13/10/2011

Povo Guarani no RS: estratégias de articulação e mobilização pela conquista e garantia de direitos!

Roberto Antonio Liebgott
É licenciado em Filosofia, graduando em Direito pela PUCRs e missionário leigo atuando no Rio Grande do Sul, no Cimi Regional Sul – Equipe Porto Alegre. E-mail: [email protected]

Nós, os Guarani, conhecemos a natureza. Sabemos como cuidar dela. Eu quando vou dormir rezo pra Ñanderu. Quando acordo, tomo o chimarrão e converso com Ñanderu e depois vou trabalhar na minha roça. Assim eu vivo e cuido de minha família. E quando vou para as reuniões quero que as nossas questões sejam resolvidas. Quero uma terra boa, um tekoha onde a gente consegue viver bem, plantar, criar nossos bichinhos, andar no mato. Nas reuniões os Karaí têm que estar juntos com rapaziada. Se não tiver Karaí na reunião elas não tem valor (Sr. Adolfo Silveira, 96 anos, é Karai da terra Indígena Varzinha-RS).

Com esta manifestação do Sr Adolfo, liderança religiosa da área indígena Varzinha, inicio esta breve análise sobre algumas estratégias de articulação e mobilização desenvolvidas por lideranças e comunidades Guarani do Rio Grande do Sul, especialmente aquelas localizadas na região metropolitana de Porto Alegre e no seu entorno. Na fala de seu Adolfo condensam-se alguns princípios das lutas do Povo Guarani: o entrelaçamento entre a dimensão política e espiritual, a centralidade da terra, como espaço de produção da pessoa e de um modo de viver – O Teko; as lutas no cenário político (em forma de reuniões, mobilizações, marchas etc.) como estratégias que visam assegurar esse lugar de viver e de realizar plenamente o modo de ser Guarani e a participação dos mais velhos, os Karaí, acompanhando, aconselhando dando a direção aos mais jovens.

A intenção, neste texto, é apresentar e discutir alguns aspectos relativos a uma forma específica de articulação criada pelos Guarani: trata-se da Comissão de Terra Guarani, que foi posteriormente substituída pelo Conselho de Articulação do Povo Guarani do Rio Grande do Sul – CAPG. Para isso, relato brevemente o modo como ela se constituiu, como funciona e as formas de participação das comunidades Guarani, tanto através de lideranças tradicionais como aquelas consideradas mais jovens. Abordo também a função da CAPG e os objetivos de sua intervenção junto aos poderes públicos ao longo dos últimos oito anos.

Destaco, já de início, que este Conselho não é um modelo de organização vinculada às tradições culturais dos Guarani, e sim uma outra forma de articulação, estabelecida por este povo para tornar visíveis suas reivindicações frente à sociedade majoritária e ao Estado. Sua intervenção se dá através de um conjunto de reivindicações, proposições e denúncias elaboradas e apresentadas aos setores da administração pública, as Fundações, Secretarias e Ministérios que têm algum tipo de responsabilidade pela execução da política indigenista. Quando necessário, o Conselho recorre ainda ao Ministério Público Federal, que tem a obrigação constitucional de fazer a intervenção jurídica pela defesa dos Povos Indígenas.

Vale ressaltar, ainda, que o Conselho de Articulação não se sobrepõe aos processos e formas próprias de organização social e política dos Guarani. Em outras palavras, sua razão de existir são os embates políticos pela garantia de direitos, em especial porque, ao longo de muitas décadas, alguns Karaí (liderança religiosa que orienta o que é espiritual) e os Mburuvicha ou Tuvichá (liderança política que trata das questões do dia a dia e intermedia as relações com a sociedade envolvente) têm constatado que as necessidades e urgências de seu povo têm sido sistematicamente relegadas a um segundo plano, e isso submete a população Guarani a uma condição de vida degradante e desumana em acampamentos situados à beira de rodovias. No Rio Grande do Sul existem acampamentos Guarani com mais de 30 anos e nenhuma providência foi tomada pelo poder público para resolver a questão de modo efetivo, ou seja, procedendo à identificação e demarcação de terras adequadas a estas populações.

Os Guarani vão constituindo e colocando em funcionamento, de modo dinâmico e sem estruturas formais estáveis, certas instâncias organizativas que visam buscar soluções aos problemas que afetam as comunidades, tais como: infraestrutura, saneamento básico, assistência em saúde, educação, alimentação, atividades produtivas e a garantia do direito a terra.

A análise de algumas ferramentas de luta que os Guarani criam para lidar com o poder público e dele exigir a implementação das normas constitucionais que lhes garantam direitos específicos e diferenciados não pretende, no entanto, esgotar a reflexão. Ao contrário, o que aqui realizo é uma breve incursão sobre o tema, do pondo de vista de quem convive e acompanha algumas lideranças e comunidades que estão articuladas em torno do Conselho de Articulação do Povo Guarani do Rio Grande do Sul.

Antes de adentrar na análise e reflexão que me proponho realizar sobre o CAPG apresento alguns aspectos que considero relevantes sobre o modo de ser dos Guarani. Nesta parte do texto, lanço mão de informações reunidas de diferentes fontes, fundamentadas em leituras históricas, antropológicas e em experiências de trabalho junto às comunidades Guarani, parte delas já apresentadas em uma longa entrevista concedida pela Dr. Iara Tatiana Bonin e por mim ao Instituto Humanitas, da Unisinos (Os Guarani: o contínuo caminhar de um povo – Entrevista disponível em www.ihuonline.unisinos, acesso em abril de 2010).

Um modo de ser e um jeito de viver: nhande rekó Guarani

O povo Guarani era, de acordo com muitos relatos históricos, constituído por mais de quatro milhões de pessoas. Ocupava especialmente a região de mata úmida dos rios da Bacia Platina, tendo chegado até a Bacia Amazônica. Ele é parte do grande tronco linguístico Tupi, pertencente à família Guarani e conta hoje com uma população de mais de 280 mil pessoas, subdivididas em grupos (parcialidades), assim definidos: Kaiowá (também referido na literatura acadêmica como Kaiová, Kayová ou Paï-Tavyterã), Nhandeva (referido ainda como Xiripá e Ava Katu Ete), os Mbyá e ainda Guaraios (Bolívia). As comunidades estão distribuídas em mais de 600 aldeias em quatro países da América do Sul. Seu território tradicional se estende sobre grande parte do Brasil, principalmente no Sul, ao Norte da Argentina, Oeste da Bolívia e em todo o Paraguai. Vale ressaltar que existe mais de quatro milhões de falantes da língua guarani e, no Paraguai, ela é também língua oficial.

