26/09/2011

Povo Pataxó Hã-Hã-Hãe realiza manifestações na Funai e Praça Galdino para sensibilizar STF

Renato Santana

de Brasília

Um dos atos públicos do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe acontece na Praça Galdino hoje (27), às 16h, com ritual para lembrar a luta do indígena, queimado e morto em abril de 1997, enquanto reivindicava na Capital Federal a nulidade dos títulos imobiliários dos invasores das terras de seu povo, agora em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF). “Os ministros do Supremo precisam levar em conta todo o nosso sofrimento, toda nossa dor”, disse a irmã de Galdino, Yaranwy Pataxó Hã-Hã-Hãe. 

 

 

Mais de 100 indígenas do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe estão em Brasília (DF) para atos públicos em defesa do território tradicional, localizado no sul da Bahia. As mobilizações ocorrem porque está em pauta no STF votação que trata da nulidade de títulos imobiliários dos invasores da Terra Indígena Caramuru – Catarina Paraguassu.

 

Na última sexta-feira (23) foi incluída na pauta do STF a votação da ação. No entanto, foi retirada ontem (26). Ainda assim, ela deve ser votada nas próximas sessões da Corte do Supremo. Justamente por isso, as mobilizações não cessam na Capital Federal.

 

Hoje (27) os indígenas irão à Fundação Nacional do Índio (Funai) – autora da ação a ser votada pelo STF –, por volta das 9h30, e na sequência farão reuniões com parlamentares e Advocacia Geral da União (AGU) para mostrar todo o histórico da luta pela Terra Indígena Caramuru. À tarde, por volta das 16 horas, realizam ritual indígena na Praça Galdino, na Asa Sul (703/704), e de lá seguem para vigília na porta do STF, que deve ir até perto das 22 horas.

 

Em 2008, Eros Grau, relator do processo, recebeu os indígenas e seu voto foi pela nulidade dos títulos. Hoje está aposentado do STF, mas tanto o voto como a relatoria não perdem a validade. Segue na votação, conforme a pauta, a ministra Carmem Lúcia.

 

Conforme relatou o ex-ministro, a perícia antropológica demonstrou a existência permanente de índios na região desde 1651. “O que atesta a identidade do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, bem como a ligação de seus integrantes à terra, que lhes foi usurpada”, de acordo com o texto.

 

O relatório de Eros Grau salienta ainda que o argumento de que não é necessária a prova de que as terras foram de fato transferidas pelo Estado da Bahia à União ou aos índios, “ao fundamento de que disputa por terra indígena entre quem quer que seja e índios consubstancia, no Brasil, algo juridicamente impossível”. Considera, assim, que títulos oriundos de aquisição a non domino (aquilo que não é proveniente do dono) são nulos.

 

Para os Pataxó Hã-Hã-Hãe fica a expectativa de que os demais membros da Corte, a começar por Carmem Lúcia, se pronunciem e votem conforme o relatório do ex-ministro Eros Grau.

 

Sofrimento e dor

 

“A luta do meu povo, há quase 30 anos (o processo corre desde 1982), é pela nulidade dos títulos. Antônio Carlos Magalhães (governou do Estado da Bahia por três vezes, sendo duas vezes nomeado pela ditadura militar – 1964-1985) deu títulos aos fazendeiros invasores mesmo com a área indígena demarcada e homologada”, aponta a cacique Ilza Pataxó Hã-Hã-Hãe.

 

Desde que o processo foi aberto, cerca de 30 lideranças do povo da cacique foram assassinadas sem a punição de nenhum dos executores ou mandantes das mortes. Yaranwy Pataxó Hã-Hã-Hãe é irmã de Galdino, queimado numa parada de ônibus em Brasília (DF) enquanto lutava pelas terras de seu povo junto ao governo e STF. Cinco garotos de classe média alta atearam fogo em Galdino na madrugada de 20 de abril de 1997, horas depois dos protestos do Dia do Índio.

 

“O STF precisa levar em conta todo nosso sofrimento, toda nossa dor”, diz Yaranwy. Para ela, caso o Supremo vote pela manutenção dos títulos estará dando um prêmio aos invasores de terras indígenas, aos assassinos das lideranças do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe e se esquecendo da memória de Galdino. 

 

Outros povos indígenas, como os Tupinambá da Serra do Padeiro, também da Bahia, mandaram representantes como apoio aos Pataxó Hã-Hã-Hãe. “As lutas pela terra são de todos os povos e os assassinatos ocorrem em todo país”, frisa o Cacique Babau.

