“Meu partido político é o meu povo Kaiowá-Guarani”
Depoimento de Valdelice Veron, no Seminário Pró-Tribunal Popular da Terra,
Na platéia, o assombro das pessoas e o que está por chegar aos ouvidos, fogem dos limites da imaginação. Silencio espectral. A quietude contida na respiração. O seminário pró Tribunal popular da Terra no Mato Grosso do Sul atinge um dos seus momentos mais significativos. O auditório “A” da UCDB de Campo Grande no dia 24 de setembro foi o cenário de denuncias e proclamações. Uma mulher indígena, professora e filha de uma das tantas lideranças assassinadas no estado, faz um comovente depoimento. A missão dela não é fácil. Relatar como atuaram os órgãos do governo e os pistoleiros juntos em 13 de janeiro de 2003 na ação que terminou com a morte de seu pai Marcos Verón, até então cacique Kaiowá-Guarani da terra indígena Taquara, município de Juti/MS. Naquela data, mais uma vez, pistoleiros atropelam a comunidade em busca de despejo, de violência. Valdelice Verón vai além. Contextualiza a luta de seu povo, de sua comunidade, de sua família nuclear extensa. Descreve com realismo e emociona-se com a forma cruel que mataram seu pai. E ainda esboça momentos atuais do sofrimento do povo Kaiowá-Guarani e de outros povos indígenas no MS por conta da violência, da discriminação e negação de direitos.
“Quando minha mãe ia nascer”
Valdelice sentencia que quando sua mãe ainda estava na barriga de sua avó, seus ascendentes já se escondiam, fugiam e se espalhavam pelos matos para evitar ser caçado pelos jagunços e funcionários do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), órgão federal. Eram tempos de criação das oito reservas indígenas de Dourados. “Não perguntaram ao povo guarani se queria deixar suas terras tradicionais”.
Conta que vindo para Campo Grande como convidada a participar do Seminário, não longe da capital do estado, sobre a BR-163 avista um gigantesco confinamento de gados, que têm com destino o abate. E fala para o auditório: “assim que nos estamos jogados hoje nas reservas; como gados para sermos abatidos de várias formas todos os dias”. Lá por 1931 jagunços e o SPI não descansavam. A correria era grande. Ao mesmo tempo em que a mãe da Valdelice ia nascer uma tia dela estava grávida também. Saem da região da aldeia Teikue e entram em Lucero, região de Caarapó/MS. Despejos e perseguição contra esse povo indígena não tem trégua. O confinamento nas reservas era a ordem do momento. A Valdelice não tinha nascido ainda; sua mãe consegue se salvar. Sua tia morreu queimada viva!
“Fiz tereré para Lula”
O Grande povo Guarani foi reduzido nas oito reservas e a época do confinamento ganhou a sangue e fogo à época da liberdade. “Eu tinha seis anos quando Lula foi visitar meu pai na reserva e fiz o tereré para eles”. A história foi contada para quem iria ser o presidente da república. Foi falado da crueldade do confinamento, do trabalho escravo, da discriminação dos “brancos”, da dependência da cesta básica. Tudo segue igual; o estado brasileiro não reverteu o genocídio causado nas terras indígenas. Os territórios Kaiowá-Guarani ao invés de serem retornados para seus legítimos donos seguem sendo moeda de troca do latifúndio, do agronegócio, do crime organizado, dos políticos corruptos e juízes venais.
Uma e outra vez; em 1953, 1960, 1997, 2001,
“Todo o mundo em marcha de novo”
O depoimento da liderança Kaiowá-Guarani chega ao que seria a marcha final do cacique Marcos Verón, seu pai. Valdelice conduz aos presentes no auditório para um clímax surreal. O relato dela se ergue como nas centenas via sacra do pai a quem acompanhou desde criança. “Meu pai não queria que o acompanhasse, tinha medo de picada de cobras, mas eu igual o acompanhava”. Viu injustiças demais desde cedo que com justa razão não acredita em reparação alguma. “Não consigo acreditar na justiça; sempre experimentei a sensação de que somos como uma doença em nosso próprio território”, desabafa mais uma vez durante seu depoimento.
“Vamos sair da beira da estrada; somos estrangeiros em nossa própria terra. Todo mundo em marcha até a nossa terra de novo”, foi o ultimo grito de guerra de Marcos Verón, em outro inicio de partida para a terra sem males. Foi em janeiro de
Enquanto Valdelice estava em Dourados aonde foi levar a mensagem de seu pai ao Ministério Publico Federal, acontece o novo ato de barbárie contra a comunidade. O grande cacique Marcos Verón é assassinado pela milícia privada do latifúndio. Valdelice se informa do ataque na aldeia através do noticiário da televisão estando na sede da FUNAI. “Vi na televisão que tinham espancado meu pai”. Funcionários da FUNAI falam para ela: “Teu pai só levou um tiro na perna, ele já saiu do hospital”. Quando chegou ao hospital e pergunta pelo pai, falam para ela: “Teu pai já chegou morto aqui”.
“Acho que até meu medo já mataram”
Na parte final de seu depoimento, um silêncio sepulcral se apodera do auditório. Ela continua falando do mesmo jeito do atual sofrimento dos povos indígenas
Já tentaram subornar ela muitas vezes, comprar seu silêncio, sua dignidade. Um prefeito recentemente convidou-a a se afiliar no partido dele em troca de favores. Valdelice lhe responde: “O meu partido político é o meu povo Kaiowá-Guarani”.
No auditório da UCDB o silêncio respeitoso se faz emoção, a denúncia se faz bandeira e luta, e a mulher guarani é aplaudida durante um minuto de pé…