Em termos de localização geográfica, pode-se dizer que os Guarani estão atualmente assim distribuídos: os Kaiowá vivem em pequenas parcelas de seu território tradicional, em maioria no Mato Grosso do Sul, com uma população superior a 40 mil pessoas; os Nhandeva vivem no Sul do Brasil, Paraguai e Argentina, enquanto que os Mbya, que são em maior número, vivem na Argentina, Paraguai e Brasil, concentrando-se, de modo especial, no Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (há um grupo familiar que vive hoje no estado do Pará). Os Mbya são conhecidos pela grande mobilidade, que corresponde a uma forma de percepção e de ocupação do território, mas também representa um modo de viver, que estabelece formas específicas de relacionamento entre as pessoas que habitam esses lugares.

Entre as parcialidades do Povo Guarani existem diferenças significativas, que dizem respeito aos costumes, expressões linguísticas, rituais, estilos de pensar e de viver, e se estabelecem continuamente, e a uma só vez, vinculações e diferenciações entre tais parcialidades. Pode-se dizer que existem unidades agregadoras, a partir das quais eles se articulam (sem, contudo, confundirem-se), e que eles mantêm intensa rede de contato e intercomunicação. Dentro de uma mesma parcialidade também há distinções – que tem a ver com idade, gênero, lugar social, local de moradia, entre outros aspectos. Tudo isso leva a reconhecer, mais uma vez, a pluralidade de maneiras de viver, que decorre das múltiplas histórias vividas por estes grupos e das relações que vão estabelecendo entre si e com os demais. Não há, portanto, um único e definitivo “jeito de ser guarani”, e não seria possível “traduzir” seu estilo de pensar e de viver em poucas palavras. É necessário considerar as específicas e variadas situações em que eles vivem, as mudanças que se processam em suas práticas cotidianas, as alternativas que eles vão construindo para continuar vivendo em coletividades, no dinamismo de suas experiências riquíssimas de vida. Passo, então, a destacar três dimensões que, a meu ver, compõem esse modo de ser Guarani: a dimensão sagrada do cotidiano; a centralidade da palavra e a vinculação profunda com a terra.

Conexões entre a vida e o sagrado

É importante ressaltar a dimensão sagrada, presente no cotidiano da vida deste povo. Não pretendo, aqui, fazer uma síntese de sua complexa e abrangente cosmologia, que é densamente descrita por Curt Nimuendajú (1987), Bartomeu Melià (2004), Pierre Clastres (1982), Graciela Chamorro (2009), entre outros. Faço aqui uma consideração que me parece relevante: para os Guarani, não há uma distinção absoluta, ou uma linha divisória que separa aspectos da vida natural e sobrenatural. Assim, as ações cotidianas são marcadas por certa ritualidade, as explicações para os acontecimentos têm uma base material e também imaterial, as razões para algumas práticas e condutas são de ordem profana e também sagrada. Trata-se, portanto, de uma racionalidade que nos escapa e que não se pauta nas divisões binárias a que estamos habituados (na composição de um pensamento ocidental, moderno, de base cartesiana).

De acordo com muitos pesquisadores, que têm realizado estudos acadêmicos em diferentes épocas – é o caso de clássicos como Clastres (1982), Nimuendajú (1987), Schaden (1974) e estudos atuais como os de Melià (2004), Assis (2004), Borges (2002), Catafesto de Souza (2010) – o Povo Guarani se considera eleito, mas precisa viver em um mundo imperfeito. Cada pessoa precisa aprender a conviver e a estabelecer um equilíbrio entre duas naturezas que a constituem – a humana e a divina. É esta ambivalência que constitui o desafio da vida humana, e que impele o Guarani a superar sua natureza finita e buscar a perfeição que o aproxima da condição divina. Aprender a conviver e a conhecer os outros seres que habitam os limites do seu território é uma das estratégias deste povo. Talvez, por isso, suas práticas em situações de conflito não sejam propriamente as do enfrentamento aberto, e sim a tentativa de estabelecer, mesmo quando há invasões em suas terras, um ponto de diálogo.

Em uma comunidade guarani é indispensável a existência de uma casa de reza, a Opy. Nela, estreitam-se os vínculos com o Sagrado, realizam-se os rituais mais importantes, estabelecem-se as condições para se ter saúde, realizam-se os processos de nomeação e de cura. E, nos rituais, sempre está presente o cachimbo – petynguá, com o qual fazem uma espécie de defumação, que possibilita a purificação, em alguns casos, e permite a transformação de um certo objeto comum, em objeto guarani. Também, nos rituais, observa-se o uso do bastão de taquara – o taquapy – da flauta, do violão, da rabeca, do maracá, que são alguns dos instrumentos que elevam o canto e dão força comunicativa aos rituais. Tudo isso é parte indispensável para o bem-viver, na concepção Guarani.

O valor da palavra

Uma segunda dimensão que pretendo destacar, da vida do povo Guarani, diz respeito à palavra – um importante elemento de constituição da pessoa e de elaboração contínua de seu modo de viver. Estudiosos como Nimuendajú (1987) e Melià (2004) afirmam que os Guarani são “o povo da palavra” e a prática de escutar e de falar configura sua organização social, política, religiosa. Chamorro (2009) afirma, ainda, que a espiritualidade Guarani é uma “experiência da palavra” ancorada em uma complexa teologia que só se pode observar frente a um estudo profundo e prolongado.

É pela palavra que a pessoa Guarani vai sendo constituída, e essa produção se inicia antes mesmo do nascimento de um novo ser, ou de sua concepção propriamente dita. Para eles, a vida humana não começa quando se gera um corpo e sim quando um componente divino é enviado e se coloca a caminho, para vir morar no mundo humano. Essa porção divina é enviada em forma de palavra e se torna pessoa à medida que vai sendo pronunciada, através das conversas que os pais vão mantendo sobre sua vontade de ter filho, pelos líderes religiosos que podem “ler” nos rituais essas “palavras-almas”, pela comunidade, em diferentes momentos cotidianos e rituais (Nimuendajú,1987).