 

Rosane Kaingang, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), disse que “espera da Corte do STF faça justiça e os ministros votem pela nulidade dos títulos. Estamos ao lado dos Pataxó nesse momento, assim como de todos os povos que lutam pela terra”.

 

Histórico

 

Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe estava em Brasília (DF) em luta pelas terras originárias de seu povo quando foi queimado e morto, na madrugada de 20 de abril de 1997, por cinco garotos de classe média alta – um deles filho de juiz federal. O assassinato chocou a opinião pública e mostrou ao mundo a situação social a que estavam expostos os índios brasileiros.

 

Na ocasião, o indígena travava intenso diálogo com o Judiciário por conta de ação envolvendo a retirada dos latifundiários invasores do território originário e que desde 1982 estava parada, sem decisão. 

 

Quase 15 anos depois, parentes de Galdino ainda brigam pela finalização da mesma ação cuja autoria é da Funai e trata da nulidade de títulos imobiliários dos invasores da Terra Indígena Caramuru – Catarina Paraguassu, nos municípios de Camacã, Pau Brasil e Itajú do Colônia, sul da Bahia. 

 

A causa do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe, incluída na pauta de reivindicações do acampamento da Jornada Nacional de Lutas da Via Campesina e da Assembleia Popular, instalada em Brasília na segunda quinzena de agosto, é para que os ministros do STF votem pela anulação dos títulos e que os invasores sejam retirados do território.

 

“Quem doou esses títulos tinha muito poder político”, conta o cacique Nailton Pataxó Hã-Hã-Hãe. Durante todo o século XX e início do XXI os interesses políticos fatiaram a área, então Reserva Caramuru, em latifúndios e pequenas propriedades, através de arrendamentos e títulos.

 

Desde o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – órgão substituído pela Funai – ao Governo da Bahia, num período de quase 100 anos, desrespeitaram não apenas o território originário como também decisões do próprio Estado sobre a posse dos indígenas das terras.

 

Arrendamento: tragédia estatal

 

Recentes descobertas arqueológicas apontam para a presença indígena no território há, no mínimo, 620 anos – conforme aplicação de Carbono 14 em urna funerária descoberta na área da Reserva Caramuru. No entanto, o artefato apenas ressalta conclusões a que o Estado chegou ao início do século XX, por intermédio de um decreto de 20 de março de 1926.

 

Na ocasião o Governo da Bahia destinou 50 léguas quadradas – mais de 240 mil hectares – para a preservação de recursos florestais e para a proteção de índios Pataxó, Tupinambá e demais etnias lá encontradas. Apenas dez anos depois, em 1936, ocorreu a medição da área, já definida.

 

Tem início então uma sucessão de irregularidades, massacre de índios e roubo de território que perduram até os dias de hoje; o SPI passa a arrendar parte das terras destinadas aos indígenas. Além disso, outros invasores passam a invadir as terras.

 

Os povos originários esboçam resistência e conflitos são registrados. Ao final de um período que passou pelas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960, boa parte dos índios foram expulsos – sobretudo pelo medo da morte que atingira centenas deles – e outros permaneceram nas terras ocupadas tradicionalmente, mas em situação análoga a escravidão em serviços nos latifúndios dos invasores.

 

“Não podíamos nos assumir como índios. Quem assim fazia corria o risco de ser morto pelos invasores. Eles nos proibiam. Cresci sem poder me assumir como índia porque meus pais também não se assumiam. Éramos como escravos”, lembra Laura Pataxó Hã-Hã-Hãe. Acima dos 70 anos, a indígena afirma que a família sempre viveu nas áreas que compreendem o território.

 

Durante este processo, o governo baiano passa a emitir títulos imobiliários para os invasores do Território Indígena sob a alegação de que lá não viviam mais índios. O procedimento ocorreu até a década de 1980 – investigações, apresentadas na ação da Funai, constataram títulos imobiliários do Estado da Bahia.

 

Retomada: direito constitucional     

 

Quando a área foi medida e definida pelo Estado vigorava a Constituição de 1934, cujo artigo 129 dizia: “Será respeitada a posse de terras aos silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las”. Não foi assim que ocorreu e os indígenas expulsos se fixaram em cidades próximas a reserva ou partiram para Minas Gerais e São Paulo.

 

Nas cartas constitucionais posteriores a elaborada em 1934 (1937, 1946, 1967/69 e 1988) o dispositivo é mantido. Atrás do direito originário e legal, em 1975, um grupo de indígenas se reúne para organizar a retomada. Até que no Dia do Índio de 1982 o movimento ocorre e os Pataxó Hã-Hã-Hãe voltam para suas terras.

