14/04/2010

Avatar II: a luta contra Belo Monte

por Rodolfo Salm    

 

James Cameron, diretor de Titanic e da badalada aventura ecológico-espacial Avatar, esteve em Altamira no final de março para conhecer a região onde se pretende construir a hidrelétrica de Belo Monte. Dias antes, durante sua participação no Fórum Internacional de Sustentabilidade em Manaus, nos dias 26 e 27, o cineasta havia "implorado" ao presidente Lula que reconsiderasse a decisão da construção da monumental obra no Xingu. No dia 29 ele dirigiu-se de barco à Terra Indígena Arara, da Volta Grande do Xingu. Lá, reuniu-se com índios de várias etnias, incluindo os Kayapó, e mais tarde encontrou-se conosco, representantes da universidade, da Igreja, dos movimentos sociais e dos ribeirinhos, os não-índios que também lutam contra a concretização deste projeto desastroso. Cameron relatou-nos que ficou sensibilizado com a preocupação dos índios com o rio, a floresta e as futuras gerações. E que dissera a eles que o sucesso mundial do seu novo filme abre-lhe, por algum tempo, a possibilidade de ajudá-los, divulgando seus temores na luta contra Belo Monte em larga escala.

 

Para municiá-lo com informações importantes para esta luta, falamos de nossas preocupações. Eu fiz questão de lembrar a extrema fragilidade ecológica da floresta da bacia do rio Xingu, fragilidade esta relacionada à sua forte sazonalidade climática, que faz com que nos longos períodos muito secos a floresta queime com facilidade. Assim, as grandes ondas migratórias que inevitavelmente acompanhariam a construção da barragem e a multiplicação das atividades econômicas destrutivas para a floresta que acompanhariam a infra-estrutura criada levariam, em poucos anos, à destruição de metade de toda a floresta amazônica. E que isso tudo faz da campanha contra Belo Monte a mais importante empreitada ecológica da atualidade. Disse ainda que ele, hoje, trabalhando com um meio de comunicação tão poderoso quanto o cinema, poderia ter uma importância ainda maior que Sting teve em 1989, quando o músico, aliado a importantes líderes Kayapó como Raoní e Paiacan, atraiu a mídia internacional para a demonstração que redundou na suspensão do financiamento do Banco Mundial para esta mesma obra desastrosa. Ao que ele me respondeu que se encontraria com Sting dentro de alguns dias, e poderíamos assim ter os dois unidos na causa.

 

A reação às declarações de Cameron foi imediata. O jornalista Sérgio Barreto Motta publicou em seu blog no Monitor Mercantil Digital, já dia 29, um artigo que começa assim: "Os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU lideram na produção e exportação de armas e controlam 95% do arsenal nuclear da Terra. A Inglaterra participou de investidas polêmicas, como a Guerra do Iraque; os Estados Unidos foram o único país do mundo a jogar bombas atômicas em seres humanos. A China ocupou o Tibet, mas o premiado diretor de Exterminador do Futuro, Titanic e Avatar, James Cameron, vem ao Brasil dizer que não deve ser construída a hidrelétrica de Belo Monte".

 

À parte o completo descomprometimento deste argumento com qualquer sentido mínimo de lógica, é curiosa (e, por que não, apropriada) a comparação do jornalista da construção da hidrelétrica de Belo Monte com algumas das maiores tragédias da humanidade, em sua lamentável defesa de que também poderíamos cometê-las. Para o jornalista, Cameron, ao somar-se aos que protestam contra o projeto Belo Monte, "adverte o Brasil para não crescer, ou então para crescer com base em óleo e carvão, ou mesmo com base nuclear, que não gera gás carbônico, mas cujo lixo ainda não tem destino certo no planeta". Como se a energia de Belo Monte, que tem como objetivo final principalmente a mineração nesta região (e a conseqüente destruição da Amazônia), fosse nos trazer desenvolvimento econômico. Não traria.