Com esse pequeno exemplo, observa-se que, para os Guarani, a palavra tem grande relevância; ela é constitutiva da própria existência das pessoas. Nas relações estabelecidas, a palavra é um componente central (não apenas como meio de comunicação, mas como possibilidade de criação de algo). Ela se converte em conselhos e ensinamentos (dos pais para os filhos, dos anciãos para os jovens, e assim por diante). Pode-se observar no dia a dia Guarani uma profunda afetividade para com as crianças, para com os jovens, que são sempre aconselhados, orientados, assistidos pelos mais velhos. Isso porque, ao longo da vida, uma pessoa Guarani precisa aprender certas condutas que lhe permitam aproximar-se cada vez mais de sua porção divina, e os Karaí (os anciãos, os que possuem sabedoria) vão ajudando a estabelecer esses elos. Os Karaí ressaltam a importância de certas regras, de certas formas de conduta, de certas práticas que podem manter a pessoa em sintonia com o que é divino – ser generoso, escutar a palavra dos outros, compartilhar, manter-se alegre, são manifestações de divindade.

O significado central da palavra na vida dos Guarani pode ser pensado, ainda, pelas formas como eles falam sobre a chefia e avaliam nossas práticas: os Guarani muitas vezes nos falam que a palavra deles expressa uma verdade, um bom sentimento, e que se pode ver que um chefe Guarani é o que ele fala. O mesmo não ocorre com os chefes da sociedade envolvente – que afirmam uma coisa e fazem outra, que não buscam o entendimento e sim buscam convencer os outros da sua própria idéia.

Uma das experiências mais valorosas, que posso aqui relatar, é a de participar de uma reunião entre os Guarani. Eles são notáveis no exercício do respeito ao pensamento um do outro e também da diplomacia nas relações com os não-guarani (quando se trata de levar uma reivindicação a algum órgão público, por exemplo). Uma reunião entre os Guarani inicia-se já pelo convite, feito pessoalmente ao cacique da comunidade, oportunidade para uma conversa inicial feita na aldeia convidada, em um momento que às vezes se prolonga por horas, em que circula um chimarrão e também o petynguá (cachimbo ritual, que participa na constituição das condições para que se possa dizer as palavras certas).

A reunião propriamente dita inicia-se com a apresentação dos assuntos que serão discutidos, e, a este anúncio dos temas, segue-se a palavra ritualizada de um ou mais Karaí, na qual se expressa o profundo teor religioso da luta política a ser empreendida, e se delineiam alguns pressupostos ou caminhos, num aconselhamento que envolve ideias, condutas, posturas a serem assumidas. Nestes momentos, quase tudo é silêncio, se escuta apenas a voz do Karaí e o som de seus passos (pois ele geralmente está de pé ao fazer o seu discurso). Quem está presente não apenas escuta, mas também sente as palavras proferidas – assim como também sente o cheiro da fumaça exalada pelo petynguá, ao respirar. As palavras ritualizadas são, neste sentido, absorvidas, inaladas, passam a fazer parte de quem as escuta.

Segue-se, então, uma rodada de falas, na qual todos os presentes manifestam-se sobre o assunto tratado, contribuindo com o que sabem, manifestando uma posição, agregando outros aspectos ou simplesmente reafirmando o que já foi dito. Quando ocorrem discordâncias entre as posições dos presentes, uma nova rodada de argumentações é realizada, e nela todos tomam parte para tecer novamente uma rede de palavras que possam assegurar uma boa decisão. Para eles, a palavra tem o poder de construir o entendimento quando proferida com sinceridade, e neste sentido é preciso prestar atenção ao que diz o outro, inclusive aquele que discorda.

Tudo isso acontece na língua guarani – a única capaz de tecer a rede entre o mundo natural e sobrenatural, para fazer surgir o entendimento e gerar boas decisões. Vez por outra eles recorrem aos não-índios, presentes na reunião, para solicitar algum esclarecimento ou pedir uma opinião, mas vale dizer que a fala em português é sempre levada, em seguida, para dentro das argumentações que ocorrem em guarani – mesmo sendo todos eles falantes também da língua portuguesa.

Na relação com representantes de órgão públicos, bem como em reuniões com setores diversos da sociedade majoritária, em geral um Guarani (responsável por fazer o discurso) parte de uma fala mais elogiosa, que valoriza o interlocutor, e só então apresenta sua reivindicação para que esta possa ser efetivamente ouvida e compreendida. Ocorre que, na dinâmica das relações políticas da sociedade ocidental contemporânea, a palavra não funciona, necessariamente, como expressão da verdade e da mútua compreensão e, talvez por isso, muitas vezes os discursos guarani sejam vistos como “longos, confusos, frágeis” e não como formas de luta nas quais se expressa, à sua maneira, um firme posicionamento.

Vínculo com a terra

Embora este povo possua vínculos ancestrais com um amplo território, eles vivem, em grande maioria, em pequenas porções de terra, com áreas que variam entre cinco e 500 hectares. No Brasil, a situação mais complexa é a do Mato Grosso do Sul, onde poucas áreas estão efetivamente demarcadas, sendo que uma grande parcela da população Kaiowá vive confinada em pequenas reservas e/ou em acampamentos de beira de estradas. No Rio Grande do Sul, também existem diversas comunidades Mbyá vivendo às margens das rodovias. É preciso dizer, antes de qualquer coisa, que esta não é uma opção de vida destas famílias, e sim uma condição que a eles foi imposta em função do modelo de ocupação e de desenvolvimento regional e nacional.

Viver em pequenas áreas e em acampamentos provisórios não é adequado a um povo para quem a terra é fonte de vida, é lugar onde se restabelecem elos entre eles e seus ancestrais, onde se celebra a vida, onde se cultiva a porção divina que vive em cada pessoa e onde se organiza o viver. Sobre ela, estrutura-se o nhande rekó – o modo de ser guarani.