 

A diversidade de povos é característica inerente ao território tradicional Pataxó Hã-Hã-Hãe. Lá viviam os Pataxó, os Baenã, Sapuyá, os Kariri, os Kamakã e os Tupinambá. Todos convivem até hoje no território e apesar de reconhecerem suas etnias individuais, os indígenas se denominam Pataxó Hã-Hã-Hãe. “Eu e minha família somos Kariri Sapuyá, mas a luta pela terra é dos Pataxó Hã-Hã-Hãe. A colonização e o que sofremos depois determinou isso”, frisa a cacique Ilza.

 

O fato é que as tais 55 léguas quadradas estipuladas em 1926 se diluíram no caminhar da história e chegam a 1982 estipuladas em 54.105 mil hectares e deixa de ser reserva para se tornar Território Indígena Caramuru – Catarina Paraguassu, adequando-se à nova categoria estabelecida pela Constituição de 1988. Do total de hectares, três mil indígenas vivem hoje em menos da metade do território estipulado. 

 

“Só permanecem na área os grandes latifundiários invasores. Os pequenos saíram todos e são esses que ficaram os mais poderosos, amigos ou parentes de políticos, que nos ameaçam de todas as formas”, diz cacique Gerson.

 

Retirada dos invasores: próximo passo   

 

Os invasores desqualificam o relatório antropológico, ou qualquer outra prova, que ateste a ocupação tradicional e define a identificação e delimitação da área. Alegam que os índios nunca o ocuparam com “permanência efetiva” e que a posse nunca teve continuidade.

 

“Fomos expulsos, assassinados e escravizados. Até hoje qualquer movimentação nossa a polícia aparece com helicópteros, os pistoleiros agem”, ataca cacique Nailton. Outro argumento usado pelos invasores é que o Estado da Bahia arrendou terras pela ausência dos índios e por isso considerou o território devoluto.

 

O STF, onde tramita a ação, pediu quatro perícias antropológicas. A última delas desconstrói todos os argumentos: os índios lá estão desde 1651; a presença dos Pataxó Hã-Hã-Hãe sempre foi permanente e secular em um território delimitado e claramente reconhecido – não eram nômades; tal vivência na terra nunca se interrompeu: mesmo com a crueldade dos invasores, muitos indígenas permaneceram na mata ou nas fazendas. 

 

No STF, o julgamento da ação já começou e o relator do processo, o ex-ministro Eros Grau, entendeu que os índios estavam presentes na área muito antes da Constituição de 1967/69 e, portanto, votou pela nulidade dos títulos dos invasores. O julgamento será retomado em breve – com a apresentação do voto da ministra Carmem Lucia. Tinha sido interrompido por um pedido de vistas. O povo Pataxó Hã-Hã-Hãe agora espera que os ministros acompanhem o raciocínio de Eros Grau – mesmo que este já tenha se aposentado.

 

“É um desejo que temos ter a nossa terra de volta, sem nenhum invasor dentro ameaçando a comunidade e o futuro de nosso povo. Queremos sensibilizar os ministros, a sociedade. É um direito nosso e muitos já morreram nessa luta”, frisa cacique Nailton.

 

Terra: o cuidar indígena 

 

O espaço é curto: 18 mil hectares frente aos 54 de direito. E é nesse pedaço diminuto do território que os Pataxó Hã-Hã-Hãe plantam um leque amplo e diversificado de gêneros alimentícios – sem o uso de agrotóxicos – e tiram diariamente 10 mil litros de leite, além de carne e cacau. Os invasores apostam na monocultura e no modelo do agronegócio.

 

“Doamos dois caminhões com legumes e frutas diários para o município de Pau Brasil. A cidade se transformou depois que os índios voltaram. Tanto que elegemos vereadores e recebemos grande apoio da sociedade”, destaca cacique Gerson.

 

A capacidade de produção dos indígenas é tamanha que fazem parte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Governo Federal, que escoa a produção da pequena agricultura. É da terra, portanto, que os Pataxó Hã-Hã- Hãe garantem a vida e o projeto de futuro.

 

Futuro, esse, que já é moldado por quem será liderança do povo. Caso de Aritana Pataxó Hã-Hã-Hãe. Seu pai, Goducha, era uma importante liderança quando morreu, em março deste ano, vítima da desassistência médica que assola povos indígenas no Brasil inteiro. “Desde criança acompanho retomadas e pretendo seguir na luta de meu pai e de meu povo”, diz.

 

 

Fonte: Cimi
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