Carta do rio das Mortes, por José Maria Paratse
Não sabemos quem deu o nome a esse rio. O mesmo leito que jorra já previa, prenunciava que o rio passaria por essa transformação, por essa agressão humana. O rio é manso, não tem como se defender. O rio que dá vida há milhares de anos a peixes, sucuri, pacas, capivara e no qual o próprio homem saciava sua sede, agora está prestes a morrer, sem o direito de se defender.
Conhecemos nossos irmãos Xavantes, guerreiros prontos para defender o tão amado rio, antes que morra. Não há como substituir o valioso leito, em troca da construção de barragens de Água Limpa e Toricoeje. Já tivemos muitas experiências de muitas ofertas enganosas, indenizações pelas perdas irreparáveis. Nunca tivemos o ressarcimento para que possamos viver com dignidade humana. É comum ouvirmos discursos que falam da questão da dignidade humana. Sabemos até mesmo que a dignidade humana é a base da Declaração Universal dos Direitos Humanos – feita pela ONU em 1948. Também o Rio das Mortes tem sua dignidade e o direito de seu leito transcorrer livremente nos cerrados mato-grossenses.
A Constituição Federal de 1988 no Capítulo VI, Do Meio Ambiente, artigo 225 diz “Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial qualidade de vida, e cabe à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Nós Xavantes sempre vivemos ecologicamente, pois lidamos bem com a natureza, a mãe natureza que nos oferece tantas iguarias para vivemos dignamente. Agora com a chegada da sociedade envolvente, com projetos de empreendimentos, construções, gera a destruição de milhares de anos que a natureza lapidou e conservou com afeto e transforma num canteiro de obras. Cumprindo a lei da nossa Constituição é nosso dever defendê-lo e preservá-lo no presente e para as futuras gerações do nosso querido Brasil. Com essa construção terá o desequilíbrio das comunidades e principalmente para nós Xavante haverá falta de diálogo, falta de respeito a nós Xavante e, certamente, vai provocar a prostituição, alcoolismo e todo o tipo de conturbação que poderá desequilibrar nossa cultura, a nossa organização, o Povo Xavante. Se reagirmos contra o empreendimento hidroelétrico queremos a garantia da liberdade de formação de opinião e de estarmos livres de ameaças de qualquer tipo.
A declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas em seu artigo 29 diz: “Os povos indígenas tem direito à conservação e proteção do meio ambiente”. Somos verdadeiros ambientalistas. Exercemos o nosso papel ecologicamente correto. Vamos defendê-lo de corpo e espírito humano como guardiões guerreiros Xavantes do santuário de água cristalina do Rio das Mortes.
A voz calada do rio manso que há milhares de anos percorre o leito agora sofre a imposição, em nome do progresso. E nós Xavante, a nossa voz em defesa do rio sempre caminhará. A voz da terra, a voz do vento, dos campos, florestas e rios, como a luta não se apagará. Seus sistemas, que se dizem proteção ambiental, sem ser ecologistas, são sistemas erroneamente enganosos. Tais ambientalistas jamais serão compreendidos pela modernidade.
O conceituado INSTITUTO DO MEIO AMBIENTE E DE RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, O IBAMA, é o primeiro que dá licença para implementação da obra a ser construída. Em vez de defender o meio ambiente, a natureza, o rio, toma sua decisão, extrapolando e desrespeitando a linda natureza e leis feitas pelo homem. E a própria FUNAI auxiliando a construção, deve nos informar a nós indígenas Xavante, independentemente de estar localizado dentro ou mesmo fora de terras indígenas, para que tenhamos nossa decisão e a indenização de inclusão de nossos direitos originários.
Como determina o Capítulo VIII, Dos índios, Artigo 231 § 3º, “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluindo os potenciais energéticos, só podem ser feitos com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei”. No Brasil colônia os nossos antepassados nunca tiveram participação dos resultados de divisa. Nunca tivemos no centro da discussão. Nas decisões sempre ficamos à margem, fora de interesse. Só tivemos exploração, aproveitando-se de nós, enriquecendo-se à nossa custa.
Na década de 70, foi construída, pavimentada, asfaltada a BR 070, que passa em duas terras indígenas: Terra Indígena Meruri (bororo) e Terra Indígena de Sangradouro, essa dos nossos irmãos Xavante. Não teve acordo, contrato, convênio e indenização ou simplesmente pedágio. Até o momento, essas comunidades não foram contempladas ou beneficiadas. É assim o atropelamento, a irresponsabilidade dos empreendedores e governantes, tanto do Governo Federal, Estadual e Municipal e fica por isso mesmo sem o mínimo interesse de nos incluir nos projetos.
No caso de Belo Monte, foram apresentadas algumas ações judiciais relativas ao descumprimento do dever da consulta do Congresso Nacional. São umas ações contraditórias ao nosso interesse e tememos que haja mais uma vez a falta de respeito em nos ouvir. Somos contrários ao empreendimento hidrelétrico do Rio das Mortes. Aí havemos de saber a valorização da natureza, da flora e fauna exuberante das margens do valoroso rio manso e interpretaremos as leis do nosso país que trata do respeito à natureza, lei que se torna obsoleta, ultrapassada e desrespeitada pelo poder público do nosso país.
Mas continuaremos ativos defensores da natureza. O Rio das Mortes nos dá vida, a preciosa água que mata a sede rejuvenesce o guerreiro Xavante.