Ainda em relação aos vínculos dos Guarani com a terra, é importante lembrar que uma marca distintiva, especialmente dos Mbyá, é a mobilidade. Neste sentido, a vida Guarani pode ser pensada como um “contínuo caminhar”, afirma Melià (2004). Eles se movimentam num amplo território, hoje compartilhado com muitas outras pessoas (e constituído também pela presença de cidades, de fazendas, de plantações, de matas). No entender de muitos estudiosos que se dedicam à cultura Guarani (Melià, 2004; Pissolato 2007) a mobilidade não se refere apenas a um modo de relacionamento com a terra, mas constitui também sua maneira específica de ser e de viver, que prevê a mobilidade das pessoas e das famílias entre os grupos e a mobilidade dos grupos no interior do território tradicionalmente ocupado. Como estilo de vida, a mobilidade colabora para a produção de saberes, para a circulação maior de bens, de sementes, de ervas medicinais, e ainda proporciona às pessoas o desenvolvimento de certas capacidades que são consideradas importantes para assegurar o bem-viver. Neste caminhar constante, os Guarani vão incorporando elementos de distintas regiões e culturas aos seus modos de viver, e vão também restabelecendo laços de parentesco, de colaboração, de partilha, aspectos fundamentais para a cultura e para a tradição deste povo (Assis, 2004).

Os Guarani possuem vínculos com um território geográfico amplo que é compartilhado por diferentes sociedades e no qual eles se mantêm em movimento, estabelecendo intercâmbios, formando comunidades em locais estratégicos, constituindo referenciais simbólicos e práticos. As formas de ocupação acontecem, portanto, através de deslocamentos concretos desses grupos, mas também pressupõem uma dimensão religiosa, pois não é qualquer terra que pode ser ocupada e que favorece a vida, e sim aquelas que possuem as condições materiais e espirituais. Em outras palavras, para os Guarani, a vida, em toda a plenitude e potencialidade, só pode se concretizar em um tekoha – um espaço específico onde se pode viver ao estilo Guarani. De acordo com Melià (2004), um tekoha não é um lugar qualquer, é um espaço identificado com a intervenção dos espíritos, que orientam o olhar do Karaí. É necessário que o Karaí identifique um tekoha (ou reconheça, com a ajuda dos espíritos) e este local deve ter água e matas, campos, animais, ervas, espaço para plantar e cultivar alimentos (o milho, a mandioca, batata doce, amendoim, feijão, melancia, abóbora).

Neste sentido, quando os Guarani ocupam um espaço ínfimo, à beira de uma rodovia, o que estariam nos dizendo? Quase sempre essa ocupação é, na verdade, o limite mais próximo que eles conseguem estar de uma área mais ampla, identificada como um tekoha, e que quase sempre se situa “do lado de dentro” das cercas que dividem certas propriedades.

As lutas pelos direitos do Povo Guarani

Ao voltar o pensamento para períodos mais longínquos se pode observar que historicamente o Povo Guarani foi criando e recriando estratégias de resistência, ora enfrentando forças militares, como os exércitos imperiais de Espanha e Portugal, ora encontrando aliados na sociedade envolvente, ou simplesmente se dispersando. Mesmo com todas as formas de dominação (educativa, militar, econômica, religiosa), o povo Guarani foi capaz de restabelecer mecanismos para manter um ininterrupto processo de transmissão, de geração para geração, de sua língua, de certos aspectos centrais de sua cultura. Tanto é assim que, mesmo em situações de vida inseridas no meio urbano, como é o caso de algumas comunidades Guarani com as quais convivo hoje, eles mantêm como meio privilegiado de comunicação a própria língua. Também me parece interessante assinalar que, mesmo quando nos deparamos com aquela cena hoje comum de mulheres Guarani sentadas em calçadões, cercadas por seus filhos, vendendo pequenos objetos, o modo de ser e de falar se mantém e expressando com isso a importância da língua como uma das marcas da diferença étnica.

É possível afirmar, considerando a produção acadêmica concernente aos Guarani, que ao longo da história de contato com a civilização européia (que aqui chegou) este povo utilizou-se de formas de organização tradicional na luta por seus direitos, e procurou, a partir dos contextos consolidar modos de enfrentamento, mas tudo isso se estabelece a partir de um jeito Guarani de ser e de viver. Em todos os lugares em que vivem hoje, os Guarani permanecem incansáveis em sua resistência, permanecendo nos limites de seus territórios tradicionais, buscando retomar aquelas parcelas de terra identificadas como tekoha. Como exemplo, pode-se lembrar a projeção dada, nos meios de comunicação, às lutas pela retomada das terras do Morro dos Cavalos e Araça`i em Santa Catarina, Nhanderu Marangatu em Mato Grosso do Sul, Tupinikim/Guarani no Espírito Santo, e tantas outras áreas ocupadas por este povo nos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo.

Na atualidade, há uma intensa mobilização deste povo no Rio Grande do Sul para que se realize a demarcação de terras, embora eles não utilizem estratégias de impacto e visibilidade, tal como fazem outros povos que ocasionalmente bloqueiam estradas, ocupam sedes de órgãos de assistência etc. Existem cerca de 150 terras guarani a serem demarcadas no Brasil, e esta é uma responsabilidade do governo federal. No entanto, os poderes públicos têm agido de maneira negligente, desrespeitado prazos para os procedimentos demarcatórios, omitindo-se em conflitos que colocam em risco a vida de algumas destas comunidades e deixando de cumprir os preceitos constitucionais que estabelecem, clara e irrefutavelmente, o direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam.

As disputas pela terra são realmente intensas e não se estabelecem apenas na atualidade – ao contrário, os Guarani vêm travando (a seu modo) um enfrentamento ao longo de décadas. Transcrevo a seguir uma fala de Marçal Tupã-i ao Papa João Paulo II, no ano de 1980, em Manaus, que mostra a intensidade e a contundência desta luta. Vamos ao depoimento, publicado em diferentes fontes virtuais, e recortado do site da Campanha Guarani- Grande Povo:

Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são diminuídos, não temos mais condições de sobrevivência. Queremos dizer a Vossa Santidade a nossa miséria, a nossa tristeza pela morte de nossos líderes assassinados friamente por aqueles que tomam nosso chão, aquilo que para nós representa a própria vida e nossa sobrevivência neste grande Brasil, chamado um país cristão. Santo Padre, nós depositamos uma grande esperança na sua visita ao nosso país. Leve o nosso clamor, a nossa voz para outros territórios que não são nossos, mas que o povo nos escute, uma população mais humana lute por nós, porque o nosso povo, nossa nação indígena está desaparecendo do Brasil (Disponível em http://www.campanhaguarani.org.br/historia/dificil.htm; acesso em maio de 2011).

