Carta dos atingidos por desastres climáticos ao povo brasileiro
Nos dias
Sabemos que os verdadeiros causadores dos fatores que levam aos desastres são as grandes indústrias, a produção e o uso de combustíveis fósseis, o agronegócio e as multinacionais todas em sua busca irresponsável por produtividade e lucro, o Governo Brasileiro que não prioriza a sustentabilidade em suas políticas públicas e que além de permitir, incentiva em todas as suas instâncias financeiramente as atividades destruidoras do meio ambiente. E por fim, os países ricos, grandes causadores das emissões de gases e que não aceitam reduzir suas emissões para evitar o agravamento do aquecimento do planeta.
No entanto, quem sofre as conseqüências somos nós. Nas áreas vulneráveis os governos tratam a questão com descaso. As políticas de defesa civil não são implementadas, os sistemas de alerta de desastres não funcionam, os governantes usam de forma demagógica o sofrimento das pessoas, e quando os desastres acontecem, a maior parte dos recursos públicos enviados para as comunidades não chegam aos necessitados. Até mesmo parte das doações enviadas por solidários de todos os cantos do país e do mundo são desviadas por autoridades corruptas e desalmadas.
Agradecemos de todo o coração a solidariedade enviada pelas boas pessoas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo que se sensibilizaram perante o nosso sofrimento enviando donativos que, quando chegaram a nós, ajudaram a amenizar as nossas dores e a aquecer os nossos corações, renovando as nossas esperanças naquele momento angustiante de tão grandes perdas.
Pedimos à sociedade que se una a nós no esforço de buscar alternativas que evitem que milhares de outras famílias venham a sofrer as dores que sentimos e que ainda estamos sentindo, pelas consequências dos desastres que nos atingiram. É preciso seriedade dos 3 níveis de poder no tratamento da questão ambiental. Precisamos também reduzir as emissões de gases que provocam o aquecimento global interferindo no clima e causando os eventos extremos. Precisamos mudar o modelo de desenvolvimento, baseado no consumo desenfreado, e buscar alternativas que objetivem a sustentabilidade e a racionalidade na produção e no consumo de produtos e ainda na geração de energia, buscando uma relação harmônica com a natureza. Precisamos praticar o bem-viver. Precisamos que a sociedade se una a nós na criação de um movimento nacional que dê o passo seguinte nessa luta. Pressione os governos para criar políticas publicas que reduzam a vulnerabilidade das comunidades, aumentem as instancias de participação popular, implementem sistemas de prevenção, salvação e reconstrução.
A luta por justiça social, dignidade e respeito no nosso pais é árdua. Nosso compromisso é lutar pela melhoria das condições de vida dos atingidos e para evitar novos sofrimentos com os eventos extremos causados pelas mudanças climáticas.
Brasília, 12 de setembro de 2011.
Atingidos e atingidas por eventos climáticos extremos dos seguintes Estados:
Maranhão, Piauí, São Paulo, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Alagoas, Santa Catarina, Pará, Rio Grande do Sul, Amazonas, Bahia, Sergipe, Ceará, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Mato Grosso.
Seminário Nacional de Atingidos por Eventos Climáticos Extremos: Documento às autoridades
Somos representantes de comunidades e localidades atingidas por diferentes eventos extremos de mudanças climáticas: enchentes, deslizamentos de terra, secas, tornados, chuvas de granizo, trombas d´água, mudança das marés, assoriamento de rios. Viemos de todas as regiões e biomas do país, do Rio Grande do Sul até a Amazônia, para participar do Seminário promovido pelo Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social nos dias
Decidimos elaborar o presente documento, que apresentamos às autoridades como ponto de partida para uma interlocução sobre a realidade vivida e os direitos das pessoas e comunidades atingidas por eventos climáticos extremos.
1.1. Já faz décadas que se discute a problemática da degradação ambiental e suas trágicas conseqüências sobre todos os seres vivos e sobre a própria Terra. Está cada vez mais claro que o modelo de desenvolvimento econômico e político dominante, baseado no incentivo à produção e ao consumo crescente de mercadorias que geram renda e riqueza cada vez mais concentradas, está diretamente relacionado ao aquecimento do planeta por causa do uso de fontes fósseis para produzir a energia de que se alimenta, da continuidade do desmatamento e da degradação dos diversos biomas, e da promoção do um consumismo que pouco tem a ver com as necessidades reais das pessoas.
