08/10/2011

XIX Assembleia Geral do Conselho Indigenista Missionário

Relatório da Presidência do Cimi referente ao período 2009-2011

 

I. Introdução

 

"Eu vi a miséria do meu povo.

Ouvi seu clamor por causa de seus opressores.

Conheço as suas angústias.

Por isso desci para libertá-lo

e para fazê-lo subir para uma terra boa e vasta,

terra que mana leite e mel"

Palavra do Senhor (cf. Ex 3,7-8).

 

Miséria, clamor, angústias! A dramática realidade dos povos indígenas em nosso país: assassinatos com requintes de perversidade, suicídio de adolescentes desesperados, ódio racial explícito, destruição programado de sítios e rios sagrados, despejos decretados de terras ancestrais ou confinamento em minúsculos espaços. Esta é a ladainha dos sofrimentos que, apesar de todas as garantias constitucionais, afetam os povos autóctones do Brasil, povos irmãos de todos os povos da terra.

 

O outro lado da moeda:

 

– a altivez com que os próprios indígenas protegem e procuram recuperar suas terras e reclamam condições para viver a sua vida;

  a perseverança e firmeza na defesa de sua dignidade;

– as manifestações e campanhas contra projetos em curso ou previstos que arrasam terras e violentam comunidades indígenas;

– as marchas a Brasília para reivindicar direitos e denunciar atitudes genocidas de governos em nível federal, estadual e municipal.

 

Esta é a conjuntura em que vivemos e o pano de fundo de nossa XIX Assembléia Geral. Foi mais um biênio de trabalho árduo, um período de duros embates políticos, jurídicos e até de confrontamentos com o Governo Federal, especialmente nos temas vinculados ao desenvolvimentismo, aos direitos constitucionais, aos grandes projetos. Enfim, firmamos nossa posição contra o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Estimulado e financiado pelo Governo brasileiro, este programa ataca de modo violento o meio ambiente e as terras indígenas em todo o país.

 

Foi um período também de discussões e busca de soluções para os nossos problemas "caseiros": a formação de missionárias e missionários; a busca de financiamento para os trabalhos das equipes em todos os regionais; a definição de nossas estratégias para a atuação conjunta.

 

De tudo o que realizamos, o mais significativo foi a atuação missionária "in loco", junto aos povos indígenas. Vivemos momentos de imensa alegria, especialmente quando presenciamos a grande resistência e a capacidade de mobilização e articulação destes povos e seu empenho para exercer um crescente controle das políticas públicas que lhes dizem respeito.

 

II. Algumas conquistas e frentes de atuação

 

Buscamos, com esforços coletivos e numa profícua comunhão fraterna, assumir e colocar em prática as definições de nossas assembléias. Afirmo o mesmo em relação a nossos conselheiras e conselheiros que, com grande zelo, conduzem os trabalhos do Cimi nos regionais, sempre em articulação e em sintonia com a Diretoria e o Secretariado Nacional.

 

Destaco agora, de forma mais pontual, alguns avanços de nosso trabalho que demonstram esta coesão em âmbito nacional:

 

a)  Programa Nacional Formação Permanente: há boas e firmes iniciativas do nosso Coletivo Nacional de Formação para que o programa seja efetivamente assumido em âmbito nacional, nos regionais e nas equipes de base. Existem ainda algumas dificuldades para assimilar a proposta, mas sentimos que aos poucos estamos incorporando nos nossos planejamentos momentos específicos para o estudo, a reflexão e o debate acerca dos temas, conteúdos e textos propostos. Foi muito oportuna e importante a realização, em novembro de 2010, de um Seminário de Formação que teve como tema “O sonho, a realidade do Bem Viver frente ao modelo de desenvolvimento”, com o estudo e o debate em torno das experiências do “Bem Viver”, reflexão que o Cimi abraça e propaga pelo país inteiro. Além disso, os regionais do Cimi têm conseguido realizar, com sistematicidade, os encontros macro-regionais previstos no programa.