No depoimento destacado, Marçal faz referência à violência sistemática praticada contra os Guarani, e seu pronunciamento soa também como um pedido de socorro e um voto de confiança na possibilidade de que suas palavras fossem escutadas. Vale lembrar que Marçal foi um importante líder Guarani na luta pela terra, assassinado em 1983 na terra Marangatu, no Mato Grosso do Sul, por pistoleiros de uma fazenda. Ainda hoje ninguém foi punido pelo crime, nem a terra Marangatu pela qual Marçal e seu povo lutava foi definitivamente reconhecida pelo Estado brasileiro como parte das terras indígenas.

Seguindo minha argumentação de que os Guarani vêm construindo distintas estratégias de resistência e reelaborando suas próprias narrativas, trago também uma entrevista concedida por Maurício da Silva Gonçalves, liderança Mbyá, ao IHU On-Line – Instituto Humanitas da Unisinos. Afirma ele:

Apesar de mantermos contato com os brancos há muito anos, conseguimos preservar a nossa cultura, o nosso jeito de ser guarani e, principalmente, a nossa língua. Os pais contam histórias antigas para os filhos, relembram fatos, falam como eram as casas. O nosso maior valor hoje é a nossa língua. Nossos antepassados conseguiram fazer com que não perdêssemos esse jeito de ser guarani. Conseguimos conservar a religião. Esse é um dos pontos fundamentais para que a gente consiga viver como povo guarani. Em todas as aldeias, tem o Opy, um local parecido com uma igreja, onde os nossos velhos buscam a força de Deus Tupã, o Ñhanderu. Nossa religião continua intacta. Além do nome português, todos os índios também têm um nome guarani, o qual só pode ser dado pelos Karaí, pessoas que têm o dom de Ñhanderu. A partir do momento em que a criança começa a andar, ela recebe o nome guarani. Essa cerimônia é chamada de nheemongarai. Esse é um momento de festa e de socialização entre as famílias.

Neste recorte, se expressa o quanto as comunidades Guarani estão alicerçadas (embora enfrentem as mais variadas formas de intervenção e de desrespeito aos direitos) em práticas culturais específicas que asseguram a manutenção de certos aspectos que eles consideram vitais. No entanto, para as relações com o mundo ocidental (do qual também participam) se faz necessário que as comunidades estabeleçam formas e mecanismos para uma boa convivência. E as estratégias, para que isso aconteça, são definidas internamente.

Na mesma entrevista Maurício salienta ser necessário também que haja formação de lideranças sobre a cultura, a política e as leis mais abrangentes desta nação. Ou seja, o Povo Guarani deve conhecer a lógica de funcionamento do Estado e suas regras.

 
Hoje em dia, a escolha das lideranças não ocorre mais como antigamente. Os nossos chefes ou caciques eram mais velhos e tinham bastante conhecimento da nossa cultura. Isso mudou bastante devido à necessidade de o nosso povo ter mais conhecimento do mundo dos juruá. A demarcação de terras indígenas, por exemplo, é baseada nas leis da Constituição de 1988, por isso, o cacique guarani precisa ter conhecimento das leis brancas. Se um líder não compreende essas leis, como ele irá defender o seu povo? Hoje, os caciques são jovens, têm 20, 22 anos. Os nossos Karaí ainda são as pessoas mais importantes da aldeia e nos orientam. Mas, para falar com os juruá, precisamos ter conhecimento do mundo deles.

A partir desta reflexão se evidenciam duas importantes características atuais na relação dos Guarani com o Estado brasileiro. Uma delas diz respeito às novas lideranças, aquelas que são estimuladas pelas comunidades para que adquiram e se apropriem dos conhecimentos do mundo dos brancos, do seu modo de viver, de se organizar e de se relacionar uns com os outros. A outra característica, que me parece central na vida das comunidades, se refere às lideranças tradicionais. Para os Guarani, os mais velhos, os Karaí são as pessoas que orientam, dão os conselhos e que têm sabedoria para avaliar distintas situações. São, segundo o depoimento acima destacado, as pessoas mais importantes da aldeia. Portanto, são os mais velhos que definem quem serão estas “novas lideranças”, que direcionarão sua atuação para fora do âmbito da aldeia. Os jovens, sob a orientação dos Karaí e das demais lideranças tradicionais, buscam conhecer o mundo dos brancos – sua linguagem, seus códigos e seus simbolismos. É neste contexto que eles terão voz, e nele que irão intervir para buscar assegurar os direitos dos Guarani. E, além disso, os Karaí buscarão manter certo controle sobre esses jovens, não apenas para aconselhar e orientar, mas também para proteger e resguardá-los de possíveis ingerências e da “sedução” que certas práticas culturais não indígenas potencialmente exercem sobre eles, afetando sua conduta inclusive no âmbito interno das comunidades. Aqui, vale também fazer um destaque, relativo às experiências que tenho vivido com o povo Guarani: presenciei algumas vezes os Karaí e os Ñanderuvicha (que têm atribuições espirituais e políticas) reunindo-se para conversar sobre a situação específica de alguma jovem liderança, que ao conviver mais diretamente com o mundo “juruá” (o mundo dos brancos) passa a agir de um modo que contraria os costumes do povo – por exemplo, quando ocorre de um desses jovens ficar longe da família por um tempo superior ao esperado, ou envolver-se em práticas que não são desejáveis desde uma perspectiva Guarani. Nestas circunstâncias, observei que os Karaí e o Ñanderuvicha discutem o assunto com muita seriedade, conversam longamente entre si e, posteriormente, com o jovem. Presenciei casos em que as conversas prolongaram-se por muito tempo, tendo a intervenção de mais de uma pessoa mais velha no aconselhamento. Interessante observar que, mesmo intensa, essa intervenção não é opressiva, considerando que, ao fim, é o jovem que reconduz (ou não) sua ação, levando em conta os conselhos recebidos.

