20/07/2011

Dor, mas esperança resiste em Mato Grosso do Sul

Por Egon Heck

Nesta semana, luzes e sombras se projetam sobre a luta dos Kaiowá Guarani e outros povos indígenas no Mato Grosso do Sul. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) anunciou a criação da Comissão para estudar a questão indígena no MS e apontar soluções para o grave problema das terras indígenas no estado. Uma delegação de parlamentares vão a Brasília conversar com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para encontrar soluções para os conflitos e tensões no campo, em função da não demarcação das terras indígenas. Na saída do encontro, esbanjam otimismo, pois finalmente parece haver disposição e sugestões concretas para resolver o problema. 

No entanto, nem tudo reluz como parece, pois ao mesmo tempo levantamento realizado pela Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul) aponta que conflitos fundiários envolvendo as terras indígenas têm como saldo, hoje, um total de 42 áreas irregularmente ocupadas por índios em todo o estado. Na mesma semana, e seguindo a mesma toada, a juíza Marli Lopes Nogueira, da 20ª Vara do Trabalho do Distrito Federal, atendeu a um pedido de liminar em mandado de segurança movido pela Infinity Agrícola suspendendo a libertação de trabalhadores em condição análoga à de escravidão em uma fazenda de cana, localizada no município de Naviraí. O grupo móvel de fiscalização, composto por auditores do trabalho, procurador do trabalho e policiais federais, estavam retirando 817 pessoas – dos quais 542 migrantes de Minas Gerais e Pernambuco e 275 indígenas de diversas etnias – por estarem submetidas a condições degradantes.

Um projeto do deputado estadual Laerte Tetila (PT) prevê a criação do Fundo Estadual de Aquisição de Terras Indígenas. O projeto será aprovado rapidinho pela Assembleia Legislativa do MS, pois o governador do estado, André Puccinelli (PMDB), já anunciou apoio ao projeto.

Vidas atropeladas

À beira da estrada,
Na retomada,
No confinamento,
As vidas sofridas

De Kaiowá Guarani,
Vão sendo atropeladas,
Abreviadas,
Ceifadas!

É o caminho da cruz,
Do sofrimento,
Da luta,
Da esperança,
Da terra sem males!

Cruzes à beira da estrada. Ou nada. Simplesmente a memória de que ali muitos Kaiowá Guarani perderam a vida. As rodovias asfaltadas que cortam a maioria das aldeias, são testemunhas silenciosas de dezenas de vidas ceifadas nas últimas décadas. 

Lembro, quando em 2004 fui visitar a aldeia de Limão Verde, e me mostraram o local onde há poucos dias haviam morrido atropelados três membros da comunidade. Após um atropelamento, outros foram socorrer e acabaram sendo também atropelados.

No ano seguinte, visitando a comunidade de Taguapery, quando a rodovia que corta a terra indígena, recém havia sido asfaltada, falavam das quatro pessoas que já haviam ali morrido atropeladas, inclusive duas crianças que iam para escola. Só muito tempo depois foi colocado ali um quebra molas.

Em Nhanderu Marangatu, depois do asfaltamento de outra estrada que liga a cidade de Antônio João a Bela Vista, em 2006 – no limite da terra indígena -morreram atropelados três indígenas.  A estrada permaneceu sem nenhum indicativo de cuidado e diminuição de velocidade por vários anos.

Joab, professor indígena, foi atropelado e esmagado, quando diversos carros passaram sobre seu corpo, próximo a Maracaju.

A comunidade de Larajeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante, depois de expulsa da terra, permaneceu acampada à beira da BR 163, por quase dois anos. Neste período tiveram três de seus membros mortos por atropelamento. Cansados de ver seus filhos sendo mortos na estrada, decidiram retornar ao seu tekohá, onde permanecem há quase dois meses.

Os que correm maior risco de atropelamento são os Kaiowá Guarani acampados à beira das estradas, que somam mais de 20 acampamentos. Ali geralmente não tem sinalização nenhuma. Qualquer descuido pode ser fatal.

Dessas dezenas de mortes por atropelamento, a maioria fica na total impunidade. “É como se matassem um cachorro atropelado”, dizem alguns familiares das vítimas. Não tenho conhecimento de nenhum carro que tenha parado após o atropelamento e nem sido identificado ou aberto inquérito para apurar responsabilidades. Fica tudo por isso mesmo, continuam.

Pai e filho, a mesma morte

Quando os dois ônibus estraçalharam o corpo de Sidnei Kaiowá, perto de Dourados, o dado desse atropelamento soou como apenas mais um registro. No entanto, para sua comunidade não. Sidnei teve a mesma morte que pai, atropelado pela caminhonete de um fazendeiro, em 1999. 

Em 14 de abril de 2004 Sidnei foi ao Ministério Público Federal prestar depoimento, onde afirmou “que seu pai, Ilário Cário de Souza fora assassinado em 2002 em decorrência da luta pela terra. Diz, que o Sr. Ilário fora abalroado por um veículo guiado por um fazendeiro proprietário da terra reivindicada pela comunidade do Sr. Ilário de Souza.” (DOC. 01). Ainda de acordo com seu depoimento, o atropelamento foi uma ação intencional, pois, após atropelá-lo, o motorista não prestou os devidos socorros à vítima. De acordo com Sidnei, o atropelamento foi testemunhado também por Damiana Cavanha e Jamiro Isnarde, cunhado do depoente. No documento, Sidnei reclamava que apesar dos pedidos da comunidade, nunca foi aberto um inquérito para apurar a possibilidade de um assassinato. Depois do atropelamento de Ilário, segundo o depoimento, o grupo foi arbitrariamente levado para a TI de Caarapó, conforme averiguado.

Esses relatos foram confirmados e divulgados por Alice Castilho Lutti na publicação ‘Acampamentos indígenas e ocupações: novas modalidades de organização e territorialização entre os Guarani e Kaiowá no município de Dourados – MS’, que retrata a situação vivida pelos indígenas da região entre os anos de 1990 e 2009.

Justamente Sidnei, que por diversas vezes denunciou a situação de descaso em que viviam seus parentes e os inúmeros registros de atropelamentos ao MPF, morreu de forma trágica ao ser atropelado da mesma brutal que fora seu pai anos atrás. 

A viúva de Sidnei, Rosimara, tem 31 anos e ficou com quatro filhos. Ela afirmou ter visto os números dos dois ônibus que atropelaram seu marido.

Fonte: Cimi Regional MS
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