 

b)  Acampamento Terra Livre: nos dois últimos anos todo o Cimi empenhou-se para viabilizar este espaço importante de mobilização e pressão dos povos indígenas em âmbito nacional, apesar de percebermos algumas fragilidades do movimento indígena. O Acampamento Terra Livre de 2010 foi descentralizado por decisão das organizações indígenas: um aconteceu em Altamira, na região do Xingu, tendo como objetivo intensificar a mobilização contra a Hidrelétrica de Belo Monte, o outro ocorreu em Mato Grosso do Sul com a finalidade de apoiar as lutas dos povos naquele Estado onde violações dos direitos indígenas envolvem sistematicamente os povos Guarani-Kaiowá e Terena. Neste ano de 2011, o Acampamento voltou a ser unificado e ocorreu em Brasília. As fragilidades do movimento indígena, especialmente quanto à capacidade de articulação das lideranças com seus povos, se tornaram mais evidentes. Há uma espécie de desconexão entre a realidade das comunidades e os objetivos e interesses de muitas lideranças. Apesar disso, é inegável que estas atividades são referência de mobilização e de pressão sobre os poderes públicos. Precisamos, em diálogo permanente com os povos, suas lideranças e organizações, qualificar e unificar ainda mais as lutas.

 

c)  Encontro Nacional dos Povos Indígenas em Defesa da Terra e da Vida: atendendo a solicitação dos povos indígenas, apoiamos a realização do encontro nacional em abril de 2011. Na ocasião, mais de 200 lideranças de 66 povos indígenas de todas as partes do país apresentaram a realidade de suas comunidades, destacando especialmente os empreendimentos e a criminalização que ameaçam suas terras e suas vidas.

 

d)  Atuação em âmbito eclesial: o Cimi se faz presente nos espaços de reflexão, debates e discussões de nossa Igreja, especialmente nas reuniões das pastorais e de organismos missionários, além de mantermos uma participação ativa nas reuniões do Conselho Episcopal de Pastoral (CONSEP), do Conselho Permanente da CNBB e na sua Assembléia Geral. Durante as duas últimas Assembléias Gerais da CNBB, conseguimos espaço e levamos ao conhecimento dos bispos a realidade dos povos indígenas do Brasil. Estivemos presentes nas assembléias do Conselho Missionário Nacional (COMINA). No mês de dezembro de 2009 participamos, em San Salvador, El Salvador, do VI Encontro Continental de Teologia Índia, Migração e Mudanças Culturais: "Desafios e Esperança para os Povos Indígenas". Fizemo-nos igualmente presentes no IV Simpósio “Teologia Índia”, cujo tema foi “Teologia da criação na fé política e nos mitos, ritos e símbolos dos povos indígenas cristãos na América Latina” e, em seguida, participamos do encontro executivo da AELAPI (Articulação Ecumênica Latino-Americana de Pastoral Indígena), realizados em Lima, Peru.  Em Ribeirão Cascalheira, Mato Grosso, estivemos na Romaria dos Mártires da Caminhada, com o tema “Testemunhas do Reino”. Marcamos também presença no VIII Encontro Nacional dos Organismos e Institutos Missionários, realizado em São Paulo.

 

e)  Relatório de Violência contra os Povos Indígenas: o Cimi continuou sendo a única organização brasileira preocupada em sistematizar e denunciar as violências e violações cometidas contra os povos indígenas, sejam elas praticadas por particulares, pelo poder público ou contra o patrimônio indígena. O relatório tem sido produzido e publicado com regularidade nos últimos anos. Faço um apelo para que nossas equipes se empenhem cada vez mais na coleta e no devido repasse de informações para que sejam analisadas e sistematizadas e a cruel realidade de violência contra os povos indígenas não seja encoberta ou esquecida. O relatório tem, além do caráter da denúncia, o objetivo de exigir das autoridades o cumprimento das normas constitucionais e a construção de uma política indigenista verdadeira e adequada aos direitos e necessidades dos povos indígenas.

 

f)   Agências de cooperação internacional: contamos com o apoio de agências e apoiadores dentro e fora do país para dar continuidade aos nossos trabalhos. Esta colaboração solidária tem nos garantido independência e altivez, especialmente quando lembramos e cobramos ao poder público as suas responsabilidades.

 

g)  Alianças com movimentos sociais e populares: as Coordenações Regionais e o Secretariado Nacional se desdobraram na busca de alianças. Temos a firme convicção de que as alianças dos povos indígenas com outros segmentos da sociedade são estratégicas e imprescindíveis para a garantia dos direitos inalienáveis e da autonomia tão sonhada.