O Conselho de Articulação do Povo Guarani no Rio Grande do Sul – CAPG

Em função do contexto, do ambiente e da realidade das comunidades Guarani no Rio Grande do Sul, bem como pela importância de fortalecer os laços de solidariedade e de pertencimento com os Guarani dos demais Estados e países vizinhos, surgiu a necessidade de promover um espaço de interlocução mais contínuo. Em função disso é que, no ano de 2003, depois da realização de uma Assembleia dos Caciques Guarani, em Itanhaem, SP, os participantes decidiram formar uma comissão, com pessoas das diversas comunidades, para que se buscasse a regularização das terras guarani no Sul e Sudeste do Brasil. Participaram dessa Assembléia 23 representantes das comunidades Guarani do Rio Grande do Sul. Em 12 de setembro de 2003, no auditório da Funasa, em Porto Alegre, foi realizada uma assembleia que contou com a presença de lideranças de todas as áreas Guarani do Estado, e na ocasião foi constituída a Comissão de Terras Guarani – Nhembaé apo Yvyreguá Mbyá-Guarani.

Vale ressaltar que, especialmente no Rio Grande do Sul, o direito à demarcação de terras sofria certa resistência, porque havia um pensamento de que era mais rápido e viável o estabelecimento de uma política da compra de terra, ao invés de demarcação (uma previsão constitucional). Neste sentido, algumas áreas foram adquiridas com o intuito de permitir que os Guarani pudessem dispor de terras de um modo mais imediato. Alegava-se na época que as terras guarani, pela forte colonização nas regiões Sul e Sudeste, não poderiam mais ser caracterizadas como sendo de ocupação tradicional, conforme determinação da Constituição Federal (Art. 231 da CF). Algumas áreas (Ñhacapetum, Água Grande, Coxilha da Cruz) foram compradas pelo governo estadual no ano de 2000 com o objetivo de transferir os indígenas que viviam em acampamentos de beira de estrada para as áreas adquiridas. Apesar disso, o problema dos acampamentos persiste e as terras adquiridas, passada mais de uma década, não foram regularizadas. No meu entender tal política se mostrou não somente inviável do ponto de vista financeiro, como também culminou em ações que contrariam os legítimos direitos dos povos indígenas.

Desde a criação da Comissão, as lideranças buscam se reunir mensalmente, bem como promovem encontros nas áreas demarcadas e nos acampamentos, para refletir sobre a realidade e ao mesmo tempo elaborar propostas a serem encaminhadas aos órgãos responsáveis pela execução da política indigenista ou ao Ministério Público Federal. O objetivo tem sido sempre encaminhar reivindicações e buscar soluções para os problemas elencados nas comunidades.

Ao longo destes anos, a Comissão de Terras Guarani tem contado, no Rio Grande do Sul, com apoio e assessoria de algumas entidades indigenistas, especialmente do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e do Comin (Conselho de Missão entre Índios). Além disso, estabelecem relação com o Cepi (Conselho Estadual dos Povos Indígenas), e com departamentos das Universidades, de modo mais concreto com o NTI da UFRGS e com estudantes de educação, antropologia e das áreas ambientais. Também nos estados de Santa Catarina e São Paulo foram criadas, simultaneamente, outras Comissões de Terras. No ano de 2010 iniciaram-se as tratativas, entre os Guarani, para criar uma Comissão no estado do Paraná, mas é ainda algo insipiente. E foi a partir das Comissões estaduais que se constituiu a Comissão Nacional Yvyrupá, que se reúne duas ou três vezes ao ano.

No caso do Rio Grande do Sul, em 2008, por ocasião de um encontro realizado em São Gabriel, a Comissão de Terras foi transformada em um Conselho de Articulação do Povo Guarani – CAPG. Para este Conselho foram definidos os seguintes objetivos:

Debater junto às comunidades Guarani os procedimentos de regularização de suas terras, esclarecendo sobre esses procedimentos e seus direitos, através da realização de reuniões locais e assembléias de lideranças; mobilizar, articular e fortalecer as comunidades para que participem ativamente desses procedimentos de demarcação de suas terras; pressionar as autoridades competentes, principalmente a Funai, Conselho Estadual dos Povos Indígenas e Procuradoria da República para que sejam agilizados os procedimentos demarcatórias das terras Guarani do Estado; acompanhar diretamente junto à Funai e Estado todos os procedimentos demarcatórios das terras Guarani do Estado; acompanhar e discutir os empreendimentos que afetam as áreas Guarani, em especial as duplicações das BRs 116 e 290; acompanhar e exigir que as políticas de assistência sejam efetivamente aplicadas, em especial educação, saúde e atividades produtivas (Relatório Final do Encontro).

As ações deste Conselho de Articulação acontecem num contexto de luta pela regularização das terras guarani, considerando que o governo federal não esboçou compromisso com essa realidade, a qual aponta e existência de mais de 10 acampamentos de beira de estrada e mais de 20 áreas tradicionais e sobre as quais se cobra a regularização dos procedimentos demarcatórios. A violência e a falta de condições adequadas de vida empurram cada vez mais os Guarani para a beira de estradas e para os centros urbanos. Estudos realizados pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por entidades e pela prefeitura de Porto Alegre, apontam para um crescimento acentuado da presença Guarani na cidade de Porto Alegre, onde famílias inteiras estão submetidas a precárias condições de vida e a todos os riscos gerados nos grandes centros urbanos.

A partir dessa constatação, observa-se, concretamente, a necessidade de ações cada vez mais interligadas entre todas as comunidades. As comunidades que mantêm um processo de articulação direto com o CAPG têm sido: Estiva, Cantagalo, Capivari, Lami, Itapuã, Ponta da Formiga, Irapuá, Petim, Passo Grande, Passo da Estância, Coxilha da Cruz, Varzinha, Água Grande, Mato Preto. Além destas há iniciativas de participação, mas com menos frequência, em reuniões e eventos mais amplos, das comunidades de Estrela Velha, Inhacapetum, Pacheca, Riozinho, Torres, Barra do Ouro, Salto Grande do Jacuí, Lomba do Pinheiro, Arenal-Santa Maria, Guabiroba, Passo Feio, Mbaracá Mirim, Guarita.

Fazendo uma retrospectiva deste curto período de existência do CAPG, observa-se que ocorreram reuniões de lideranças e comunidades em praticamente todas as áreas guarani – Cantagalo, Estiva, Mato Preto, Itapuã, Coxilha da Cruz, Salto do Jacui, Torres e Capivari, Estrela Velha, São Miguel das Missões. Também foram realizadas diversas audiências e reuniões com órgãos públicos no Rio Grande do Sul (Fundação Nacional do Índio, Ministério Público Federal, Conselho Estadual dos Povos Indígenas) e em Brasília (Ministério da Justiça, encontros com desembargadores dos Tribunais Regionais Federais) acerca dos processos de regularização fundiária das terras guarani. Houve, inclusive, a participação de um Guarani em reuniões na ONU onde foram debatidos os direitos indígenas no mundo.

