09/06/2010

Pedro, advogado e missionário

Dom Edson Damian

Bispo de São Gabriel da Cachoeira-AM

 

Pedro Fukuyei Yamaguchi Ferreira, 27 anos, filho de Paulo Teixeira Ferreira, deputado federal pelo PT-SP e da advogada Alice Yamaguchi Ferreira, chegou em São Gabriel da Cachoeira no dia 02 de março. Integrava o Projeto Missionário Sul 1 (dioceses de São Paulo) – Norte 1 (Amazonas e Roraima). Veio trabalhar como assessor jurídico da diocese e servir os Povos Indígenas que representam mais de 95% da população. Morava na casa do bispo, onde funcionava também seu escritório.

 

No dia 01 de junho, perto do meio dia, Pedro foi banhar-se no Rio Negro e foi arrastado pela correnteza. Seu corpo foi encontrado 48hs depois em Tapereira, a mais de 40 quilômetros de São Gabriel. Morte trágica, inesperada, prematura. Como entendê-la?

 

Com muitas lágrimas e emoção acompanhei a despedida dele em São Paulo. No dia 04/06 a Catedral da Sé ficou repleta de parentes, amigos, agentes da pastoral carcerária, desembargadores, promotores, juízes, advogados. No meio da multidão encontravam-se Eduardo Suplicy, Luiza Erundina, Michel Temer, Paulo Vanuchi, Francisco Witaker da Silva, Benedito Prezia, para citar apenas os que pude reconhecer.

 

Às 14hs, com Dom Angélico Sândalo Bernardino e 30 presbíteros, celebramos a Eucaristia. Mas sem o corpo presente. Uma avaria no avião que o transportava obrigou um pouso forçado em Nova Floresta, no Mato Grosso. O corpo chegou somente às 19:30hs e foi velado na catedral. No dia 05/06, às 08hs, o Cardeal Odilo Pedro Scherer presidiu a Missa de despedia e a encomendação. Às 10hs foi sepultado no jazigo da família, no cemitério da Vila Alpina. Enquanto cada um colocava um punhado de terra vermelha sobre o caixão, jovens advogados amigos entoavam o samba “Silêncio no Bexiga”, de Geraldo Filme:

 

Silêncio, o sambista está dormindo.

Ele foi, mas foi sorrindo

A notícia chegou quando anoiteceu

Escola, eu peço o silêncio de um momento

O Bexiga está de luto

O apito de Pato n’água emudeceu”.

 

Quem era o Pedro? Recebeu o nome em homenagem a Dom Pedro Casaldáliga. Seu padrinho de Crisma foi Dom Angélico Bernardino. Seus pais são membros da Fraternidade Secular de Charles de Foucuald, militantes nos movimentos sociais. Formou-se em direito pela PUC de São Paulo. Estagiou em grandes escritórios de advocacia, mas encontrou-se realmente durante os três anos em que atuou como assessor jurídico da Pastoral Carcerária sob a coordenação do Pe. Valdir João da Silveira. Foi neste serviço que nasceu o sonho de ser missionário na Amazônia. E o Pe. Valdir, meu amigo, não podendo mais retê-lo, encaminhou-o para ajudar na diocese mais longínqua, mais isolada, mais indígena e mais pobre do Brasil, no noroeste do Amazonas.  

 

Dom Bruno Gamberini, arcebispo de Campinas, representando os bispos de São Paulo, presidiu a missa de envio do Pedro. Estavam com ele o Pe. João Paulo da Silva, que também veio a São Gabriel e a Prof. Maria Soares de Camargo que foi para Roraima. Na ocasião o Pedro disse: “Esta decisão é fruto de um antigo desejo de sentir na pele o que as pessoas mais simples e esquecidas sentem. E a partir desta partilha, colaborar para a transformação da realidade”.

 

Pedro era baixo. Os olhinhos japoneses, herança da mãe, o tornavam parecido com os Povos Indígenas. Como os índios das 23 etnias do Rio Negro se consideram parentes, Pedro já tinha sido adotado como parentes deles. Era alegre, comunicativo, bem humorado, corintiano, apaixonado por samba e futebol. Na camiseta que deixou sobre a pedra antes de entrar no rio está escrito: “Corintians, aqui tem um bando de loucos que nunca vai te abandonar!”. No o dia em que chegou a São Gabriel, no fim da tarde, viu um jogo de futebol atrás da escola, ao lado da casa do bispo. Vestiu sua roupa de esporte e dirigiu-se para lá. Logo foi convidado para entrar no jogo. Como perceberam que jogava bem o contrataram para jogar no time da Vila Boa Esperança e participar de um torneio que iniciaria alguns dias depois. Camisa 10, goleador, não demorou para ser eleito capitão do time.

 

No dia seguinte acompanhei-o na visita a cadeia, onde sua vinda já era aguardada com grande expectativa. Passou a tarde conversando com cada presidiário. À noite relatou-me suas preocupações. Encontrou chefes de família retidos há muito tempo e o último júri popular havia acontecido há mais de cinco anos. Além disso, havia jovens envolvidos em pequenos delitos e uso de drogas. Não demorou para encontrar uma solução. Em comum acordo com a juíza e o Pe. Jorge, administrador diocesano, sugeriu que cinco deles fossem contratados para trabalhar na reforma da cúria, iniciada há poucos dias. A proposta foi aceita. E dos cinco jovens, apenas um desistiu. Pedro foi a sua procura até encontrá-lo e motivá-lo para ingressar na Fazenda da Esperança. Perguntei ao Pedro o que tinha combinado com eles pelo preço da liberdade. Foram duas coisas. Não poderiam decepcionar o bispo que estava apostando neles, inclusive oferecendo um emprego. E se precisassem de algum dinheiro, não deveriam roubar nem assaltar. Era só pedir que ele daria um jeito.  