 

h)  Semana dos Povos Indígenas: a Semana dos Povos Indígenas já faz parte do calendário anual de eventos no Brasil e o Cimi mantém fidelidade na sua promoção. Ao invés das comemorações oficiais do “Dia do Índio”, propomos uma semana de debates, manifestações e estudos sobre a realidade indígena. Vale ressaltar que os temas escolhidos para motivar a reflexão e o debate estão vinculados a outras causas igualmente importantes, tais como o meio ambiente e o combate ao desmatamento e à depredação das terras, com também o combate aos empreendimentos que causam danos irreversíveis às florestas, aos rios e à biodiversidade. Procuramos, aliás, estar sempre em sintonia com as Campanhas da Fraternidade da CNBB. Neste último ano sugerimos reflexões em torno do “Bem Viver”: um novo jeito de vida em oposição ao capitalismo.

 

i)   Povos Isolados: o Cimi produziu e divulgou o livro “Povos Indígenas Isolados na Amazônia – A luta pela sobrevivência", fruto do trabalho de uma equipe de missionários, particularmente o abnegado empenho do Padre Gunter Kroemer (+15.07.2009) em favor destes povos. O livro apresenta amplas informações sobre os povos indígenas isolados, com o objetivo de buscar apoio na sociedade civil para a defesa e garantia de direitos que permitam a esses povos continuarem a existir enquanto sociedades diferenciadas. A publicação alerta para as ameaças a que estão submetidos estes povos, especialmente pelas obras desenvolvimentistas do PAC.

 

j)   Comunicação e Informação: estamos aprimorando nossos canais de comunicação. Conseguimos aumentar a nossa presença em espaços alternativos que causam boa repercussão junto à sociedade no Brasil e no exterior, bem como no âmbito dos poderes de Estado. Para isso contribuíram o Jornal Porantim, o Informe Semanal “O Mundo que nos Rodeia”, a Revista Mensageiro, o programa Potyrõ. Também conquistamos uma mais ampla inserção da questão indígena nas mídias sociais.

 

k)  Campanha Povo Guarani Grande Povo: esta campanha tem possibilitado a articulação e a partilha das lutas dos Guarani em âmbito continental. Parabenizamos os regionais Sul e Mato Grosso do Sul pela valorosa contribuição e articulação que têm feito com entidades e pastorais indigenistas de outros países como CONAPI, ENDEPA e movimentos de luta dos povos Guarani da Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Brasil. Esta campanha também possibilitou a realização do Encontro Continental Guarani. Em março de 2010 realizamos a primeira reunião do Conselho do Cimi na cidade de Campo Grande. Na ocasião, visitamos com o recém-empossado arcebispo de Campo Grande, Dom Dimas Lara Barbosa, então Secretário-Geral da CNBB, as terras indígenas Nhanderu Laranjeira, Passo Piraju e outras. Ficamos estupefatos diante da miséria a que os Guarani são relegados. Causou-nos arrepios ver o sofrimento deste povo e pudemos demonstrar nossa solidariedade na luta pela recuperação de suas terras ancestrais. Há poucas semanas o Regional Mato Grosso do Sul publicou o livro "As violências contra os povos indígenas em Mato Grosso do Sul e as resistências do Bem Viver por uma Terra sem Males". Ficamos muito gratos ao regional por mais esta contribuição valiosa para sacudir o Brasil e o mundo a respeito de um genocídio que está em curso. Agradecemos também ao nosso missionário veterano Egon Dionísio Heck os inúmeros artigos em defesa deste povo tão flagelado. Destacamos ainda outras campanhas protagonizadas pelos povos indígenas com o apoio do Cimi, a exemplo da Campanha Opará – Povos Indígenas em Defesa do Rio São Francisco.

 

l)   Encontros Brasil, Bolívia, Peru e Colômbia: os regionais Amazônia Ocidental, Rondônia, Mato Grosso e Norte I têm contribuído na construção de alianças com nossos irmãos latino-americanos.

 

m) Campanhas e mobilizações contra Belo Monte: conseguimos demonstrar à sociedade o que significa este “Belo Monstro”. Não é à toa o apoio que os povos indígenas e outros segmentos têm recebido, seja da juventude, de personalidades, de cidadãos comuns e do meio acadêmico, na luta contra esta obra megalomaníaca. De posse de informações corretas e não de propagada falaciosa, as pessoas passam a não admitir que a obra seja enfiada “goela abaixo”. Conseguimos sensibilizar e mobilizar a presidência da CNBB e outras instâncias de nossa Igreja. As TVs católicas transmitiram, ao vivo, o debate realizado no auditório da Rede Vida, em Brasília, onde o presidente do Cimi debateu o projeto com vários representantes de órgãos governamentais.