Como decorrência também desta mobilização, se conquistou a assinatura da Portaria Declaratória que reconhece que a TI Cantagalo é de ocupação tradicional, e que determina sua imediata demarcação e posterior homologação pela Presidente da República. Outras medidas tomadas pelo poder público também aconteceram pela pressão e intervenção do CAPG, tais como a criação dos Grupos de Trabalho da Funai para identificação de Itapuã, Ponta da Formiga, Morro do Coco, bem como do Petim, Passo Grande, Arroio do Conde, e de Estrela Velha. Mais recentemente foi publicado ainda o relatório de identificação da terra Irapuã em Caçapava do Sul.

Ao longo dos últimos oito anos os Guarani do Rio Grande do Sul, através desta forma específica de organização política, conseguiram estabelecer um importante processo de articulação em âmbito regional, nacional e internacional em torno de demandas comuns (terra, autosustentabilidade, preservação ambiental, proteção das águas, saúde, educação). É relevante lembrar, ainda, que a atuação da CAPG tem favorecido a realização de encontros e eventos que, de um lado, possibilitam que se reúnam membros do povo Guarani de diferentes comunidades, estados e países e, de outro lado, permitem que suas questões e lutas específicas adquiram visibilidade e relevância.

Neste sentido, o Conselho tem organizado e promovido periodicamente um encontro, de destaque internacional, que se iniciou em fevereiro de 2006, por ocasião dos 250 anos de memória e morte de Sepé Tiaraju e dos 1500 Guarani massacrados nos confrontos contra Portugal e Espanha. Houve, naquela oportunidade, a participação de aproximadamente 2000 Guarani e o evento passou a ser chamado “I Encontro Continental do Povo Guarani”. Como resultado, houve o compromisso de fortalecer a articulação entre os Guarani, tendo em vista as lutas pela defesa dos seus direitos, principalmente no que se refere à demarcação e respeito de suas terras por parte dos Estados Nacionais.

No ano de 2007, em Porto Alegre-RS, realizou-se o II Encontro Continental, no qual participaram mais de 900 Guarani da Argentina, Paraguai e Brasil. Em setembro daquele mesmo ano, reuniram-se na aldeia Tey’ kue, do Mato Grosso do Sul, cerca de 300 líderes Guarani dos quatro países, lançando “O Movimento Guarani, Grande Povo”. Leonardo Wera Tupã, de Santa Catarina, referindo-se a este encontro destacou: “Este é mais um instrumento de pressão para conseguir nosso direito à terra e para divulgar nossa organização”. No final do encontro, divulgou-se uma carta de compromisso, chamada Yvy Poty. Parte dela diz: "Nesta luta pela vida precisamos contar com o compromisso, a união, a força e a coragem de todas as mulheres, homens e meninos/as de nosso Grande Povo Guarani. Nossos povos irmãos que também nasceram desta terra, e há mais de quinhentos anos resistem em seus sonhos, cantos, rezas, danças e línguas, também devem lutar pela vida”.

A este processo de mobilização e articulação somaram-se encontros promovidos pelo Ministério Público Federal, nos quais foram discutidas propostas para o estabelecimento de normas internacionais, tendo em vista o respeito ao modo de ser e de transitar do povo Guarani nas fronteiras entre Brasil, Argentina e Paraguai. Também algumas entidades indigenistas, dentre elas o Cimi, CTI (Centro de Trabalho Indigenista) e universidades, como a UCDB(Universidade Católica Dom Bosco) do Mato Grosso do Sul, promoveram encontros para a elaboração do Mapa Guarani, ferramenta não apenas geográfica, mas principalmente política, na qual se assinala a localização das comunidades no território deste povo e as terras a serem demarcadas.

Os governos do Brasil, Argentina Paraguai e Bolívia promoveram dois encontros continentais. E essas iniciativas aconteceram por causa das mobilizações/ articulações dos Guarani, bem como numa tentativa de resposta aos debates e levantamentos realizados pelo Ministério Público Federal acerca da realidade fundiária e do desrespeito aos direitos de ir e vir nas fronteiras.

Em novembro de 2010 foi realizado o III Encontro Continental do Povo Guarani, em Assunção, Paraguai, e contou com participação expressiva de lideranças da Bolívia, Argentina, Paraguai e Brasil. Este terceiro encontro foi articulado e promovido por lideranças Guarani dos 04 países e contou com o apoio da Coordenação Nacional da Pastoral Indígena (Conapi), do Paraguai; a Equipe Nacional da Pastoral Aborígene (Endepa), da Argentina; a Rede de Entidades Privadas a Serviço dos Povos Indígenas, do Paraguai; e Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do Brasil. Ao final deste encontro foi criado o Conselho Continental do Povo Guarani. No documento final os Guarani convocam os governos nacionais para que cumpram as leis e respeitem às diferentes culturas. Transcrevo aqui alguns aspectos do referido documento:

PRIMEIRO – A terra e o território são direitos inalienáveis da Nação Guarani, são a vida de nossas cosmovisões; condição que nos permite ser livres e autônomos “IYAMBAE”.

SEGUNDO – Consolidar nossa organização em cada um dos países com presença Guarani a fim de efetivar nossas demandas como Nação Guarani.

TERCEIRO – Constituiu-se um Conselho Continental da Nação Guarani para a articulação com Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai em suas demandas reivindicatórias, e com ele fortalecer nosso desenvolvimento econômico, social e político.

QUARTO – Participar em todas as instancias democráticas da Argentina, Brasil e Paraguai segundo nossos usos e costumes, como Nação Guarani, conseguindo desta maneira fazer chegar as nossas demandas às máximas instâncias de decisão política.

QUINTO – Exortamos a todos a somarem-se a essa luta, aqueles que fazem parte do pensamento e sentimento da Nação Guarani – organismos nacionais e internacionais, ONGs, Movimentos Sociais e outros – para apoiar com propostas e projetos orientados a partir da reivindicação dos direitos consuetudinários e etno-culturais dos Guarani.

