Mobilização do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe pede para ministros do STF seguirem voto de relator
Renato Santana
de Brasília
Saiu da pauta desta semana do Supremo Tribunal Federal (STF), mas poderá voltar nas próximas sessões da Corte. Justamente por isso, as mobilizações dos Pataxó Hã-Hã-Hãe seguem para sensibilizar e pedir aos ministros que acompanhem o voto do relator Eros Grau pela nulidade dos títulos imobiliários dos invasores da Terra Indígena Caramuru – Paraguassu, no sul da Bahia.
O processo corre desde 1982. Dos mais de 54.105 mil hectares demarcados, os indígenas ocupam apenas 18 mil – o restante está nas mãos dos invasores que receberam títulos de propriedade do Governo da Bahia depois do processo de demarcação realizado.
Com latifundiários dentro da terra, os indígenas sofrem violências e expulsões seguidas das aldeias. Nestes quase 30 anos de processo, 27 lideranças do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe foram assassinadas e o país assistiu a morte de Galdino, em Brasília (DF), quando foi incendiado por cinco jovens de classe média alta em 20 de abril de 1997.
Galdino estava na Capital Federal em luta pela nulidade dos títulos, ou seja, por esse processo em tramitação para votação na Corte do Supremo. Na Praça Galdino, onde se encontra o memorial erguido no local em que o corpo do indígena foi encontrado, os Pataxó Hã-Hã-Hãe iniciaram seus rituais nesta terça-feira (27).
“Meu irmão morreu assim como muitos outros líderes. Pedimos aos ministros apenas nossas terras para criarmos nossos filhos e netos”, diz Yaranwy Pataxó Hã-Hã-Hãe. A atividade foi ritualística, na base do Toré, ao redor do monumento, e de lá os indígenas seguiram para vigília na porta do STF.
Para o cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe, os ministros precisam se basear no relatório de Eros Grau e “ver que até recentes descobertas arqueológicas de cemitérios indígenas atestam que habitamos aquelas terras tradicionalmente”, afirma.
Os indígenas se reuniram com deputados e senadores e na Fundação Nacional do Índio (Funai) cobraram mais envolvimento do órgão durante esse período de entrada do processo na pauta do Supremo, posto que a Funai é autora da ação. “Saímos com o compromisso do presidente da Funai (Márcio Meira). Mas sabemos que precisamos nos manter mobilizados”, destaca Nilza Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Outros povos, caso dos Tupinambá da Serra do Padeiro e os Pataxó, ambos da Bahia, também estiveram presentes nos rituais, articulações e manifestos. “Não se trata de apenas um povo, mas de uma luta que unifica todos os indígenas. Nós também lá do extremo sul baiano estamos em luta pela demarcação do nosso território”, destaca o cacique Aruã Pataxó – que preside a Federação Indígena dos Povos Pataxó e Tupinambá.
Arasary Pataxó, cacique da aldeia Jitaú, de Porto Seguro (BA), acredita que apenas a unidade pode fazer frente ao poderio financeiro e político dos invasores dos territórios indígenas.
Durante esta quarta-feira (28), as mobilizações seguiram. Reuniões e encontros, além de mais uma vigília na porta do Supremo.
As razões da nulidade
Conforme relatou o ex-ministro Eros Grau, a perícia antropológica demonstrou a existência permanente de índios na região desde 1651. “O que atesta a identidade do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, bem como a ligação de seus integrantes à terra, que lhes foi usurpada”, diz a justificativa do voto.
O relatório e voto de Eros Grau salientam ainda que o argumento de que não é necessária a prova de que as terras foram de fato transferidas pelo Estado da Bahia à União ou aos índios, “ao fundamento de que disputa por terra indígena entre quem quer que seja e índios consubstancia, no Brasil, algo juridicamente impossível”.
Considera, assim, que títulos oriundos de aquisição a non domino (aquilo que não é proveniente do dono) são nulos.
Recentes descobertas arqueológicas apontam para a presença indígena no território há, no mínimo, 620 anos – conforme aplicação de Carbono 14 em urna funerária descoberta na área da Reserva Caramuru. No entanto, o artefato apenas ressalta conclusões a que o Estado chegou ao início do século XX, por intermédio de um decreto de 20 de março de 1926.
Na ocasião o Governo da Bahia destinou 50 léguas quadradas – mais de 240 mil hectares – para a preservação de recursos florestais e para a proteção de índios Pataxó, Tupinambá e demais etnias lá encontradas. Apenas dez anos depois, em 1936, ocorreu a medição da área, já definida.
Tem início então uma sucessão de irregularidades, massacre de índios e roubo de território que perduram até os dias de hoje; o SPI passa a arrendar parte das terras destinadas aos indígenas. Além disso, outros invasores passam a invadir as terras.
Os povos originários esboçam resistência e conflitos são registrados. Ao final de um período que passou pelas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960, boa parte dos índios foram expulsos – sobretudo pelo medo da morte que atingira centenas deles – e outros permaneceram nas terras ocupadas tradicionalmente, mas em situação análoga a escravidão em serviços nos latifúndios dos invasores.
“Não podíamos nos assumir como índios. Quem assim fazia corria o risco de ser morto pelos invasores. Eles nos proibiam. Cresci sem poder me assumir como índia porque meus pais também não se assumiam. Éramos como escravos”, lembra Laura Pataxó Hã-Hã-Hãe. Acima dos 70 anos, a indígena afirma que a família sempre viveu nas áreas que compreendem o território.
Durante este processo, o governo baiano passa a emitir títulos imobiliários para os invasores do Território Indígena sob a alegação de que lá não viviam mais índios. O procedimento ocorreu até a década de 1980 – investigações, apresentadas na ação da Funai, constataram títulos imobiliários do Estado da Bahia.
Quatro perícias
Os invasores desqualificam o relatório antropológico, ou qualquer outra prova, que ateste a ocupação tradicional e define a identificação e delimitação da área. Alegam que os índios nunca o ocuparam com “permanência efetiva” e que a posse nunca teve continuidade.
“Fomos expulsos, assassinados e escravizados. Até hoje qualquer movimentação nossa a polícia aparece com helicópteros, os pistoleiros agem”, ataca cacique Nailton. Outro argumento usado pelos invasores é que o Estado da Bahia arrendou terras pela ausência dos índios e por isso considerou o território devoluto.
O STF, onde tramita a ação, pediu quatro perícias antropológicas. A última delas desconstrói todos os argumentos: os índios lá estão desde 1651; a presença dos Pataxó Hã-Hã-Hãe sempre foi permanente e secular em um território delimitado e claramente reconhecido – não eram nômades; tal vivência na terra nunca se interrompeu: mesmo com a crueldade dos invasores, muitos indígenas permaneceram na mata ou nas fazendas.
No STF, o ex-ministro Eros Grau entendeu que os índios estavam presentes na área muito antes da Constituição de 1967/69 e, portanto, votou pela nulidade dos títulos dos invasores. O julgamento agora é retomado com voto da ministra Carmem Lucia. Tinha sido interrompido por um pedido de vistas. O povo Pataxó Hã-Hã-Hãe agora espera que os ministros acompanhem o raciocínio de Eros Grau – mesmo que este já tenha se aposentado.
“É um desejo que temos ter a nossa terra de volta, sem nenhum invasor dentro ameaçando a comunidade e o futuro de nosso povo. Queremos sensibilizar os ministros, a sociedade. É um direito nosso e muitos já morreram nessa luta”, frisa cacique Nailton.