 

n)  Reconhecimentos ao nosso trabalho: nos últimos dois anos, o trabalho do Cimi recebeu importantes reconhecimentos no Brasil e no exterior. Fomos homenageados em função da contribuição e do apoio às lutas dos povos indígenas, bem como por nosso empenho em favor da construção de uma sociedade mais justa, humana, fraterna que respeite as diferenças. Recebemos dois prêmios relacionados a Direitos Humanos, um outorgado pela organização Gesellschaft für Bedrohte Völker (GfBV), da Alemanha, e outro pela entidade Humanos Direitos, do Rio de Janeiro. Cabe aqui também registrar o Prêmio Nobel Alternativo, conferido em dezembro de 2010 em Estocolmo, Suécia, pela Right Livelihood Award Foundation ao presidente do CIMI, em reconhecimento ao trabalho em defesa da causa indígena, dos direitos humanos e da Amazônia.

 

o)  Julgamento da ação de nulidade dos títulos de propriedades concedidos a ocupantes da terra indígena do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia: temos apoiado as comunidades Pataxó Hã-Hã-Hãe no acompanhamento a este processo que já tramita há quase trinta anos. Em setembro de 2008, teve seu julgamento retomado no Supremo Tribunal Federal (STF). Naquela ocasião, o ministro relator do processo, Eros Grau, reconheceu o direito dos indígenas à terra e considerou nulos os títulos concedidos sobre as terras Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nos últimos dias, o julgamento entrou na pauta do STF e continuamos a apoiar a articulação e as manifestações dos Pataxó Hã-Hã-Hãe.

 

III. Os principais problemas que afetam os povos indígenas

 

Passo agora a abordar as graves questões que afetam os povos indígenas no seu cotidiano:

 

– a omissão do Governo Federal em relação à demarcação, fiscalização e proteção das terras, de modo especial em Mato Grosso do Sul, Bahia, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Paraná, Maranhão e Pernambuco;

– os grandes empreendimentos econômicos em terras indígenas que impactam, além da vida humana, toda a natureza, suas águas, matas, plantas e animais;

– as confusas e desrespeitosas políticas públicas implementadas pela Funai, Sesai e pelas Secretarias de Educação nos estados e municípios;

– o Poder Judiciário que através de algumas decisões coloca em risco os preceitos constitucionais, uma vez que estes são analisados e interpretados a partir de interesses políticos e econômicos e não à luz da verdade e dos direitos dos povos indígenas;

– o Poder Legislativo que não cansa de atentar contra a Constituição Federal pretendendo limitar, através de projetos de lei, o alcance do Artigo 231.

 

A omissão do governo no que se refere à demarcação, proteção e fiscalização das terras é gravíssima e produz consequências avassaladoras, especialmente nas relações das comunidades e povos com a sociedade envolvente. O governo, ao não cumprir com sua obrigação constitucional de demarcar as terras, estimula e não raras vezes promove os conflitos, a exemplo do que ocorre na terra indígena Marawatsede, do povo Xavante, que luta pela retirada dos invasores de suas terras. Já que, em nosso país, o poder estatal está a serviço dos mais ricos, quem sofre as consequências dos conflitos são as comunidades indígenas e suas lideranças que acabam assassinadas, ameaçadas, espancadas, perseguidas e presas. Merecem triste destaque os estados de Mato Grosso do Sul e Maranhão que, nos últimos anos, registram o maior número de indígenas assassinados.

 

Das 1.023 terras indígenas existentes, apenas 360 estão regularizadas. 322 terras continuam sem nenhuma providência administrativa para serem reconhecidas pelo Estado brasileiro. Das terras que se encontram em processo de demarcação, 156 estão em fase de estudos, 27 estão identificadas, para 60 o Ministério da Justiça expediu a portaria declaratória e 63 foram homologadas pela Presidência da República. Existem ainda 35 áreas reservadas a povos indígenas.

