12/11/2010

Esperança e Desespero

Por Claire Nevache
Estudante do  Instituto de Ciências Políticas de Lyon (França), realizando estágio no Cimi Sul

 

São estas as duas palavras que melhor expressam meus sentimentos frente ao descobrimento da realidade indígena no Brasil. Antes de chegar neste país complexo, tinha estudado um pouco de antropologia, um pouco sobre o movimento indígena, tal como o movimento Zapatista, no México, os Mapuches, no Chile, a experiência da CONAIE, no Equador. Ingênua, pensava que com essas leituras e estudos, estava um pouco mais preparada para a experiência que deveria iniciar no Brasil. Doce ilusão da universidade. 

 

Quando entrei pela primeira vez numa aldeia em Porto Alegre, acho que arregalei os olhos de surpresa. Antes disso, subindo o Morro do Osso, me deparei com casas de dois ou três andares, com rua pavimentada, jardins bem cuidados. Isso sem falar nas piscinas escondidas atrás destas luxuosas casas.

 

Eu não poderia imaginar quais moradores encontraríamos vivendo ao final daquela rua. Apenas alguns metros a mais e estamos num outro mundo, outro universo. Lá não têm piscinas e foi difícil obter água potável. Lá as crianças não brincam em seus jardins, mas descalços no chão. A pele também é mais escura que às das pessoas alguns metros abaixo.

 

Diferentemente das ruas vazias, onde cada um se protege atrás de grades e cercas elétricas, as casas indígenas estão abertas. As mulheres tomam chimarrão tranquilamente, cuidando de suas crianças. Nos primeiros instantes, ou até mesmo nos primeiros dias, sentia-me como que uma intrusa. Perguntava-me como eles estão analisando a minha presença? Para eles, eu pertenço ao outro mundo? Ao mundo dos brancos? Ao mundo dos opressores, dos fazendeiros, dos pistoleiros, dos conquistadores?

 

Mas, rapidamente eles sabem como fazer a gente se sentir em casa. Um chimarrão, um sorriso, alguns jogos com as crianças, piadas com as mulheres e o incômodo foi embora!

 

Pouco a pouco, aprendo com a realidade indígena. Confronto-me com ela, e ao mesmo tempo comigo mesma, com as minhas antigas certezas, minhas idéias, minha cultura.

 

Muitas vezes a situação traz ao coração um grande sentimento de desespero. O processo de genocídio em andamento, na Europa, na África ou na América, nos mostra todos os dias como o homem é seu próprio predador, como a intolerância, o racismo seguem sendo tão vivos como no tempo de Cabral ou de Cristóvão Colombo. Como o mundo segue dando voltas e voltas sem se importar com os povos, com suas culturas, suas línguas que se extinguem pouco a pouco.

 

Por que será que em muitos países a promessa do dinheiro e do lucro fácil têm mais valor que a promessa de um mundo multicultural, onde cada povo pode se auto-determinar, onde as diferentes culturas possam conviver, sem que uma seja superior à outra? Por que a humanidade inteira deve se submeter ao capitalismo que projeta um modelo único, desrespeitando as diferenças culturais, a historia, e, sobretudo sem haver senso de justiça?  Enfim, um mundo feito para o capital, para a acumulação desenfreada e para a comodidade de uma minoria, às custas da maioria.

 

Também representa um desespero ver as sociedades e as culturas da “abundância frugal” e do bem viver, ficarem marginalizadas em seu próprio pais, em suas próprias terras. Muitas vezes escutei que viver simplesmente e pobremente fazia parte das culturas indígenas. Faz parte das culturas indígenas sem duvida, viver só com o necessário, e não só com o supérfluo como nos vivemos. Faz parte das culturas indígenas, não desperdiçar, e retirar da natureza o que o homem precisa dela, sem degradá-la.

