Visitando Babau e Givaldo
“Eu te bendigo, Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos grandes e poderosos e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).
Chegamos a Mossoró, cidade localizada numa faixa de transição entre o litoral e o sertão do Rio Grande do Norte, ao entardecer do dia 15 de junho. Tudo era festa, a seleção brasileira acabara de estrear na Copa do Mundo e vencera a Coréia do Norte. Parecia que todas as pessoas haviam saído às ruas, era uma multidão
Luciano[1] e eu parecíamos dois estranhos no ninho: não havíamos assistido ao jogo do Brasil, não vestíamos verde-amarelo e nem trazíamos no rosto qualquer expressão festiva. Estávamos tomados pela ansiedade de no dia seguinte poder visitar os irmãos Babau e Givaldo, dois importantes guerreiros do Povo Tupinambá, vítimas de uma grande e bem montada trama persecutória, razão pela qual se encontravam aprisionados na Penitenciária Federal de Segurança Máxima localizada a poucos quilômetros de Mossoró. Entre as tantas indagações que me vinham à mente, punha-me a imaginar por que motivo aqueles líderes indígenas haviam sido trazidos para um lugar tão distante de sua aldeia, a Serra do Padeiro, localizada no município baiano de Buerarema, na parte Sul do Estado. Também não encontrava justificativa para o fato de estarem cumprindo uma injusta prisão preventiva em um ambiente destinado a abrigar presos considerados de alta periculosidade. Era mais indignação do que dúvida. Esse sentimento fora ampliado quando mais tarde, em conversa com moradores do lugar, ficamos sabendo da grande revolta da população em relação à construção da referida prisão. Alguns afirmavam não recear fugas, pois sabiam tratar-se de uma construção super segura e bem monitorada. O problema alegado era a indesejada vizinhança de bandidos perigosos e, mais do que isso, a circulação de familiares e amigos dos mesmos que passariam a visitá-los, sob riscos de alguns parentes dos detentos fixarem residência em Mossoró objetivando facilitar as visitas.
Nas informações correntes, Babau e Givaldo eram apenas mais dois desses hóspedes indesejados. Pacientemente Luciano explicava que seus clientes eram pessoas de bem e estavam a sofrer uma grande injustiça. A noite avançava e nossos corpos começavam a demonstrar sinais de cansaço, havíamos madrugado e desde o amanhecer estávamos a cumprir uma intensa agenda de atividades em Natal, capital do Estado, antes de realizarmos o grande trajeto em direção ao sertão. Recolhemo-nos ao hotel e fomos dormir na expectativa do grande encontro.
No dia seguinte, 16 de junho, despertamos muito cedo. Nossa intenção era encontrarmos um computador com impressora para acessarmos notícias na internet referentes à prisão deles, bem como da outra e ainda mais absurda prisão de sua irmã Glicéria juntamente com Erúthawã, seu filhinho de apenas dois meses, ocorrida no dia 3 do mês em curso, fato até então desconhecido pelos dois. No próprio hotel conseguimos fazer as impressões. Produzimos assim um clipping no intuito de atualizá-los sobre o que estava ocorrendo extramuros durante os três meses em que se encontravam privados de informações. Entre as notícias selecionadas havia uma nota do Cimi que estampava a foto de Glicéria ao lado do presidente Lula segurando Erúthawã e uma notícia divulgada no site da Rádio Vaticana com a seguinte manchete “BRASIL: DENÚNCIA PEDE INTERVENÇÃO DA ONU PARA LIBERTAR ÍNDIA PRESA”, cujo texto referia-se aos informes enviados à ONU pela Justiça Global e Cimi denunciando as quatro prisões ilegais de três adultos e um bebê Tupinambá, além de agressões praticadas contra vários indígenas do referido povo por agentes da Polícia Federal.
Saímos em direção à penitenciária, como Luciano já a conhecia procurava me preparar psicologicamente para enfrentar o constrangimento ao qual seria submetido ao adentrar aquele espaço. Descreveu-me o lugar como uma espécie de prisão hollywoodiana. Imediatamente veio-me à mente a lendária fortaleza de Alcatraz que logo após ser transformada em um complexo penitenciário “serviu de cadeia para muitos indígenas marginalizados pelo processo de expansão norte-americano”. Orientou-me a deixar tudo no carro e portar apenas a cédula de identidade, pois os detectores de metais são ultra-sensíveis qualquer objeto, por menor que seja, pode fazer disparar um alarme. E lá estávamos nós, numa manhã sertaneja de sol ardente, em meio à vegetação da caatinga a contemplar a contrastante arquitetura daquela imponente fortificação com centenas de câmeras a nos observar, cercada por gigantescas grades de ferro e arame farpado, com grandiosas portas de aço, protegida por agentes fortemente armados. Lá dentro tudo é muito limpo e organizado, completamente diferente das imagens dos presídios superlotados com suas construções em ruínas que a TV costuma mostrar.
