No meio do redemunho, Btyre e os xinguanos
Desentendimentos na imposição do projeto da usina de Belo Monte
Por Oswaldo Sevá*
O riozão verde garrafa vem do planalto matogrossense coletando as águas do Batovi, Curisevo, Sete de Setembro, Culuene e tantos outros até chegar ao Pará e desaguar no rio Amazonas. Passa pela morada dos sobreviventes dos povos Kayabi, Kuikuro, Ikpeng, Kamaiurá, Yawalipiti, Suyá. Todos agrupados no Parque Indígena do Xingu na época dos lendários irmãos Villas Bôas – sertanistas responsáveis pela criação da reserva nos anos 60. "Parque" que é a imagem, a marca registrada do Xingu.
Rio de índios, há dois mil anos o Xingu foi dos Yudjá, que chamamos hoje de Juruna. No século passado foi conquistado na força da flecha e da borduna pelos Mbengokre, que chamamos de Kayapó. Agora, juntos, eles disputam o rio com madeireiros, garimpeiros e os perigosos barrageiros. Estes últimos ressurgiram em 2009 com força e poder de mudar o curso do rio para sempre, com seus altos paredões que desviam a correnteza para as turbinas engolirem as águas caudalosas do Xingu para a geração da mágica eletricidade, de que todos os brancos e até mesmo os índios gostam. Eletricidade esta que as grandes empresas adoram – fonte de lucros certeiros, ainda mais com contratos bem ajeitados.
Mas parece que os Juruna não gostam nada da ideia da usina, só alguns. Nem os Kayapó, que chamam Btyre o Xinguzão, querem perder seu fabuloso rio. Dos Metuktire, que vivem perto da divisa do Mato Grosso com o Pará, aos Mekragnoti, que moram rio abaixo, além dos muitos Xikrin, da testa raspada e moradores da região de São Félix, todos se juntam para lutar contra o inimigo comum: Belo Monte.
Em Altamira, principal cidade da região, começa a esplêndida Volta Grande do Xingu, toda encachoeirada. Ela abriga os ribeirinhos dos pedrais coloridos e lindas praias douradas. É também morada dos exploradores de igarapés, comedores de macacos e catetos. Dos coletores de castanha, os Parakanã, exilados do rio Tocantins há 30 anos pela represa de Tucuruí. Abriga ainda os Araweté, os Asurini, e mais e mais Juruna, Arara, Xipaia. Na cidade, na luta de todos os pobres, continuam os índios, que vão e voltam das aldeias, fazem enfeites, pescam, vão ao hospital, se viram.
Todos eles enredados no redemunho das conversas de certos velhos "indigenistas" da Funai. Enrolados, ou não, nas cantadas de cooptação dos brancos da Eletrobras, da Eletronorte, das consultorias Cnec, E-Labore, Leme – interessados no sucesso do grande investimento capitalista. Gente besta, espertinha, que há anos assedia os índios e os demais xinguanos para concordar e achar linda a maquete do rio todo barrado. Querendo e podendo fazem, ora, como em Itaipu, Paulo Afonso e alhures. Mas no Xingu, precisam também do apoio do povo. Flexibilizá-lo, pois.
Lembramos por vezes dos índios, no estrelato das câmeras e holofotes, quando se reúnem coloridos e bravos. Quase nunca lembramos justo, destratamos a memória, sem lhes dar o mérito da humanidade e da precedência nessa terra linda. Os que estavam antes de nós todos, que conseguiram não morrer dos massacres de bala e faca, bactérias e vírus levados por nós – que nos achamos civilizados.
No dito Estudo de Impacto Ambiental, "componente indígena" virou "objeto", enquanto "a obra", notou o antropólogo e amigo há mais de 20 anos Eduardo Viveiros de Castro, virou "sujeito". A total inversão de conceitos e valores. Só a obra interessa. Suprema. E eles – os índios – interferem. Querem o rio para eles e para todos. São "impactados".
O Ibama, que cuida só de bicho e de planta, agora tem que consultar a Funai para ver se o "impacto" nos humanos índios será direto ou indireto, de curto, médio ou longo prazo. Mitigado ou compensado. Se a tal oitiva foi feita ou não. Claro que não foi. Ou foi enganosa. E quando os procuradores contestaram, os interessados compraram desembargadores e derrubaram as ações. Quando a Organização dos Estados Americanos disse que os direitos humanos foram violados aqui, os entreguistas conhecidos apareceram patriotas e repudiaram a "intromissão" internacional. Jornalistas obcecados por partidos políticos acusaram a oposição – que neste item inexiste.