 

Em pouco tempo tornou-se conhecido e merecedor da confiança de todos. Ele mesmo, em carta dirigida aos amigos, descreve o seu dia a dia: “Aqui em SGC a vida está bem. O fato de respirar um ar puro, tomar banho no rio, olhar a selva, jogar bola, morar do lado do trabalho, tem sido importante. Tenho trabalhado bastante. As pessoas têm me procurado, querem falar com o advogado da Diocese, ficam aliviadas quando sabem que eu não cobro pelo trabalho. Procuram por todas as demandas, cíveis, criminais, familiares etc. Aqui faltam profissionais de todas as áreas! Tenho feito semanalmente visita ao presídio. Isso tem me possibilitado estender as visitas aos familiares e assim conheço a realidade da vida deles, um pouco da cultura e também a miséria que atinge a cidade, sobretudo aqueles que vêm das comunidades do interior. A Pastoral Carcerária tem me inserido também no contexto local. Talvez o principal problema daqui seja o álcool e o crescente uso de drogas pelos jovens – pasta base de cocaína que vem da Colômbia. Isso gera muita violência, algumas mortes, famílias destruídas. Com o Dom Edson visitamos  a nova promotora de justiça e conversamos sobre justiça restaurativa. Ela se mostrou aberta a essa justiça. Eu quero trabalhar para mostrar que cadeia não funciona e que temos de achar outras soluções, sobretudo com os Povos Indígenas, que têm peculiaridades culturais próprias”.

 

Bastam estas palavras para perceber as lutas e os sonhos do Pedro. Ele ficava indignado quando ficava sabendo que advogados cobravam verdadeiras fortunas para defender pequenas causas. E as famílias pobres deviam desfazer-se da casa, do terreno, e outros bens indispensáveis para sobreviver.

 

Na hora de reestruturar a rádio comunitária Novo Milênio, Pedro foi eleito vice-presidente para trabalhar ao lado da Ir. Claudina, assessora da Pastoral da Juventude. Com muita criatividade e audiência apresentava um programa musical denominado “Samba e Cidadania”.  

 

A mãe Alice, após a Missa na Catedral, ainda arrancou forças para dar este testemunho: “Quando soube que o Pedro tinha desaparecido no Rio Negro tive a sensação de que não resistiria diante de tamanha dor. Mas, na medida em que fui recebendo visitas, telefonemas, abraços de tantas pessoas amigas que não via há tempo, esta rede humana de solidariedade foi me reanimando e consolando. Percebi que meu filho era amado e tinha ajudado a muitas pessoas. Além disso, quem sou eu para me revoltar contra Deus? O Pedro estava onde desejou trabalhar como voluntário. Através de freqüentes telefonemas sempre me dizia que estava muito contente. Meu filho morreu feliz no meio do rio, da floresta, entre os Povos Indígenas. Apesar de sua breve existência, ele soube viver tão intensamente que tenho a impressão de que ele viveu 100 anos em 27”. Enquanto escutava estas comoventes palavras, pensei comigo: é verdade, no coração da Amazônia, o Pedro viveu três anos em três meses!

 

Passei o dia 06/06 com a família do Pedro em sua residência. Paulo e Alice, Caio, Ana, Manuela, Laís e Júlia. Entre lágrimas e risos, olhamos fotos, vimos imagens, escutamos canções que recordavam o Pedro, Pedrinho, Pedrão. Fizemos a memória da passagem meteórica do Pedro que soube amar e servir as pessoas e as grandes causas precursoras de “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21). Na hora do almoço, preparado em mutirão, fui convidado a ocupar o lugar em que o Pedro costumava sentar-se. Chegou também o Fernando Haddad, ministro da educação. Começamos a refletir como levar adiante a luta do Pedro e que projetos concretos realizar em São Gabriel da Cachoeira. É a semente preciosa e fecunda do Pedro que, mal caída na terra, já começa a produzir frutos (Jo 12,24).

 

Pedro compreendeu e viveu a proposta radical de Jesus: “Quem quiser salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará” (Mc 8,35). Pedro testemunhou que a vida não é um capital para ser acumulado, mas um dom de Deus para ser partilhado. Vida a serviço da vida dos pobres, dos Povos Indígenas para pagar-lhes a imensa dívida social que lhes devemos pelos massacres e genocídios perpetrados desde o “descobrimento”.

 

Pedro andou pela vida conduzido pelas bem-aventuranças dos “que têm fome e sede de justiça” (Mt, 5). Por isso já escutou de Jesus: “Vem bendito de meu Pai… Tudo o que fizeste a um destes mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizeste! Recebe em herança o Reino que meu Pai te preparou desde a criação do mundo” (Mt 25, 34 e 40).

 

Dom Edson Damian

Bispo de São Gabriel da Cachoeira-AM

 

Fonte: Diocese de São Gabriel da Cachoeira (AM)
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