Em conversa com o diretor do presídio, Dr. Kércio Pinto, Luciano procura saber por que Babau e Givaldo ainda permanecem presos visto que no dia 08/06/2010, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, julgou o processo nº 0014723-10.2010.4.01.0000 / BA e decidiu por maioria conceder a ordem de habeas corpus para eles. O diretor responde que embora tenha recebido a ordem para libertá-los, fora informado pela Polícia Federal que havia outro mandado de prisão contra os mesmos, dessa vez concedido pelo juiz da Comarca de Buerarema na Bahia. Luciano manifesta estranheza em relação ao procedimento adotado pela Polícia Federal, externa ao diretor seu entendimento de que por não se tratar de processo da Justiça Federal a PF não deveria estar atuando, acrescenta que o referido mandado de prisão somente poderia ocorrer por intermédio de carta precatória do juiz de Buerarema para um juiz da Comarca de Mossoró. O diretor responde que reconhece não haver qualquer motivo para que os indígenas permaneçam ali e que já recebeu recomendação do juiz corregedor, Dr. Ivan Lira, para pô-los em liberdade, mas estava a aguardar uma orientação da Direção Geral do DEPEN em Brasília sobre uma possível transferência dos mesmos para cumprirem o novo mandado de prisão em outro local.
Feitos os esclarecimentos fomos ao encontro dos nossos amigos, os mecanismos de segurança são realmente muito rígidos, passa-se por revistas sucessivas e a cada etapa percorrida mais uma porta se fecha, tem-se a impressão de também estar sendo preso. Em uma das barreiras fomos informados que não poderíamos entrar com papéis, ficava assim sem utilidade o clipping por nós organizado. O quadro de pessoal, desde a direção aos mais simples funcionários, demonstra estar preparado para o exercício da função, confesso ter-me surpreendido com a eficiência e o tratamento recebido, pois já presenciei muito despreparo e má vontade por parte de funcionários de cadeias e presídios quando em visita a outros indígenas custodiados. Infelizmente trata-se de uma rara exceção, mesmo porque só existem quatro penitenciárias federais iguais àquela em todo país.
Estamos prestes a ultrapassar a última porta (23 no total segundo Luciano) antes de chegarmos ao parlatório, quando esta se abre avistamos do outro lado da parede de vidro Babau e Gil de pescoços curiosamente esticados no intuito de identificar quem seriam seus visitantes. Ao nos reconhecerem começam a saltitar na mais ingênua expressão pueril, de riso largo e polegares erguidos indicando que está tudo bem. Vestem calção e camiseta de malha de cor azul clara com a identificação de interno. O uniforme do presídio, parecido com aqueles das escolas públicas, os deixa ainda mais com cara de meninos. Mais uma porta se fecha atrás de nós. Agora somos quatro presos, dois de cada lado, os de cá em situação confortável de visitante, os do outro lado privados da liberdade. Temos direito a 60 minutos de conversa, a resistente parede de vidro garante o isolamento acústico dos dois recintos, nosso diálogo ocorrerá através de um único interfone que passa a ser disputado por nós quatro, generosamente Luciano me concede a oportunidade de ser o primeiro a fazer uso daquele meio de comunicação.
Começo a falar com Babau e peço-lhe desculpas por ter demorado tanto a visitá-los, interrompe-me dizendo-me que o tempo todo nós estamos presentes em seu coração, que ele e Gil sabem que há muitos amigos lá fora lutando por suas liberdades. Falo de minha surpresa em perceber tanta alegria nos dois, responde-me não haver motivo para tristeza, por que apenas os corpos podem ficar aprisionados, mais os espíritos são livres, não existem cadeias para eles, que a todo momento são visitados pelos encantados, pois esses não precisam de autorização para entrar no presídio, não se submetem a nenhuma ordem terrestre, que foram os encantados que mandaram os Tupinambá lutar por suas terras, que o território Tupinambá é lugar de morada dos encantados, por isso não podem abrir mão de nenhum palmo de terra por mais difícil que seja a luta e assim continua a falar. Suas palavras soavam-me como a maior expressão de fé e sabedoria e fizeram-me lembrar a expressão bíblica em epígrafe no início deste texto. Mas eu infelizmente era portador de mais uma má notícia, informei-lhe sobre a prisão de Glicéria e Erúthawã, sobrinho que ainda não teve o privilégio de conhecer por já se encontrar preso quando ele nasceu. Reage indignado, pergunta-me o motivo, explico tratar-se do episódio envolvendo um veículo da Companhia de Energia Elétrica da Bahia e ele passa-me a relatar em detalhes o ocorrido, a verdadeira versão dos fatos[2]. Informa-me que no dia anterior os dois foram interrogados por um delegado da Polícia Federal que esteve lá e lhe fez várias perguntas sobre o mesmo assunto, também queria explicações