Informe nº 935: “Números oficiais escondem a omissão do estado em relação às terras indígenas”
Afirmação é de Egon Heck, coordenador do Cimi
Egon Heck, coordenador do Cimi
Ao Estado de São Paulo, Luiz Paulo Barreto, afirmou que 95% das terras indígenas brasileiras já estão demarcadas, de acordo com levantamento do MJ. Egon Heck rebate essa declaração e diz que de acordo com a própria população indígena do país esses dados não correspondem à realidade.
“Os números, questionáveis a partir de dados levantados com as comunidades e povos indígenas no país, escondem uma tremenda omissão com relação às reais situações dessas terras, estando grande parte delas invadidas, com a omissão ou conivência do governo, a quem cabe a proteção dessas terras e dos recursos naturais”.
Na carta, Heck afirma que se coloca ao ministro não com base em posturas ideológicas, mas a partir do conhecimento adquirido ao longo de quase quatro décadas atuando junto às comunidades indígenas do país e acredita que é possível um outro projeto para o Brasil, no qual os povos indígenas tenham plena atuação.
Confira texto na íntegra:
CARTA ABERTA AO MINISTRO DA JUSTIÇA
Sr. Ministro Luiz Paulo Barreto,
Gostaria de fazer algumas colocações a partir de suas recentes declarações na imprensa (ESP,3/10/10). Não as faço a despeito de posturas ideológicas (como o são algumas das afirmações feitas em sua entrevista), mas a partir dos conhecimentos de quem, há quase quatro décadas, trabalha com os povos indígenas e que acredita que é possível e necessário um outro projeto para o Brasil, com o qual os povos indígenas muito têm a contribuir.
Deixo claro que considero os povos indígenas como atores políticos e sociais da maior relevância. Portanto, sem nenhuma visão de paternalismo ou tutela, ou de jardim zoológico humano. Aliás, expressões semelhantes foram insistentemente utilizadas por governos da ditadura militar para justificar a invasão das terras indígenas, e entregá-las às frentes de expansão econômica e as grandes obras pois “um punhado de índios não pode atravancar o desenvolvimento”, dizia-se naquela época.
Terras-territórios ou reservas
Talvez o senhor não tenha acompanhado, até porque não lhe devia interessar o assunto, mas desde a década de 1970, todas as terras indígenas no Brasil deveriam estar demarcadas. Passaram-se mais de três décadas do prazo estabelecido pelo Estatuto do Índio (Lei 6.001 de 1973) e a grande maioria dos processos de demarcação e regularização das terras indígenas estão pendentes, parados ou sem nenhuma providência. São no mínimo dúbias e enganosas afirmações de que 95% das terras indígenas estão regularizadas. Os números, questionáveis a partir de dados levantados com as comunidades e povos indígenas no país, escondem uma tremenda omissão com relação às reais situações dessas terras, estando grande parte delas invadidas, com a omissão ou conivência do governo, a quem cabe a proteção dessas terras dos recursos naturais.
Além disso, as terras mais conflitivas, como no Mato Grosso do Sul, e em especial com os Kaiowá Guarani com os quais trabalho, mais de 95% das suas terras necessitam de regularização. É vergonhosa e cruel a omissão e o descaso com que se tratou essa questão. E agora que o processo de identificação está sendo finalizado, esperamos que até o final do ano os relatórios de identificação sejam publicados.
O senhor relaciona a era do paternalismo e da tutela à “política de demarcação de terras”. É exatamente o contrário. O paternalismo e a tutela dificultaram a demarcação e garantia das terras indígenas. E o que é mais grave, estimularam o saque e a devastação das áreas já demarcadas.
Os Guarani no Mato Grosso do Sul
Esse pedido do presidente Lula não é de hoje. Inúmeras vezes ele tem se manifestado nesse sentido. É uma pena que a compreensão de solução das terras indígenas seja contra os direitos constitucionais desses povos a suas terras tradicionais, e se proponha simplesmente a “compra de terras”, e para isso se propõem a mudar a Constituição. Essa saída já foi várias vezes contestada pelos índios e instâncias políticas. É possível e urgente a solução necessitando apenas de decisão e vontade política do governo. Já existem dois projetos de lei na Assembléia Legislativa do Mato Grosso do Sul, a partir dos quais se poderia solucionar a questão inclusive da indenização dos títulos de comprovada origem legal, incidentes sobre terras indígenas.
Senhor ministro, por que não aproveita seu ensejo de garantir as terras Guarani, e mande a Polícia Federal acompanhar a Funai, a Funasa e as organizações indígenas, para romperem o cerco, o cárcere privado em que está mantida a comunidade do Ypoí, no município de Paranhos?
Não deixe passar essa oportunidade de resolver uma das mais cruéis situações por que passam povos indígenas hoje no continente. O Guarani Kaiowá já não aguentam mais!
Egon Heck
Campanha Povo Guarani Grande Povo
Brasília, 14 de outubro de 2010