Um pouco da memória da vida de Doroty Müller Schwade
Por Guenter Francisco Loebens
Cimi Regional Norte I
Doroty faleceu no dia 3 de dezembro, vítima de derrame cerebral. Seu enterro neste domingo, no município de Presidente Figueiredo foi acompanhado pelos familiares, amigos e pela comunidade local. Catarinense de Blumenau, saiu de casa, na década de 1970, para ser voluntária da OPAN (Operação Anchieta, hoje Operação Amazônia Nativa) e integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Abraçou a causa indígena e a Amazônia de forma intensa, apaixonada e radical. Inicialmente foi convocada para fazer o levantamento dos povos indígenas na Amazônia Ocidental, no Acre e sul do Amazonas. Foi o primeiro passo para que os indígenas dessa região, então conhecidos como caboclos começassem a se articular para romper com as relações de exploração nos seringais e a lutar pela demarcação de suas terras. Para dar suporte ao trabalho de apoio as lutas indígenas dessa região, ajudou a criar o regional Amazônia Ocidental do Cimi, sendo escolhida para ser a coordenadora.
Alguns fatos ilustram a determinação da Doroty naquilo que se propunha fazer. Chegando em Lábrea, pequena cidade situada a beira do Rio Purus, no Amazonas, no ano de 1977, apresentou-se na Prelazia para informar a igreja local sobre o levantamento que pretendia fazer naquela região. Frei Jesus, hoje bispo de Lábrea, percebendo que ela iria andar sozinha pelos rios e varadouros tentou de todas as formas demovê-la da idéia, alertando para os perigos da mata. Percebendo que ela não desistiria, a única alternativa que lhe restou foi arrumar sua mochila as pressas para acompanhá-la.
Tive a oportunidade de conviver em equipe com Doroty e Marta (uma voluntária italiana) em 1978, tão logo cheguei a Amazônia. A atuação da equipe se dava com os povos Jarawara, Paumari e Jamamadi. A casa de apoio erguida sobre palafitas como as demais casas, para superar as enchentes sazonais do rio Purus, ficava localizada na colocação de seringueiros conhecida como Estação, um dia de viagem acima de Lábrea. Na convivência diária chamava atenção a coerência de Doroty com a causa dos pobres e dos índios que abraçara e sua preocupação com as pessoas a sua volta. Provocava avaliações constantes na equipe para que todos vivêssemos o mais proximamente possível nas mesmas condições em que viviam os indígenas e seringueiros. Quando andávamos nos varadouros, como ela caminhava um pouco mais devagar, propunha ficar por último, porque se ficasse pra trás, iria apressar o passo para nos alcançar e dessa forma não prejudicaria o ritmo da caminhada.
Em 1979 Doroty casou com Egydio Schwade, então Secretário Executivo do Cimi. Posteriormente o casal se fixou em Itacoatiara (AM), na Prelazia de Dom Jorge Maskell, com o objetivo de atuar junto ao povo Waimiri-Atroari e em 1984 transferiram-se para Presidente Figueiredo (AM). Enquanto buscavam criar as condições para uma presença mais permanente nas comunidades indígenas, participaram da construção das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e dedicaram-se incansavelmente no combate aos grandes projetos econômicos que estavam decretando a morte do povo Waimiri Atroari. Além da BR-174, cuja construção nos anos de
Quando puderam, com o fim da ditadura militar em 1985, se apresentar abertamente às comunidades indígenas, Doroty e Egydio foram imediatamente desafiados pelos Waimiri Atroari a iniciarem um processo de alfabetização. Como não falavam a língua Waimiri Atroari, fizeram da “escola” um local de aprendizado mútuo e a alfabetização pode se dar na língua indígena. A escola, pensada como um espaço de libertação, usando como recurso pedagógico o desenho, aos poucos foi lançando luzes sobre a história recente de violência praticada contra o povo Waimiri Atroari. Desenhos mostrando aviões sobrevoando as aldeias e índios mortos pelo chão no período da construção da BR-174 era uma história que incomodava muita gente. Também não interessava que os indígenas fossem informados sobre a mineração em suas terras. Assim em 1986 o casal foi expulso da área indígena pela Funai, cuja política ainda era fortemente influenciada pelos remanescentes da ditadura militar.
Impedidos de voltar para a terra indígena, sobrava mais tempo para espalhar essa idéia nova que vinha de suas convicções cristãs de fé, de sua militância política e do aprendizado com os povos indígenas – o cuidado com a terra e com as criaturas para ser feliz – sem exploração, acumulação e dominação. E o melhor jeito que encontraram para espalhar essa idéia foi mostrar que não era só um sonho, mas que podia ser concretizada. Os filhos Ajuri, Adu, Maiá, Maiká e Luiz foram criados vivenciando essa experiência.
Os muitos depoimentos dados pelas pessoas da comunidade local e dos amigos durante as celebrações que antecederam o seu enterro destacaram como se sentiam acolhidas pela Doroty, tanto na chegada a sua casa quanto na saída. Que sua casa havia se transformado num local de referência, onde sempre encontravam pessoas de distintos lugares em busca de novos caminhos.
Doroty mesmo oriunda da cidade mas com a convicção comungada por toda sua família de que o “bem viver” passava pela diversidade e abundância de alimentos, dedicou-se a recuperar solos, semear e cuidar das plantas. Assim, sua casa pode se transformar num lugar de encontro, de acolhida, de confraternização, de fartura, de alegria, de festa e numa verdadeira escola de vida.
Que a radicalidade de Doroty, na sua opção de vida, possa inspirar e encorajar a todos nós na luta pela justiça e no cuidado com a terra.