de cem mil, são hoje mais de oitocentos mil.
IHU On-Line – O Cimi recebe apoio de autoridades nacionais e internacionais na defesa e proteção das comunidades indígenas, principalmente da comunidade Pyelito Kue? Ou, em sua opinião, a defesa dessa causa não é econômica e politicamente atrativa?
Egon Heck – As minorias, como no caso dos povos indígenas no Brasil, são vozes proféticas a denunciar permanentemente a violência, o extermínio, o genocídio, praticado por um sistema que não permite a sobrevivência do diferente enquanto outra forma de sociedade, valores e organização social, política e econômica. O bem-viver dos povos indígenas se opõe radicalmente à lógica do desenvolvimentismo, predador e destruidor da natureza para garantir os privilégios de uma minoria.
O Cimi, em nota “Genocídio e contra os povos indígenas no Mato Grosso do Sul” declara: “Para o Cimi, a morosidade do governo federal em demarcar as terras tradicionais dos povos indígenas e a não identificação e punição dos seus agressores e assassinos constituem-se em verdadeira anuência e incentivo ao processo de terror e genocídio imposto aos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul”.
Também o Ministério Público Federal de Dourados declarou: “MPF em Dourados considera genocídio ataque a índios em Iguatemi”.