O desenvolvimento e os direitos das comunidades indígenas
Há 35 anos a pesquisadora Lúcia Helena Rangel estuda a questão indígena no País e, ainda hoje, houve coisas como “se fala português, se tem cabelo crespo e se usa roupa, então não é índio”. Ela coordenou o recém lançado Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, cujos dados apontam que em 2009 houve 60 casos de assassinatos contra indígenas. “Seguramente, metade dessas mortes se deu em função de conflitos pela posse da terra”, diz Lúcia durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por telefone. Segundo ele, a maioria dos assassinatos ocorre quando há perseguição contra as lideranças dos povos indígenas. O estado do Mato Grosso do Sul vive uma das situações mais complicadas. Lá lideranças políticas e fazendeiros fazem tamanha pressão que o tensionamento fez com que índios se envolvessem com drogas e bebidas, levando a violência para dentro das aldeias, como é o caso que acontece nas aldeias dos kaiowá-guarani, “onde temos verdadeiros núcleos de tensão social por força do confinamento a que esse povo foi submetido”, apontou.
Lúcia Helena Rangel é graduada
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Os números que o Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil apresenta são alarmantes. Mas a senhora diz que o mais importante não é saber se aumentou ou não a violência contra os índios no Brasil. Qual é a grande mensagem deste relatório ao trazer tais dados?
Lúcia Helena Rangel – O que queremos transmitir é que uma parcela significativa da população indígena está sendo maltratada, violentada, desrespeitada em todos os níveis e a grande solução para esse problema depende da demarcação das terras indígenas, ou seja, a ampliação do acesso à terra. Há, em cada região, um problema específico. Este relatório demonstra mais uma vez complicações terríveis no sul, por exemplo.
Essa região foi considerada, desde o tempo do Serviço de Proteção do Índio (SPI), esvaziada de populações indígenas. Além disso, sempre usam o argumento de que os povos indígenas não precisam de terras, que não são índios porque falam português e têm cabelo crespo. No entanto, são regiões com populações grandes, cheias de problemas, onde há um estado lamentável da própria condição humana. Há gente morando à beira da estrada por que há uma negação absurda de negação à terra em regiões onde o desenvolvimento econômico é muito forte.
Então, a mensagem é muito simples: é possível conviver com o desenvolvimento e os direitos particulares das comunidades indígenas. Neste último relatório pode se perceber uma relação entre a violência contra a pessoa, onde estão os assassinatos, ameaças, racismo. Já na Amazônia há uma relação visível entre falta de assistência à saúde e a mortalidade por falta deste serviço. Se você analisar os dados relativos ao Vale do Javari, que fica no Amazonas, no coração da floresta, verá que a região sofre com epidemias de hepatite, malária, tuberculose e muitas outras doenças que chegam com os madeireiros e os garimpeiros.
Há uma ameaça na região amazônica que se coloca nesse plano da compulsão biótica, ou seja, uma ameaça à vida que chega lá através dessas doenças epidêmicas. Neste relatório fica claro que nas regiões Nordeste, Sudeste, Sul e uma parte do Centro-Oeste há maior violência contra pessoas. Na região Amazônica a violação de direitos é o principal problema que afeta as populações indígenas.
IHU On-Line – O relatório aponta que 60 indígenas foram mortos no ano passado. Em que circunstâncias se deram essas mortes?
Lúcia Helena Rangel – Seguramente, metade dessas mortes se deu em função de conflitos pela posse da terra. Temos um problema complicado que é a criminalização das lideranças indígenas. Elas estão lutando pela terra e, de repente, são acusadas de serem os violentos e são assassinados ou presos violentamente e ilegalmente. Uma outra parte é de assassinatos entre índios e isso acontece, especialmente, no Mato Grosso do Sul, nas aldeias dos kaiowá-guarani, onde temos verdadeiros núcleos de tensão social por força do confinamento a que esse povo foi submetido.
Há poucas áreas demarcadas e elas estão superlotadas. Desta forma, os índios não podem plantar, porque não têm espaço. Além disso, a FUNAI coloca povos diferentes dentro de um mesmo espaço de terra. E é aí que nascem as tensões internas que são superdimensionados por envolvimento com bebidas alcoólicas e drogas. Percebemos também que quando um índio mata outro índio ele não usa arma de fogo. Quando foram mortos por arma de fogo, com certeza foi um não indígena que matou. Neste segundo, a maioria dos registros policiais aponta que o autor é desconhecido. Quando há desentendimento entre índios então vão atrás, querem prender o assassino.
Na nossa análise, o problema foi causado pela questão fundiária. Se as comunidades pudessem cada uma viver em seu lugar próprio, metade desta violência, no mínimo, tenderia a diminuir. Por isso, ela nem aumenta nem diminui, porque em um ano uma aumenta e outra diminui, não tem como caracterizar uma tendência. O problema, e isso sempre nos deixa estarrecidos, é que essas situações se repetem há décadas e nenhuma providência é tomada. A FUNAI, até por força deste relatório, tomou o caso do Mato Grosso do Sul como prioritário e ali foi assinado o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Esse termo implicou na criação de vários grupos de trabalho, criados dentro dos procedimentos demarcatórios, para apressar a demarcação destas mais de trinta aldeias que as comunidades estão reivindicando.
Isto foi feito há três anos e não sai do papel. Porém, isso se deve ao fato de que os políticos locais, inclusive o governador do Mato Grosso, e os fazendeiros fazem uma pressão terrível sobre Governo Federal para que a FUNAI não faça as demarcações. Outro estado com situação de pressão semelhante por parte dos políticos e fazendeiros é Santa Catarina.
IHU On-Line – Por que há tanta dificuldade de respeitar os povos originários?
Lúcia Helena Rangel – Esse é um fator histórico que está colocado deste os primórdios da colonização. Em cada região, a colonização do Brasil foi feita sobre a desapropriação das terras indígenas. Então, o índio é aquele que foi negado, como categoria social, para que a colonização pudesse florescer. A consequência disto é um racismo muito grande que existe no Brasil inteiro contra a população indígena e uma negação reiterada de direito à terra.
Isso não é uma coisa que um relatório de violência pode encapar. Essa questão é de fundo histórico e que exigiria uma mudança de mentalidade muito grande. É uma luta que nós sempre faremos. Eu trabalho com a questão indígena há 35 anos, e desde então sempre ouço coisas como: “esse usa roupa, ele não é índio”. Aí tenho que explicar que existe no Brasil uma lei que diz que quem andar nu vai preso. As cidades crescem e chegam perto das áreas indígenas, e, então, as pessoas falam que por morarem perto da cidade eles não são mais índios. A população vai invertendo os argumentos, a situação para sustentar essa ideologia que não admite que alguém tenha algum direito diferente. É uma ideologia cruel, é uma perversidade social que está na espinha dorsal da nossa sociedade, da nossa mentalidade contra o indígena.
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação do governo Lula em relação à violência contra os povos indígenas brasileiros?
Lúcia Helena Rangel – Essas coisas sempre dependem da conjuntura. Por exemplo, quando aconteceu a Eco 92, o governo Collor foi o campeão de demarcação de terra. Ele tinha enorme interesse que país sediasse o evento e, por isso, liberou a FUNAI para demarcar inúmeras terras. O Fernando Henrique demarcou várias terras, pois os processos estavam todos montados, mas quando chegou a vez de homologar a Raposa Serra do Sol ele empurrou com a barriga e jogou para o Lula.
Lula assinou e enfrentou a reação dos políticos e dos interessados na terra dos índios