Esse modelo é promovido também com recursos públicos e muitas vezes apoiando empresas que se estabelecem em áreas de preservação ambiental, promovendo desapropriações, desemprego, deslocamento de comunidades, além, é claro, dos prejuízos ambientais: poluição de águas e do solo por substâncias químicas.
1.2. A troca de experiências nos mostrou que o apoio que mais ajudou a enfrentar os dramas dos atingidos foi a solidariedade praticada entre as próprias pessoas vítimas dos desastres socioambientais. Foi importante igualmente a solidariedade de igrejas e de entidades que se fizeram presentes desde o início do nosso sofrimento. Sentimos que a solidariedade de povos mais distantes, nacionais e internacionais, presente nos primeiros dias dos desastres, mas que diminuiu logos depois, quando também os meios de comunicação deixaram de mostrar imagens e dar notícias, muitas vezes com caráter de espetáculo.
1.3. Não se pode dizer a mesma coisa dos órgãos públicos, que deveriam cuidar da vida e dos direitos dos cidadãos e cidadãs. Em geral, são omissos, contam com pessoas despreparadas e só se fizeram presentes depois de pedidos insistentes, e limitaram-se ao apoio no momento das emergências. Tendem a fazer o mínimo possível e, ainda assim, fazem uso eleitoral e não alcançam a todas as pessoas. Para a reconstrução da infra-estrutura da vida, na cidade e no campo, só atuaram a partir de pressões, e ainda assim, com projetos executados, quase sempre, sem participação das comunidades atingidas e depois de muito tempo transcorrido, com superfaturamento das obras, com baixa qualidade e, ainda o, com pouca transparência.
1.4. Para enfrentar os problemas, as comunidades organizaram-se em Associações, Comissões, Mutirões e Movimentos Sociais, contando com ajuda de entidades que se fazem presentes, como a Cáritas, a CPT e outras. Isso ajudou a encaminhar reivindicações e lutas pelos direitos de todas as pessoas e famílias atingidas. Foi através delas que se conseguiu, junto com a superação da dor, descobrir oportunidades positivas de avanços na busca dos direitos.
1.5. Com ações dos atingidos, da sociedade e do setor público, e em especial com trabalho de voluntários, as necessidades imediatas foram superadas, mas falta recuperar a infraestutura física – casas, áreas de trabalho agrícola e outras fontes de renda – e o equilíbrio psicológico de muitas pessoas.
2. Desafios
O intercâmbio de práticas e a reflexão crítica realizadas neste Seminário nos ajudaram a identificar os seguintes desafios:
2.1. A conquista e promoção de políticas públicas de prevenção de desastres, garantindo o direito à saúde, à educação, à moradia, à segurança alimentar, ao saneamento básico, ao meio ambiente sadio, o acesso à terra de trabalho e de moradia, via reforma agrária e reforma urbana;
2.2. O respeito ao direito e a capacidade de se indignar, sem repressão;
2.3. A urgência da demarcação e titulação dos territórios dos povos tradicionais: indígenas, das comunidades quilombolas, ribeirinhos, pescadores, camponeses;
2.4. A necessidade de alcançar alternativas de produção e de trabalhos que gerem renda e dignidade, especialmente para os jovens;
2.5. A necessidade de que haja informação e formação junto às comunidades, para que tenham consciência de seus direitos e não sejam iludidas por propostas falsas;
2.6. A participação nas instâncias de decisão em relação ao que é planejado em favor dos atingidos/as, evitando que as decisões venham de fora e de cima para baixo;
2.7. Garantir que as ajudas solidárias cheguem a todos os atingidos/as com rapidez e eficiência;
2.8. Luta por políticas públicas básicas e estratégicas de boa qualidade e com continuidade para os tempos de emergência e para a reconstrução das condições de vida pós-desastres socioambientais;
2.9. Chamar atenção e agir em relação a questões que não são emergenciais, mas são situações extremas permanentes, como é o caso do lixo, do esgoto, e para as emergências sociais, que fragilizam a vida de forma permanente;
