Belo Monte: Desobediência Civil, Violência e Religião
Por Rosalvo Salgueiro*
Todo governo, por mais poderoso e avassalador que seja só se sustenta se tiver a aquiescência e a colaboração dos governados, por outro lado, a legitimidade e autoridade de um governo não residem exclusivamente em sua legalidade, mas também e principalmente na justiça de suas práticas e busca verdadeira do bem comum das suas decisões.
O cidadão antes de ser súdito é ser humano e como tal tem a orientar sua vida e seu proceder não apenas as leis e as ordens escritas emanadas pelos poderes e constituídos. Deve ele em primeiro lugar obediência à própria consciência que se funda em leis morais, éticas e religiosas, e porque não dizer, culturais. Assim, antes de obedecer cegamente uma lei ou uma ordem está o ser humano obrigado a se perguntar pela justiça e a moralidade do ditame a ser obedecido.
Há quem sustente que a desobediência civil seja um ato egoísta e um golpe mortal na democracia, e um desrespeito ao governo da maioria. Não se pode olvidar que a democracia não é apenas o governo da maioria. É isto sim, o governo da maioria, mas respeitando e defendendo o direito da minoria. Destarte, não apenas os governos manifestamente tiranos e ditatoriais podem ser legitimamente desobedecidos, mas todo governo ou autoridade que profira leis ou ordens injustas e que violentem a consciência das pessoas ou os direitos naturais.
Ao longo da história da humanidade, muitas foram as ocasiões em que se praticou desobediência civil, em todos os casos os acontecimentos futuros legitimaram essa prática.
Comumente se reconhece como precursores e expoentes da desobediência civil, o ativista americano do século 19, Hanry David Thoreau, que é tido como o sistematizador dessa prática, também são lembradas e aplaudidas as ações do líder indiano e profeta da Não-Violência Mahatma Gandhi, e do pacifista negro americano Martin Luter King.
Na maioria das culturas podem ser encontrados esses momentos. Na Bíblia, entre tantas, temos a história das parteiras Fua e Séfora que desobedeceram ao Faraó que lhes ordenara que matassem os filhos varões das mulheres hebréias. (Ex. 1, 15-22),
Desobediência Civil é diferente de manifestações populares e a pressão legítima que se exerce contra determinado ato do poder constituído para que atenda determinada reivindicação. Para haver a desobediência é necessária existência de uma autoridade, uma ordem ou uma lei injusta a ser afrontada, à qual, pelo menos em tese se deveria obedecer.
O dever de obediência reside na justiça e não a legalidade! Todo governo injusto e imoral que não oriente suas leis e ações na busca do bem comum e não se mostre sensível às reclamações, reivindicações e à participação democrática, deve ser desobedecido, ter a legitimidade contestada e a cooperação negada. A desobediência deve ser pública e de forma não-violenta.
Na America Latina mesmo depois da redemocratização e da eleição de governos chamados de “esquerda” há muitos casos em que não resta à população outra alternativa que não seja a prática efetiva da desobediência civil.
Na Nicarágua, o estilo autoritário do presidente Daniel Ortega, assim como sua prática de perseguir adversários políticos, está levando antigos companheiros de Revolução Sandinista a apoiar e praticar a Desobediência Civil, como é o caso do padre Ernesto Cardenal, do ex-comandante Sérgio Ramires, da defensora dos Direitos Humanos Vilma Nuñes, do cantor e compositor Carlos Mejia Godoy e tantos outros.
Na Argentina, o Prêmio Nobel da Paz e presidente internacional do SERPAJ-AL, Serviço Paz e Justiça na América Latina, Adolfo Pérez Esquivel juntamente com outros intelectuais lideram lutas contras a mineração de ouro a céu aberto e outras agressões ao meio ambiente. Adolfo Esquivel diz:“… não apenas somos a favor da desobediência civil como a temos praticado, não apenas contra as mineradoras, mas também contra a destruição dos bosques e a violação dos Direitos Humanos na Argentina e por toda a America Latina…”
No Brasil, o governo Lula retomou um projeto da época da Ditadura Militar de construir na Amazônia uma série de mega usinas hidrelétricas, sendo a primeira delas, a Barragem de Belo Monte, no Rio Xingu, no Estado do Pará. Esta será a terceira maior hidrelétrica do mundo, ficando atrás apenas das Três Gargantas na China e da Itaipu Binacional, Brasil/Paraguay. Para uma produção de 11.223 Mw, que devido ao regime de chuvas local, será alcança somente durante quatro meses por ano, no mais terá uma produção sustentada, não superior a 4.700 MW, essa barragem vai criar um lago de 516 km² cobrindo a floresta, além da construção de dois canais de 500 metros de largura por 35 km de comprimento cada um, maior que o canal do Panamá, em plena selva amazônica. Esses canais desviarão o rio do seu curso natural convertendo-o num filete d’água em uns trechos e completamente seco noutros, numa alça mais de 100 quilômetros do Xingu conhecida como Volta Gr ande.