 

Mas não é cultural, e jamais o será, viver em beira de estradas, em barracos de lona. Não é cultural passar necessidade. Não é natural ter crianças com barriga inchada de fome, viver esperando o “Bolsa Família” ou a cesta básica oferecida pelo governo. Não é natural viver dependente do juru’a

 

Desespera-me também a quantidade de suicídios. Desespero-me quando um povo se deixa morrer. Desespera-me a fome, as crianças sem escola, as doenças, o desespero, o desrespeito.

 

Mas, frente a esses dramas quotidianos, persistem e resistem os sorrisos, os olhares brilhantes de um povo que, apesar de tantos sobressaltos, segue vivo não só fisicamente, mas também culturalmente. Uma cultura que todos os dias se faz mais forte através da língua, do artesanato, dos costumes, dos ritos religiosos, que resistem frente à pressão da cultura dita dominante.

 

E com os indígenas percebo que a esperança numa sociedade nova e alternativa, da qual falam alguns intelectuais ocidentais, pela qual lutam os movimentos sociais existe verdadeiramente. E os povos indígenas com suas culturas representam uma esperança frente ao capitalismo dominante, frente à sede de lucro e de acumulação permanente. Outro mundo é possível. Não se trata de uma vã utopia.

 

O capitalismo vangloria-se de ser forte, de ter capacidade de produzir e de ser eficiente economicamente. Mas eficiente para quem? À custa da morte por desnutrição de 10 mil crianças em todo o mundo a cada dia? Eficiente para os milhões de desempregados? Eficiente para quem não tem outra escolha a não ser matar a fome de seus filhos com alimentos geneticamente modificados? Eficientes para os camponês sem terra ? Eficiente para as crianças escravas que tem que trabalhar para fabricar os brinquedos das crianças do primeiro mundo? Eficiente quando na maioria dos países do mundo, os doentes ricos pagam seus tratamentos caros, enquanto os doentes pobres morrem na indiferença?

 

Eficiente para quem, não sei. Com certeza, não é eficiente para os povos indígenas do mundo inteiro. Porque aqui, como em outros lugares, uma usina hidrelétrica vale mais que a preservação de um modo de viver, porque explorar petróleo, gás ou madeira na América, na África ou na Ásia, vale mais que proteger povos isolados, ou preservar um modo de ser e de viver. 

 

Existe esperança de que outro jeito de viver é possível, onde o lucro, a acumulação de riquezas não sejam a única razão de ser. Os povos indígenas vivem milenarmente a cultura do bem viver. Vivem segundo o lema “a cada um, segundo suas necessidades”, tirando da terra o que precisam sem mais nem menos. Mantiveram depois 500 anos de contato com um modelo capitalista, colonialista e imperialista, uma economia alternativa de reciprocidade, uma cosmovisão própria, mantiveram suas tradições, lutam até os dias atuais pelos seus tekohá, mesmo que seja esperando nos acampamentos em beira de estradas.

 

Poderíamos supor que no lugar deles já teríamos abandonado esse jeito de ser diferente e buscado integrar-se à dita sociedade civilizada para garantir os direitos básicos de cada cidadão: um teto, educação e saúde para os filhos, e, mais que tudo, o direito ao respeito por parte dos que não são mais que os colonizadores. Ao contrário, os povos indígenas seguem enfrentando o racismo e a discriminação, mas não abrem mão de sua cultura, de seu jeito de ser, de suas tradições.

 

Enquanto os Guarani, os Kaingang e todos os outros povos indígenas seguirem nos mostrando uma alternativa, existirá uma esperança para nossa humanidade, para nossa terra, para nosso modelo social. Enquanto seguirem vivos, nos mostram que é possível viver de outro jeito que não seja baseado no consumo compulsivo, na aparência e na superficialidade. Enquanto seguem vivos, nos mostram que é possível construir uma sociedade mais humana.

Porto Alegre, 11 de novembro de 2010

Fonte: Cimi Regional Sul - Equipe Porto Alegre
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