2.10. Garantir atendimento psicológico das pessoas atingidas, de modo especial os jovens, os idosos e os deficientes;
2.11. Cuidar que haja visibilidade igual de todos os eventos de desastres socioambientais;
2.12. Apontar claramente as responsabilidades pelas mudanças climáticas, evitando culpabilizar os empobrecidos;
2.13. Mudança no atual modelo cultural, de produção e de consumo;
2.14. Garantir o diálogo permanente e eficiente entre o poder público e as comunidades atingidas e/ou vulneráveis.
3. Propostas
Olhando para o futuro, a partir de nossas necessidades, nossas práticas e direitos, propomos:
3.1. Que seja implementada uma política pública de educação ambiental de caráter permanente em todos os espaços da vida social, e que seja incorporada nos currículos escolares;
3.2. Que o poder público assuma efetivamente suas responsabilidades em relação às áreas de risco de desastres socioambientais, tanto em ações preventivas como em ações de recomposição das condições de vida das vítimas;
3.3. Que seja implementada uma política pública de mapeamento das áreas de risco e áreas de crimes ambientais nas diferentes regiões, e que esse conhecimento se seja incorporado no Plano Diretor dos municípios e nos planejamentos estaduais e federal;
3.4. Produção de estudos e pesquisas nas águas que desembocam no mar para verificar os casos de salinização ou adocinamento;
3.5. Garantir que a legislação ambiental seja cumprida e fiscalizada, e que áreas de preservação permanente não sejam degradadas;
3.6. Garantir o reconhecimento e a regularização do território pesqueiro como espaço fundamental da reprodução social das comunidades pesqueiras;
3.7. Que se amplie para todo o país, e como política pública, a construção de cisternas caseiras, como garantia de água de qualidade;
3.8. Que sejam criadas Comissões de Defesa Civil, com pessoas preparadas, equipadas e com autonomia em relação aos governos nos diversos níveis, e que elas tenham um programa preventivo, e que sejam facilitada a criação dos núcleos de defesa civil;
3.9. Que haja uma política pública prioritária baseada nos princípios da produção agroecológica;
3.10. Que seja implantada uma política de incentivo à construção de edificações adequadas, capazes de resistir aos eventos climáticos extremos;
3.11. evitar edificações em áreas de risco, promovendo, de forma participativa democrática, a reinstalação em outras áreas, quando necessário, sempre respeitando todos os direitos das pessoas e famílias envolvidas;
3.12. Implementar política pública de preservação das matas e dos manguezais existentes e de incentivo e exigência de recomposição da mata ciliar nas beiras de córregos, rios e lagos de responsabilidade pública e privada e replantio de matas nativas em matas nativas, sobretudo nos manguezais;
3.13. Desenvolver política de comunicação capaz de evitar que as pessoas sejam surpreendidas por eventos extremos em áreas de risco e criar centros de referência para acolhimento das vítimas;
3.14. Não permitir e, menos ainda, financiar a implantação de grandes projetos em áreas das comunidades tradicionais e camponesas, bem como grandes empresas que crescem desmedidamente por meio de monocultivos, devastando grandes áreas e contaminando o ambiente da vida;
3.15. Que seja constituído e mantido, nas três esferas de governo, um Fundo de Emergências, e que sua gestão seja compartilhada com a sociedade civil, especialmente através das entidades e pastorais que atuam em situações de desastre socioambiental;
3.16. Que as casas para as famílias que as perderam em desastre ou quando são removidas de áreas de risco sejam planejadas com participação delas, garantindo seu direito a uma habitação digna sem violência e sem incidência de dívidas futuras;
3.17. Manutenção do atual Código Florestal, garantindo às comunidades camponesas e tradicionais, povos quilombolas e indígenas as condições de continuar em seus territórios, produzindo e respeitando a natureza, com políticas públicas adequadas, incluindo o pagamento por serviços ambientais;
3.18. Que os crimes ambientais por desmantamento, envenenamento, contaminação do meio ambiente, contaminação genética sejam considerados crimes contra a humanidade, e que as áreas envolvidas sejam destinadas à reforma agrária ou urbana, garantindo a recuperação dos efeitos do crime sobre o meio ambiente.
3.19. Garantir acesso à terra através da reforma agrária para todas as famílias sem terra, garantindo todas as condições necessárias para permanecer na terra;
3.20. Que os órgãos de pesquisa do Estado não estejam a serviço das grandes empresas para pesquisa de transgênicos, garantindo total comprometimento da pesquisa com a produção de alimentos saudáveis;
3.21. Redução da produção de energia hidroelétrica, substituindo-a por energia solar, eólica e dos movimentos naturais das águas, produzida de forma descecentralizada, com a participação e em benefício das comunidades, diminuindo a poluição ambiental.
3.22. Desenvolver política pública que agilize o repasse de verbas para a assistência e reconstrução das condições de vida dos atingidos, e ainda, que as comunidades tenham participação na gestão destes recursos.
Brasília, DF, 12 de setembro de 2011.