27/06/2011

Pirakuá – o buraco do peixe

Por Egon Heck

Nesses termos Jorge, liderança da Terra Indígena Pirakuá, município de Bela Vista (MS), foi externando sua esperança, apesar de tudo. Fomos visitar sua família, nuclear e extensa, em seu espaço ao pé da mata e da montanha. Foram dias de intenso mergulho na vida, cultura e desafios do povo Guarani. Tínhamos muita sede de conhecer a terra e a gente da comunidade da primeira retomada, da longa luta pela terra Kaiowá Guarani das últimas décadas.

Um pouco da história e da luta

Pirakuá, que quer dizer o buraco do peixe, é um tekohá retomado em 1985. Foi a primeira terra reconquistada desde 1925, quando do processo de confinamento em pequenas áreas ou reservas, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). “É pena que o pirakuá (o buraco do peixe) tenha ficado fora da demarcação”, comenta Jorge. De fato é um lugar muito bonito e significativo, povoado de lendas e mitos, numa das voltas do rio Apa.

Pirakuá, apesar de ter pouco mais de 2 mil hectares é hoje um lugar muito especial dentro do contexto das terras indígenas Kaiowá Guarani. Terra muito fértil às margens do rio Apa, muito piscoso e com mais de mil hectares de mata atlântica, praticamente intacta. A área está se tornando referência na luta dos mais de 40 mil Kaiowá Guarani do MS, pois é a sementeira que ajudará a recompor a mata – reflorestar com árvores nativas – as outras terras devastadas.

Imaginário de lendas e mitos

“Documenta bem o pirakuá, pois muitos dos nossos filhos e crianças não o conhecem. Apesar de estar a uma distância de mais ou menos três mil metros da aldeia, esse lugar belo e misterioso é desconhecido por grande parte da população mais jovem da aldeia. Margeando o rio Apa fomos caminhando pela pastagem da fazenda Pedra Branca, onde grande parte da mata ciliar foi destruída. No caminho foi nos mostrando as diversas plantas medicinais e a árvore yvyrá araundu, do qual se faz o “xiru” – uma espécie de cruz e borduna  sagrada.                                                       

Ao cruzarmos por um córrego de água límpida, Jorge passou a dissertar longamente sobre a importância da água, que é nossa vida. Irmã Joana aproveitou para saciar a sede.

Chegando no buraco do peixe, ele logo foi explicando que esse lugar é povoado de espíritos que aparecem em diversas formas àqueles que vão ali pescar. Por isso é um lugar muito respeitado.                              

Sonho e realidade

Com certa tristeza seu Jorge desabafa: “Terminou os trabalhador Kaiowá Guarani. Os velinhos aposentaram a enxada, a foice, o machete – uma espécie de faca do mato, com dois gumes. Agora esperam a aposentadoria chegar. A família espera o auxilio escola, o auxilio família, a cesta básica do governo, depois a cesta básica da Funai, e assim vai passando, ficando mal acostumada. Isso não existia dentro da nossa cultura, onde a gente trabalhava e se divertia, rezava e fazia festa com aquilo que a gente  plantava e colhia. Hoje está tudo mudado. A maioria depende da ajuda do governo (programas sociais). Mas eu tenho um sonho. Quero ver um dia nosso povo ter escola que seja conforme a nossa cultura e que ao mesmo tempo ajude a enfrentar a dura realidade atual. Sonho com uma escola que dê possibilidades a nossos jovens a voltar a viver da terra, plantar e colher conforme sempre foi nas aldeias, ajudados com mais outros conhecimentos, possibilitando assim a conquistar a autonomia dentro de nossas terras”.

A casa de Jorge é também casa onde já passaram vários estudiosos desse povo, ficando meses partilhando conhecimentos, sabedoria e cultura do Kaiowá Guarani. Ele não se cansa. Tem pressa em passar tudo que conhece, vive e sonha para outros. Ele é um dos “livros vivos”, como o são tantos anciões.

Buracos e atoleiros

Indo em direção à sua casa, Jorge foi chamando atenção para o abandono em que estão por parte do município. Estradas como a que vai à sua casa estão intransitáveis, com enormes buracos e atoleiros. Disse que já foi falar na prefeitura, exigir providências, mas até agora nada de arrumarem as estradas. A ponte sobre o rio Apa também está torta, com risco de desabar a qualquer momento, caso não sejam tomadas providências. “Bota no jornal, só assim eles vão fazer algo”, dizia ele.

Lutador pela terra e vida Kaiowá Guarani

Jorge é uma das lideranças que desde a década de 1980 começaram a luta pela demarcação das terras Kaiowá Guarani no MS. Foi com ele que aconteceu a primeira retomada dos tekohá.

Jorge participou do encontro de acadêmicos e vereadores indígenas, realizado semana retrasada. Para ele, o eixo principal das discussões e conversas feitas durante esses dias em Dourados é a demarcação das terras. “Eu tenho pensado que essas oito aldeias que conseguimos demarcar, na década de oitenta – Piraúá, Sete Serros, Gauasuty, Cerrtio, Jaguari, Paraguasu, Jauapiré e Jarará, foi uma luta favorável, pois tínhamos bastante apoio dos nossos aliados e muita união e disposição do nosso povo. Quando os nhanderu falavam é hoje, nada conseguia impedir a volta à terra tradicional”, disse.

Depois, de acordo com ele, houve um esvaziamento dos órgãos de apoio. E somente agora estão novamente ressuscitando a luta pela demarcação de suas terras. “Estamos ocupando novos espaços de apoio, como os parlamentares indígenas, que estão nos ajudando na reconquista de nossas terras. Também temos a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), brigando lá em cima por nós. Também na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) vamos ter o nosso representante”.

Segundo Jorge, os Kaiowá Guarani tem certa autonomia, mas precisam de recursos para isso, não ficando a mercê das políticas assistencialistas do governo. “Eu penso que teremos que ter algum projeto que nos ajude a andar com as próprias pernas. Precisamos ter a capacitação de nossas lideranças. Pensei num curso de capacitação para os nossos jovens”.

A participação de indígenas no cenário político brasileiro também sinaliza mudança e a vinda de novos tempos. Para a liderança seria importante que os indígenas pudessem ocupar esses espaços, tendo inclusive um número maior de vereadores. Ele acredita que assim teriam mais força política, não tendo que, à época das campanhas políticas, ouvir somente falsas promessas, mas fala dos parentes que falariam ao povo a importância da luta e da mobilização para a conquista dos territórios.

Fonte: Cimi Regional MS
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