Morosidade em demarcar terras indígenas é principal causa de violência
Constatação foi feita durante o lançamento do Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil realizado semana passada em Rondônia
O auditório da Cúria Arquidiocesana de Porto Velho, em Rondônia, recebeu no último dia 14, diversos convidados para o lançamento da publicação Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2010. A publicação, que é organizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), traz dados alarmantes sobre as violações de direitos de que são vitimas os indígenas do país.
Somente em 2010, 92 crianças morreram por falta de cuidados médicos ou condições adequadas de saúde da mãe na hora do parto. 60 indígenas foram assassinados, outros 152 ameaçados de morte. Mais de 42 mil sofreram pela falta de assistência à saúde e à educação, entre outras. Foram registrados 33 casos de invasões possessórias e exploração ilegal de recursos naturais disponíveis em terras indígenas.
Irmã Emília Altini, coordenadora do Regional Rondônia do Cimi, ressaltou que o carisma da entidade está explícito no anúncio, no testemunho, no apoio aos povos indígenas e na denúncia no que diz respeito à negação dos direitos e de qualquer violência que fere a vida dos povos. De acordo com a missionária, a principal causa de tais violações é a morosidade e omissão do governo diante da demarcação das terras indígenas. “O pano de fundo das violências cometidas contra os povos indígenas, bem como a violação dos seus direitos é o desrespeito à demarcação de suas terras e a morosidade dos órgãos públicos na regularização de seus territórios”, destacou.
Das mais de 300 terras indígenas sem providência em nível nacional, 24 estão no em Rondônia. No estado, vivem hoje cerca de 54 povos indígenas, além dos 15 em situação de isolamento e risco de extinção. Cinco destes povos, inclusive, ameaçados pelas obras do Complexo do Madeira. Isto leva a afirmar que mais da metade dos povos indígenas de Rondônia estão fora de seu território tradicional e aguardando há anos que a Fundação Nacional do Índio (Funai) e os órgãos responsáveis dêem início ao processo de reconhecimento dessas áreas.
Ainda de acordo com Emília, a luta pela terra é a chave da violência e da criminalização de lideranças indígenas. As políticas públicas não funcionam, embora esteja garantida no papel. A criminalização das lideranças indígenas, a omissão do poder público, a desassistência à saúde e à educação, também são fatores que geram as violações dos direitos das populações indígenas. “A situação de violência dos povos indígenas é fruto da definição da política do governo, que privilegia interesses econômicos e políticos específicos e um modelo desenvolvimentista em detrimento à garantia de direitos”, afirmou Emília.
Para a missionária, a atuação do Cimi vem na contramão dessas escolhas. Nesse sentindo, de acordo com ela, o Relatório denuncia as violências contra os povos indígenas, que são fruto de uma ideologia diametralmente oposta ao projeto de vida dos indígenas, o que é plenamente defendido pela entidade. As violências são, portanto, fruto da ideologia do desenvolvimento a qualquer preço, da expansão contínua, da maximização do lucro, que é, por natureza, predatória e injusta.
Sejamos comparsas
Presente no lançamento, dom Moacyr Grechi, Arcebispo de Porto Velho, reafirmou as falas de Emília ao ressaltar que as violências contra os povos indígenas são frutos de uma ideologia que vai na contramão do projeto de vida destes povos. Para ele, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) invade, ocupa e destrói implacavelmente as terras, as comunidades e as vidas indígenas. “Quanto desprezo, quanta descriminação!, como disse Dom Erwin no prefácio deste livro. É a instituição de um novo ‘apartheid’, uma premeditada violação da Magna Carta do Brasil”, afirmou o arcebispo.
Para dom Moacyr, ainda que as cruzes continuem erguidas, a devoção ao deus dinheiro e a falta de segurança na garantia da terra são as razões principais para esta agressão contínua aos povos indígenas. No entanto, o arcebispo, enfatiza a força e esperança destes povos, que apesar desse assombroso quadro de violências, continuam sorrindo e lutando. “Não devemos ter medo, o medo é a falta de esperança, é o diabo, e só vem para nos atrapalhar. Devemos ter fé e esperança. Sejamos todos comparsas dos que lutam por um Brasil para todos, e não apenas para alguns mais favorecidos”, disse.