sobre um homicídio ocorrido no dia 23 de maio próximo na região de Buerarema, respondeu-lhe ser impossível prestar qualquer informação, pois se encontrava preso desde o dia 10 de março. Mas tínhamos que correr contra o tempo, os minutos se passavam, em seguida falei com Givaldo que expressava as mesmas convicções do irmão e trazia no rosto a mesma expressão de alegria. Aquele momento era também uma oportunidade para os dois se encontrarem, pois são mantidos em celas separadas e por questão de segurança se recusam a participar do banho de sol junto com os outros prisioneiros. Agora é a vez de Luciano, ele conversa com os dois, pergunta como estão sendo tratados, traz informações sobre processos e uma possível transferência deles, faz anotações[3] dos relatos de Babau e Gil. Quer saber quantos livros a mais Gil havia lido, pois em sua visita anterior já estava no 18º, ele responde que leu mais cinco, o advogado vibra com o bom desempenho de seu cliente. Por um momento parece não haver mais parede a nos separar, a comunicação flui de várias formas, expressões corporais, leitura labial, o pouco tempo é otimizado, os do lado de cá somos contagiados pela energia dos que estão no outro lado. Luciano havia solicitado ao diretor a autorização para nos encontrarmos num espaço onde nos fosse permitido “apertos de mãos e abraços para haver trocas de energia”, a solicitação foi negada, mas isso não impediu a comunicação energética. Se as paredes não impedem a entrada dos encantados, também não podem impedir a passagem da força por eles transmitida. De repente alguém bate à porta e informa que nosso tempo acabou.
Saímos de lá e retornamos à sala do diretor, os irmãos haviam se queixado que em suas celas não havia água, por isso passavam muita sede, o advogado informa o fato ao Dr. Kércio que responde categoricamente ser mentira. Justificou que em razão do racionamento de água, a bomba somente é ligada duas vezes ao dia, mas cada detento tem em sua cela um recipiente com capacidade para dois litros, podendo abastecê-lo cada vez que a bomba é acionada. Contudo para que não houvesse dúvidas, solicitou em nossa presença que o chefe do setor encarregado pelo fornecimento de água fizesse uma inspeção. Em poucos minutos obtém a resposta que realmente naquelas celas específicas, por motivo ignorado, não havia recipiente algum. Ordena que haja o abastecimento imediato.
Deixamos a Alcatraz Sertaneja em direção a Natal, por volta das 17 horas, encontrávamos-nos a cerca de
Os ânimos são acalmados, reflito sobre o encontro inesperado entre os dois jovens, naquele momento eles personificam as contradições do Sistema e ao mesmo tempo revelam as opções de vida feitas por cada um. Do lado de dentro da cerca, avistamos um veículo da Polícia Federal com vidros escuros, impossível ver seu interior, suspeitamos que Babau e Gil já estivessem lá dentro. Poucos minutos depois, a viatura passa ao nosso lado, nossa entrada é autorizada e vamos, mais uma vez, à sala do diretor. Lá encontramos o Delegado da Polícia Federal que estava no comando da operação. Luciano pede explicação e novamente externa suas críticas questionando a legalidade do ato, o delegado afirma estar agindo dentro da lei, o diretor da penitenciária se desculpa afirmando também ter sido surpreendido e que o cumprimento do mandado de prisão por parte da PF ocorrera poucos minutos antes, não tendo tempo para comunicar ao advogado. Somos então informados que Babau e Gil naquele momento estavam sendo transferidos para a carceragem da PF em Natal, devendo depois ser encaminhados para um outro local. Luciano ainda cogita retornar naquela noite, pondero sobre nossa condição física após quase nove horas de estrada e decidimos pernoitar
Esse relato é uma mistura de exercício catártico e depoimento testemunhal, motivado pelo desejo de registrar os acontecimentos e partilhar com os amigos e amigas que conosco sonham e lutam por um mundo mais justo. É também mais uma oportunidade de reafirmar nossa Utopia Libertadora na Certeza de que Dias Melhores Virão.
Brasília, junho de 2010.
Saulo Ferreira Feitosa
Secretário Adjunto do Cimi
Veja entrevista com Cacique Babau: http://www.youtube.com/watch?v=_MVK87MnlVc
[1] Luciano Ribeiro Falcão, advogado articulado à RENAP, atuando voluntariamente como advogado de Babau e Givaldo.
[2] Na verdade, a comunidade agiu em defesa do bem público, denunciando um desvio de finalidade. Havia um projeto através da Secretaria de Infra-estrutura do Governo da Bahia para eletrificação da comunidade de Serra do Padeiro, mas os funcionários da Companhia de Energia Elétrica resolveram mudar a destinação, utilizando-se do mesmo projeto para beneficiar outros destinatários não índios “mais merecedores”.
[3] Depois que chega ao parlatório o advogado recebe uma folha de papel e uma caneta para fazer possíveis anotações.