A construção já foi contratada no dia 20 de abril último, em Brasília, por 19,6 milhões de reais, por meio de um conturbado processo de licitação que envolveu muito embargos e recursos judiciais, e que culminou com um leilão em que da apresentação, leitura das propostas, suas avaliações, proclamação do resultado e encerramentos levaram tão só sete minutos. Tudo sob intensos protestos de grupos indígenas, ONGs naturalistas e de Defesa dos Direitos Humanos.
Segundo José Ailton de Lima, diretor de energia e construções da CHESF – Companhia Hidroelétrica do São Francisco, empresa que lidera o consórcio ganhador do leilão, os trabalhos começarão em no máximo seis meses, tempo necessário para atender algumas exigências burocráticas. A obra vai atrair para região mais de 100 mil pessoas entre trabalhadores diretos e infra-estrutura de apoio, que certamente demandarão mais áreas da floresta que também serão desmatadas para sua instalação.
Para dar lugar ao lago serão removidas mais de 20 mil famílias que vivem na região, inclusive da zona rural de Altamira. Esta barragem vai modificar profundamente o estilo de vida e atingir pelo menos 15 etnias indígenas, inclusive algumas isoladas, (ainda não contatadas pelo homem branco) que vão perder suas áreas de caça, pesca e cultivo, e serão obrigados a abandonar suas terra e seus lugares sagrados onde vivem em harmonia com a natureza, praticam sua cultura, sua religião, e cultuam seus ancestrais.
A comunidade científica brasileira e internacional têm demonstrado de maneira cabal que o Brasil tem muitas outras e melhores alternativas para gerar energia, inclusive com menor custo, que vão da a re-potenciação das hidrelétricas antigas, a otimização da capacidade já instalada até a utilização do potencial eólico e solar que são abundantes no país.
A Igreja através de Dom Erwin Kräutler, bispo de Altamira a principal cidade da região e presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), e mesmo da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), assim como, as lideranças indígenas e os movimentos ambientalistas têm feito todo esforço para convencer o presidente Lula e seu governo dos enormes prejuízos sociais e danos ambientais que essa barragem trará, alertando para as graves conseqüências não só para a população local, mas que também contribuirá fortemente para o aquecimento global e provocará alteração climática prejudicando todo o planeta.
O diálogo com a comunidade indígena, nesses casos, é uma obrigação prevista na Constituição Federal do Brasil em seu artigo 231 e só teve início por imposição do poder judiciário, e ainda assim aconteceu de “mentirinha”, tudo já estava definido antes das consultas, o que se viu foi uma tremenda manipulação e feroz brutalidade do governo ao impedir que os verdadeiros e reconhecidos líderes indígenas participassem livremente do processo de consultas, essa prática foi amplamente denunciada na ocasião, pelos caciques Raoni Metuktire e Megaron Txucarramãe, assim como pelas organizações não governamentais e a Igreja. Além da constituição de seu país, Lula desrespeita também tratados internacionais como Convenção 69 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que o Brasil assinou se comprometendo a obter o consentimento prévio dos indígenas antes de tomar medidas que os afetem diretamente.
O governo brasileiro, através da Resolução nº 102, de 13 de abril de 2010, do Conselho da Justiça Federal (CJF), criou às pressas a 9ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Capital do Estado do Pará, que será especializada em julgar questões agrárias e ambientais retirando assim do juiz de Altamira, que tem reconhecido o direito dos índios e ribeirinhos, a competência para julgar os assuntos relacionados com construção da Barragem de Belo Monte. Casuísmos como este, configuram uma clara manipulação do poder judiciário brasileiro.
Ao se fechar para o diálogo, inclusive violando a Constituição do País, e manipulando o Poder Judiciário, o governo não deixa à sociedade outra alternativa de ação além da desobediência civil.
Nenhum governo pode simplesmente tomar suas decisões e fazer suas obras ao arrepio da lei e da opinião pública, ele precisa sempre se justificar e tentar ganhar os corações e as mentes dos cidadãos, principalmente em tempos de eleição.
Se as pessoas e movimentos sociais e ambientais que se opõem a essa barragem conseguirem mostrar para o conjunto da sociedade, inclusive a nível internacional o desastre que essa obra significa, puxando a opinião pública para o seu lado, que hoje em razão a insignificante cobertura dos meios de comunicação ignora os fatos, há chances efetivas de forçar o governo a voltar atrás ou pelo menos adiar essa tragédia.