Tudo continua igual
Já dom Antônio Possamai, responsável pelas Pastorais Sociais da CNBB no Regional Noroeste, o convite para participar do lançamento lhe fez pensar que este processo de eliminação dos povos originários do continente americano foi inaugurado há mais de 500 anos. “Que bom seria se nos reuníssemos para festejar uma conquista de 500 anos de respeito pela vida, dignidade, cultura destes povos! Desde aquele tempo, os povos indígenas eram considerados ‘não gente’. De lá para cá não houve muito progresso. Até recentes anos tivemos governantes que proclamaram um projeto de governo de ocupação dessas terras ‘sem gente’”, assinalou dom Antônio.
Dom Antônio também endossou as falas de Emília e dom Moacyr, ao afirmar que as escolhas do governo não prioriza os direitos, mas o avançar em programas de progresso acelerado, como o PAC. Projetos que, de acordo com ele, passam por cima de tudo, destruindo povos, culturas e territórios para dar lugar ao lucro e ao acúmulo de capital. “Vivemos um tempo de esquecimento ou até de desprezo de tradições, esquecem-se valores, culturas e tradições. Há, entretanto uma tradição que não é desprezada: vem das capitanias hereditárias, passou pelo tempo da cana de açúcar, da mineração, do gado, da seringa, do etanol, da soja e dos grandes latifúndios, com suas cercas e pistoleiros. Desse tempo até aqui, nada mudou. As vítimas continuam as mesmas: os indígenas, camponeses, quilombolas, pequenos agricultores, trabalhadores, empobrecidos e marginalizados, porque, dizem, atrapalham o ‘progresso’”, concluiu.
Esse governo é uma vergonha
O presidente da Comissão Indígena de Rondônia, Antenor Karitiana citou que os direitos dos povos indígenas estão sendo negados: não têm escolas, não têm postos de saúde, têm que tomar água suja, pois seus rios estão contaminados. “Nossas escolas não estão regularizadas, muito menos valoram a nossa cultura. Está sendo negado o direito de ter tratamento de saúde digna”, desabafou. Antenor alerta ainda que a violência contra os povos indígenas é intermitente. “Ela não aconteceu só no passado, ainda é presente pela descriminação, invasão de nossas terras, pela construção de grandes empreendimentos que impactam diretamente nossas comunidades, pela busca desenfreada de lucro. A terra é nossa fonte da vida. Nós consideramos a terra mais importante, ela está acima de tudo e não o dinheiro”.
Para Antenor, o governo não os representa, pelo contrário, os causa vergonha. “Hoje os índios estão tentando sobreviver. O governo não nos ensinou a falar o idioma e a comer a comida do ‘homem branco’. Ele está fazendo alguma coisa apenas pela pressão do movimento indígena. Os povos indígenas, principalmente no estado de Rondônia, estão vivendo sem condições dignas, em trabalho escravo. O governo está brincando conosco. Não esperamos pelo governo, nossa luta tem que ser unificada, fortalecida e essa é minha esperança. Os companheiros, os nossos aliados sempre nos ajudaram”, disse.
Povos Indígenas Isolados
Aproveitando o momento, o Cimi reforçou o lançamento do livro “Os povos indígenas isolados da Amazônia – A luta pela sobrevivência”, destacando que há 127 povos livres na América do Sul, dos quais 90 destes estão no Brasil, sendo 15 no estado de Rondônia. Povos estes que vêm sendo ameaçados e massacrados a risco de extinção pelos projetos econômicos e o agronegócio.
Estes povos são vítimas invisíveis à nossa sociedade. Nas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, cinco povos indígenas livres estão sofrendo os impactos dessas obras desastrosas. Caso o governo mantenha o plano de construção da hidrelétrica de Cachoeira do Ribeirão, mais dois povos indígenas livres serão impactados. Com a construção da hidrelétrica do Tabajara no rio Machado, em Ji-Paraná, mais três povos terrão seu território tradicional impactado. As Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) no Cascata, rio Machado (em Chupinguaia) e rio Branco (em Alta Floresta) estão sendo construídas em cima de cemitérios indígenas.
“O Cimi, com este relatório, quer mais uma vez afirmar seu compromisso com os povos indígenas do Brasil quanto à defesa de sua dignidade e de seus direitos inalienáveis e sagrados”, afirmou Emília ao encerrar a cerimônia. Ela ainda agradeceu a presença de dom Moacyr e dom Antônio, bem como de representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Instituto Madeira Vivo, Faculdade Católica de Rondônia e Universidade Federal de Rondônia.