 

Os grandes empreendimentos econômicos patrocinados e financiados pelo Governo Federal afetam diretamente as terras indígenas e ameaçam o equilíbrio ecológico. À sociedade é negado o direito de opinar e participar das decisões. Também lhe é vedado exercer qualquer tipo de controle. São empreendimentos para sustentar uma política desenvolvimentista que enriquece empreiteiras, madeireiras, empresas de mineração, agronegócio, setores turísticos e empresas de geração de energia hidráulica e nuclear. Os exemplos deste modo perverso de lidar com o meio ambiente são a transposição do Rio São Francisco, a hidrovia Araguaia-Tocantins, o complexo hidroelétrico do Rio Madeira, as hidroelétricas de Serra da Mesa e as demais em construção ou previstas no Rio Xingu, Tapajós, Juruena, Teles Pires, Tocantins e Araguaia, bem como a construção e duplicação de rodovias.

 

Desde a era do presidente Lula, a política indigenista brasileira se firma em três eixos:

 

1- a reestruturação da Funai como prestadora de serviços ao PAC, ou seja, o órgão indigenista se constituiu numa agência para avalizar obras que afetam terras indígenas e seu presidente é reduzido a mero “carimbador” de documentos e relatórios para autorizar as grandes obras. A mesma lógica se observa no Ibama e no Instituto Chico Mendes;

2- a política assistencialista (bolsas família, escola) é voltada para demandas pontuais (epidemias, catástrofes, pobreza extrema);

3- a desqualificação do direito à demarcação das terras de ocupação tradicional: existe uma determinação governamental de não mais demarcar terras reivindicadas pelos povos e comunidades com o argumento de que o Governo já demarcou tudo o que deveria demarcar e as novas demandas são exageros. Há inclusive uma orientação para que os membros dos GTs (Grupos de Trabalhos), criados para proceder aos estudos de identificação e delimitação das terras indígenas, demonstrem que as terras reivindicadas pelos indígenas não podem ser demarcadas como sendo de ocupação tradicional. Com isso, a Funai se sobrepõe às normas constitucionais e pretende impor a política da compra de terras e criação de pequenas reservas para assentar as famílias e comunidades em luta pela terra. Outras medidas inconstitucionais aplicadas são as reduções territoriais.

 

Em relação à política de saúde, o Governo Federal não acredita, ao que parece, no Subsistema de Atenção à Saúde. O novo modelo deveria ser gestado através de uma Secretaria Especial que, por sua vez, teria como referência os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, unidades gestoras com autonomia administrativa e financeira. Na prática, o governo mantém a política de assistência de forma terceirizada, bem à maneira dos outros governos, desde o tempo do presidente Fernando Henrique Cardoso.

 

Para a educação escolar indígena há investimentos de recursos financeiros e de pessoal para difundir uma política amparada na idéia dos territórios etno-educacionais. Na prática, se discute um modelo que nunca funcionará, porque os serviços em educação escolar indígena continuarão sob a responsabilidade de estados e municípios. Os territórios se constituirão numa espécie de referência virtual, pois as políticas são executadas a partir das secretarias municipais e estaduais de educação. A participação indígena estará submetida aos interesses destas secretarias.

 

A judicialização dos procedimentos demarcatórios, aliada à morosidade governamental para reconhecer e regularizar as demarcações das terras indígenas, não deixa de ser uma prática espúria. Dezenas de ações judiciais têm sido impetradas para pedir a suspensão de demarcações. Muitos dos procedimentos administrativos de demarcação de terras indígenas estão paralisados devido a decisões judiciais em diferentes instâncias. Em Santa Catarina, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul os próprios governos estaduais têm orientado os ocupantes de terras indígenas a entrarem com ações ordinárias na Justiça Federal, pedindo a suspensão dos efeitos de portarias declaratórias, expedidas pelo Ministério da Justiça, ou a anulação de portarias da própria Funai que constituem os Grupos Técnicos (GTs).

 

No Congresso Nacional os setores anti-indígenas têm atuado com uma infame virulência na tentativa de restringir os direitos indígenas. Atualmente existem mais de 200 Projetos de Lei (PLs), Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) e Projetos de Decretos Legislativos (PDCs) contra os povos indígenas, tramitando na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Por outro lado, os projetos de interesse dos povos indígenas, tais como o PL 2057/1991 que trata do novo Estatuto dos Povos Indígenas e o PL 3571/2008 que cria o Conselho Nacional de Política Indigenista, estão engavetados. No entanto, a proposta de novo Estatuto dos Povos Indígenas já completa 20 anos de tramitação e nada indica que consiga aprovação nos próximos períodos.