 

Essa energia seria usada, como na história de Avatar, para atender a interesses alienígenas, voltados à exploração da bauxita, o nosso "unobtainium" (fictício minério valiosíssimo do filme), por grandes mineradoras multinacionais que estão se instalando rapidamente em toda a região Amazônica. Esta energia, na verdade, seria exportada de forma bem baratinha, embutida no preço de minérios, de cujo lucro veríamos uma ínfima parte. Ao invés de gerar desenvolvimento, essa obra seria um peso morto nas costas do contribuinte e a rápida destruição da Amazônia traria mais subdesenvolvimento, mudanças climáticas, seca e fome para o resto do país, uma vez que, por exemplo, boa parte das chuvas que permitem a agricultura do estado de São Paulo desloca-se por "rios voadores" conduzidos por correntes atmosféricas a partir da floresta amazônica.

 

O jornalista prossegue: "O Brasil recebeu essa dádiva, que é a possibilidade de gerar energia para o desenvolvimento simplesmente com o uso da água. E essa estrela internacional, colecionador de prêmios, vem a seminário em Manaus trazer a mensagem de que a usina de Belo Monte faz mal ao planeta". Corrijo o articulista: na verdade, a dádiva de nosso país é ter em seu território a maior parte da maior floresta tropical do mundo, e não água para gerar energia para a exploração destrutiva de seu subsolo. E Cameron não veio ao Brasil dizer o que devemos fazer. Deve, isso sim, ao sair daqui, dizer ao mundo que nós, brasileiros que vivemos na região, não queremos a usina porque ela faria muito mal a nós e ao planeta. Em Manaus, James Cameron comparou a luta dos Kayapó que se opõem à usina à dos Na’vi, povo criado por ele no filme e que vive na floresta de Pandora. Antes da vinda do diretor ao Brasil, Marina Silva já fizera a mesma comparação: "Quem pensa que a história relatada no filme Avatar só pode ocorrer em outro planeta, engana-se: Pandora também pode ser aqui", em referência a Belo Monte.

 

 

Sou mais pessimista que James Cameron quanto à tecnologia e o futuro da humanidade. Em 2154, não acredito que estaremos chegando a galáxias distantes em naves espaciais colossais para roubar energia de planetas ainda virgens. Estaremos na verdade aqui, definhando. Seremos uma espécie ameaçada de extinção pelo longo processo de degradação ambiental e por termos exaurido e contaminado nossas principais fontes de vida e energia. E este processo teria na construção da hidrelétrica de Belo Monte um marco fundamental do barramento de todos os rios da Amazônia, e da consumação da sua destruição completa. Algumas analogias presentes no filme são perfeitamente didáticas. A minha preferida é a observação da Dra. Grace Augustine, a botânica interpretada pela atriz Sigourney Weaver que vive em Pandora há 15 anos, em relação ao Unobtainium: "a riqueza deste mundo não está no solo, está em toda a nossa volta, os Na’vi sabem e estão lutando para defender isso".

 

Recentemente, estive no local exato onde se pretende construir a muralha que barraria o Xingu, na altura da ilha Pimental. Sobre a ilha, por onde a barragem passaria cruzando o rio, há uma imensa árvore morta que nos dá uma idéia aproximada da altura do possível paredão de 30 metros (ver foto acima). Hoje, trata-se de uma região paradisíaca, incrivelmente preservada.

 

Passando de barco pela área é difícil acreditar que dentro de poucos anos pode haver ali um muro da altura de um prédio de dez andares. E que, acima da muralha, o rio que corre daria lugar a um lago podre e parado e, abaixo dela, o Xingu, com sua água desviada para canais de derivação, ficaria permanentemente quase seco, transformando suas margens em desertos, e expondo o seu leito aos garimpeiros e enxames de pragas que se multiplicariam nos pedrais e poças abandonadas.

 

O desfecho desta história real é difícil de antecipar. Apesar do leilão marcado para as próximas semanas, não há nada definitivo sobre Belo Monte. Nós não temos aqui na Terra aqueles seres gigantes alados, convocados em Pandora para auxiliar os Na’vi na sua luta final contra os terráqueos alienígenas. Mas não faltam guerreiros dispostos a matar e a morrer pela vida do rio, que também é sagrado para os que vivemos aqui. Felizmente, parece que teremos importantes aliados na tarefa de levar esta história ao mundo. E eles estão começando a se mexer.

 

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

 

Fonte: Correio da Cidadania
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