Pergunto-me se a burocracia do Estado e se o serviço caro de grandes empresas e escritórios escutam bichos. Entendem a voz das plantas, talvez? Sabem que Btyre é velho, da era quaternária, e novo a cada inverno bem aguado? Que seu leito e calha têm pedras lindas, cavernas fundas, rochas pontudas, craquentas feito corais, que fazem rebojo na água de cima? Que Btyre tem almas e humores? Sabem nada. Têm apenas que "minimizar", "compensar". Tudo para fazer o que não deviam.
Nem mesmo os engravatados, que mediram as águas e as quedas do rio tantos meses e anos em tantos locais, escrevem números confiáveis sobre Btyre. Números que só servem para dizer que a coisa, ou seja, a hidrelétrica, depois de pronta funcionará. Mas quem garante ficar pronta? Quem garante produzir o que prometem? Se construída, colocam máquinas extrapossantes, capazes de gerar mais de onze milhões de kilowatts – quase 10% de tudo instalado no país. Incrível, mas os projetistas se esquecem que nos verões xinguanos terão de desligar quase todas as caras máquinas, garantindo apenas um milhão e pouco de kilowatts. Terceira maior do mundo? Só se for na mentira! Decretaram fazer "só essa usina" no Xingu. Mentira também. Há 30 anos estudam e desenham outras quatro, cinco no mesmo riozão. E se fazem uma, fazem todas! Assim é, não há contraexemplo.
Tanta gente escrevendo, falando, dando pitaco, papagaiando: os da época da ditadura cruel inventaram a coisa, e também os menos velhos, que eram contra, agora bandearam doutro lado. Vai entender!
Temos que acreditar que só pensam em enquadrar o Xingu e a gente xinguana para o bem geral da nação? E que nação somos, então?
Sou contra este projeto desde 1987, quando comecei a decifrar o diabo no meio do redemunho. Mesmo que nenhum índio fosse afetado, milhares de outros brasileiros já estão sendo infernizados com a especulação barrageira. Uns 30 mil ou mais serão prejudicados, incluindo colonos antigos, assentados nos travessões da Transamazônica e todos os moradores da cidade de Altamira.
Que não houvesse milhares de seres humanos atingidos, que não fossem para baixo d’ água e das obras mais de 60 mil hectares de Amazônia pouco desmatada, junto com um dos maiores monumentos fluviais do mundo, mesmo assim, continuaria contrário a Belo Monte. E muitos mais brasileiros terão boas razões para batalhar contra a implantação desse desatino: Serão extorquidos 40 ou 50 bilhões de reais do nosso dinheiro público por uma minoria de poderosas empresas do mundo globalizado. E com isso o capitalismo tupiniquim continua a se reproduzir no que tem de pior, aprofundando sua conhecida e mal afamada desigualdade socioeconômica, uma das dez piores do mundo. Como o diabo no meio do redemunho.
*Oswaldo Sevá é engenheiro, doutor em Geografia e professor da Universidade de Campinas (Unicamp). Estuda projetos de hidrelétricas há 36 anos e o projeto da usina de Belo Monte há 23.
Para ler
"Hidrelétricas do Xingu, o Estado contra as sociedades indígenas", de Eduardo Viveiros Castro e Lúcia.Andrade, capítulo do livro "As hidrelétricas do Xingu e os povos indígenas" (1988, Comissão Pró – Índio de SP), de L. Santos e L. Andrade (orgs.).
"Belo monte de mentiras! A história nada exemplar dos projetos hidrelétricos no maravilhoso rio Xingu, inventados pelos mafiosos e herdeiros da ditadura militar", de Oswaldo Sevá. Publicado em outubro de 2009 no site http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=69&Itemid=179
"Tenotã Mõ. Alertas sobre as conseqüências dos projetos de hidrelétricas no rio Xingu", de Oswaldo Sevá (org). (2005, São Paulo: IRN – International Rivers Network. Arquivo disponível em www.internationalrivers.org/files/Tenotã-Mõ.pdf e no sitio do autor www.fem.unicamp.br/~seva
"Painel de Especialistas – Análise crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico Belo Monte". Arquivo disponível no site www.xinguvivo.org.br