SEXTO – Nos declaramos em permanente resistência ante as violações e subjugações ocorridas em toda a extensão de nosso território como Nação Guarani.

SÉTIMO – Nos unimos na defesa de nossa mãe terra ante a contaminação progressiva do ambiente provocado pelas atividades de exploração do subsolo e hidrelétricas que vulneram os direitos a cultura e participação da Nação Guarani.

É necessário considerar, ainda que brevemente, as dificuldades enfrentadas pelo Conselho de Articulação do Povo Guarani no Rio Grande do Sul, tais como as pressões empreendidas por fazendeiros, autoridades e políticos locais contra seus direitos e interesses; o descaso das autoridades governamentais quanto a realidade dos Guarani; a falta de recursos próprios para assegurar atividades de articulação e mobilização; o pouco conhecimento de seus membros e das comunidades acerca dos procedimentos de regularização de terras; as divergências de algumas lideranças importantes com relação ao modelo de organização adotado para desenvolver as articulações; divergência quanto à compreensão e alcance dos direitos constitucionais dos Guarani.

Algumas destas dificuldades decorrem da decisão, que a meu ver é acertada, de não estabelecer estruturas burocráticas e fixas para o CAPG, mantendo assim certa vinculação com as práticas de mobilidade e de leveza, específicos do modo de ser Guarani. E ainda, no outro pólo das dificuldades, residem aquelas que são próprias da estrutura organizativa e política do Povo Guarani e do entendimento de que tudo o que é vinculado às estruturas externas (à cultura guarani) ou articulado com modelos políticos e sociais da sociedade majoritária causam mais transtornos do que benefícios. Tal entendimento decorre de experiências vivenciadas pelos Guarani, num processo histórico marcado por massacres e pelo desrespeito aos seus modos de ser e de pensar.

Na minha avaliação, tais dificuldades devem ser continuamente tratadas pelos próprios Guarani, em conversas prolongadas, realizadas em espaços que lhes são próprios. Tal como afirmam os depoimentos destacados no início deste texto, são os mais velhos que possuem a sabedoria para aconselhar, para acompanhar, para orientar as ações que devem ser realizadas pelos Guarani. Investir em possibilidades de encontros entre os Guarani me parece ser um caminho propício para que eles possam definir conjuntamente os caminhos a serem trilhados. Encontrar-se, conversar, rezar, celebrar, realizar trocas são, afinal, estratégias culturais mantidas cuidadosamente por este povo, na produção e manutenção de suas identidades e de suas formas próprias de viver.

Considerações finais

Por fim, não posso deixar de salientar que, em consequência da proximidade das áreas guarani com os juruá (os brancos e suas estruturas organizativas) e por causa da participação em fóruns de discussões, de debates pela defesa dos direitos das comunidades e do povo se tornou necessário o envolvimento de outras pessoas, pois os caciques não poderiam, sozinhos, dar conta de tamanha amplitude dos temas e questões cotidianamente tratadas. Em função disso, eles autorizam ou nomeiam outras lideranças, quase sempre mais jovens, para ocuparem os espaços de mobilização pública, para frequentarem reuniões, representando as comunidades e seus interesses.

Em decorrência dessa ocupação necessária dos espaços públicos, vão se constituindo outras iniciativas de organização e articulação externas. A Comissão de Terras e, depois, o CAPG poderiam ser pensados como consequências destas demandas, que saem do âmbito local, familiar, comunitário e passam para as esferas municipais, estaduais, federal e até internacional. Vale ressaltar que as novas formas de organização e de articulação incorporadas por comunidades Guarani (e que têm suas origens nos modelos organizativos da sociedade envolvente) não são redentoras, ou seja, não podem ser pensadas como instâncias sem conflito, capazes de resolver, por si só, os problemas enfrentados historicamente. Elas são ferramentas de luta – frutos de escolhas políticas – e se mostram adequadas em determinados momentos e contextos, mas não podem ser pensadas como algo progressivo e/ou definitivo. Até porque, ao assumirem os padrões e moldes organizativos e políticos dos Estados, assumem também as suas contradições e imprecisões. Geram, com isso, os desafios a serem superados, quais sejam: manter vínculo com as comunidades; estabelecer canais de diálogo junto às lideranças tradicionais de cada uma das aldeias; informar tudo o que se faz e as questões que estão sendo debatidas; ouvir o que as lideranças têm a dizer sobre as questões e temas tratados ou a serem encaminhados; estar a serviço dos interesses e direitos dos Guarani.

É necessário dizer, ainda, que alguns líderes religiosos Guarani têm demonstrado recorrentemente sua resistência e desconfiança para com estas novas formas de organização e de articulação. Eles temem, particularmente, que tais processos sejam desagregadores, e colaborem para promover a desestruturação das famílias, das comunidades e do povo. As considerações e alertas feitos são, certamente, levados em conta na rede de diálogo que se estabelece em cada encontro Guarani, em cada reunião de caciques, em cada momento de conversa nas muitas comunidades envolvidas com este processo. Se aposta, assim, na produção de formas concretas de controle e de avaliação destas novas maneiras de luta assumidas (mesmo que temporariamente) pelo Povo Guarani.

Saliento que, ao discutir e apresentar algumas destas formas alternativas de organização e mobilização dos Guarani, centrando minha análise no CAPG, não pretendi enaltecer e nem desqualificar este modelo organizativo. Minha intenção foi chamar a atenção para estas novas estratégias de luta pela garantia de direitos que vêm sendo inventadas e/ou reinventadas pelas comunidades e povos indígenas em todo o país e seu impacto na formulação de ações e políticas governamentais. Concluo dizendo que, apesar das interferências e ingerências que as comunidades sofrem na relação com a sociedade envolvente, elas têm conseguido manter forte coesão interna e, com isso, estabelecer continuamente seu caminhar, como Grande Povo Guarani.

Referências

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BRIGHENTI, Clóvis Antonio. Estrangeiros na Própria Terra: Presença Guarani e Estados Nacionais. Florianópolis: Ed UFSC/Chapecó:Argos 2010.

CATAFESTO DE SOUZA, Luiz Antônio. Crianças Mbyá-Guarani: Práticas pedagógicas & tecnologias de produção da pessoa. [Dissertação de Mestrado]. Canoas, Universidade Luterana do Brasil, 2010.

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CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o estad

Fonte: Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre
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