 

O orçamento para a execução das ações para os povos indígenas é insuficiente e deficitária, agravada pela falta de planejamento e vontade política na sua aplicação. Os dados demonstram que, mesmo havendo recursos aprovados, estes acabam não sendo aplicados. Por exemplo, em 2010, na ação de Demarcação e regularização de terras indígenas, a Funai gastou apenas 47,51% dos R$ 25 milhões orçados. No mesmo ano, a Funasa deixou de investir na estruturação de unidades de saúde para atendimento da população indígena cerca de R$ 19,357 milhões que estavam aprovados no orçamento da União. Também não foram aplicados os R$ 27,139 milhões previstos para a promoção, vigilância, proteção e recuperação da saúde indígena e mais R$ 987,8 mil que se destinavam à ação de vigilância e segurança nutricional dos povos indígenas Todos esses recursos retornaram ao Tesouro Nacional para alimentar a meta de superávit do país.

 

A Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) acabou se tornando uma espécie de "bombeiro" que tenta minimizar ou mitigar os estragos deixados pela falta de coordenação das políticas destinadas aos povos indígenas. Mesmo assim, ela ainda seria um espaço de articulação de lideranças indígenas em torno das questões que afetam os seus direitos, mas a má vontade das autoridades acabou de causar uma reação fulminante das lideranças indígenas, membros da CNPI. Retiraram-se em protesto e declararam publicamente que retornarão à Comissão somente no dia em que a presidente da República assumir uma postura de diálogo.

 

Por causa da inércia e inépcia da Funai, os povos que vivem em situação de isolamento permanecem vulneráveis diante da expansão econômica e a consequente devastação de suas terras. É urgente que o Estado reconheça os direitos dos indígenas isolados, garanta sua integridade física, social, cultural e econômica, a proteção de seu território e de seus recursos naturais, aplicando para tal a legislação nacional e internacional. Em todas as regiões onde há referências de presença de índios isolados, os projetos de infra-estrutura, de geração e transmissão de energia, de colonização e de extração de recursos naturais, principalmente de minérios, devem ser suspensos. É importante mencionar os problemas enfrentados pelos povos em processo de reconhecimento étnico e territorial, bem como aqueles que vivem nas periferias dos centros urbanos, que não encontram na atual política indigenista nenhum amparo às suas reivindicações. O Estado mais uma vez é omisso e lhes nega até mesmo o reconhecimento étnico e o direito a um atendimento de saúde diferenciado.

 

IV. Conclusão

 

Aproveito este momento solene da XIX Assembléia Geral do Cimi em que a atual diretoria termina o seu mandato, para agradecer a Deus pela força que impulsiona cada missionária e missionário, funcionária e funcionário, assessora e assessor. É a força do Espírito Santo (cf. At 1,8) que faz do Cimi um espaço privilegiado de serviço, de apoio, de estímulo e de esperança para as lutas dos povos indígenas.

 

Na celebração eucarística de abertura desta assembléia ouvimos as palavras de São Paulo: "Somos atribulados por todos os lados, mas não esmagados; postos em extrema dificuldade, mas não vencidos pelos impasses" (2 Cor 4,8). Problemas existem e sempre existirão, tentações de desânimo também, mas jamais perderemos a esperança, a “esperança condensada na mensagem do Reino e da ressurreição de Jesus, que é promessa da justiça definitiva”, como nos lembra nosso assessor teológico Paulo Suess.

 

Nunca deixaremos de confiar na força que vem de Deus. Apesar de aparentes derrotas, de perseguições virulentas e infame criminalização por parte dos inimigos dos povos indígenas, acreditamos na presença do Senhor da Vida em nosso combate à morte que ronda as aldeias.

 

Conforta-nos sempre a palavra do Senhor dirigida a Jeremias, o profeta da firmeza e audácia, mas também das lágrimas derramadas por causa das agressões e injúrias: "Eles lutarão contra ti, mas nada poderão contra ti, porque eu estou contigo" (Jer 1,19). O segredo profundo de toda a ação missionária é nossa fé inabalável no Senhor que outrora libertou o povo de Israel e o fez "sair de debaixo das corvéias" (Ex 6,6) de seus opressores para conduzi-lo à terra prometida, "terra que mana leite e mel" (Ex 3,8), terra sonhada do "bem-viver".

 

Luziânia, GO, 08 de outubro de 2011.

 

Erwin Kräutler

Bispo do Xingu

Presidente do Cimi

 

Fonte: Cimi
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