A região aonde vai ser criado o lago abriga uma extra-ordinária biodiversidade cujas espécies se contam às centenas, sendo que algumas estão ameaçadas de extinção e outras são endêmicas (só ocorrem ali) existem também muitas espécies que ainda nem foram catalogadas e que se perderão para sempre.
O EIA (Estudo de Impactos Ambientais) feito pelo próprio governo dá conta de que ali já foram encontrados e catalogados: 174 espécies de peixes, 387 de répteis, 440 de aves e 259 de mamíferos, sem se falar dos insetos, fungos e todas as espécies de vegetais.
Cobrir com água a floresta é mais grave que simplesmente queimá-la, pois a decomposição de corpos orgânicos submersos tira o oxigênio da água e emite gás metano (CH4), para a atmosfera e provoca o aquecimento global, e é extraordinariamente mais prejudicial que o dióxido de carbono (CO²), que é o gás emitido na queima de materiais orgânicos e combustíveis fósseis.
Existe um embate midiático a ser travado, quem levar a melhor nessa área vencerá esse confronto. Cabe aos movimentos planejar eventos e criar fatos que sejam notícias, e que os meios de comunicação de massa não possam ignorá-los ou esconde-los, ainda que o queiram.
A causa é nobre e tem conseguido mobilizar personalidades importantes de todos os setores sejam da política, das artes, e das religiões, como é o caso do senador Pedro Simon entre outros, do cineasta e diretor da mega produção e mega sucesso hollyoodiana Avatar, James Cameron e o cantor de rock o inglês Sting, do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, assim como de expressivos teólogos da libertação como os brasileiros Frei Betto e Leonardo Boff, além de cientistas mundialmente conhecidos como Célio Bermann e Paulo Buckup, e muitos outros, ainda falta, entretanto, ganhar mais espaço nos meios de comunicação, que na verdade é quem faz a opinião pública.
Numa relação de injustiça a solidariedade vem sempre em favor do injustiçado, assim o movimento precisa ter o cuidado de não sair desse pólo da ação, deixando-o livre para ser assumido pelo governo, coisa que o presidente Lula sabe fazer muito bem.
Muitas são as ações concretas que os movimentos podem lançar mão, é importante que sejam fortes e impactantes e que possam facilmente ser compreendidas e aceitas pela população para que então, responda de forma solidária.
Como a primeira ação concreta de desobediência civil nessa luta, após a conclusão do processo de licitação, que foi o leilão realizado pelo governo do dia 20 de abril último, liderados pelo cacique kayapó Megaron Txucarramãe indígenas do Parque Nacional do Xingu paralisaram o serviço de travessia da balsa no Rio Xingu.
Os líderes indígenas encaminharam um comunicado ao comando da Polícia Militar de São José do Xingu explicando a ação. “A gente quer fazer um movimento pacífico e por isso pedimos ajuda para que a polícia não deixe os carros descerem para usar a balsa.”
Na correspondência eles informaram que o fechamento da travessia do Rio Xingu é por tempo indeterminado e deixam claro que o motivo do protesto é devido ao leilão realizado de Belo Monte (hidrelétrica do Rio Xingu) da qual não se aceita que o governo mantenha a construção.
A carta aberta do cacique Megaron ao presidente Lula deixa claro os objetivos e a disposição dos índios: Nós não somos bandidos, nós não somos traficantes para sermos tratados assim, o que nós queremos é a não construção da barragem de Belo Monte. Aqui nós não temos armas para enfrentar a força, se Lula fizer isso ele quer acabar com nós como vem demonstrando, mas o mundo inteiro vai poder saber que nós podemos morrer, mas lutando pelo nosso direito.”
Muitas outras ações podem ser realizadas, tais como a recusa decidida e consciente das pessoas em deixar suas terras para dar lugar ao lago, ou mesmo a ocupação dos canteiros e escritórios das empresas impedindo assim o avanço das obras. Cada ação deve ser analisada e assumida no momento, e da forma que se considere estratégicos para a sua prática.
Aqui estão presentes todos os elementos que justificam a desobediência civil, estão presentes: a causa justa, a autoridade arrogante, a lei e a ordem injusta que deve ser desobedecida, o povo consciente organizado e disposto a resistir, a articulação nacional e internacional. Falta ainda melhor articulação com a mídia.
A luta contra essa barragem de Belo Monte tem, pois, todos os ingredientes e as possibilidades de ser a maior experiência de desobediência cível da história na América Latina, com reais possibilidades de ser vencedor e um marco histórico na luta mundial para a salvação do planeta.
*Coordenador do Serviço Paz e Justiça SERPAJ-Brasil
Esse texto foi publicado na revista canadense Relations, nº 744, em novembro de 2010, tratando a temática Violência e Religião.