12/04/2010

Considerações a respeito da situação Maxakali

Nesses dois últimos meses, temos acompanhado com bastante preocupação as notícias sobre o grupo indígena Maxakali, localizado na região do vale do Mucuri em Minas Gerais, veiculadas nos jornais de circulação regional e em alguns canais televisivos – Estado de Minas, Hoje em Dia, O Tempo, Rede Minas, entre outras. Reportagens que denunciam “a situação de miséria e de abandono e o conseqüente risco de iminente extermínio a que se encontra essa população”.

 

Recorrentemente, os Maxakali têm sido descritos na mídia e nos meios indigenistas a partir de um paradoxo interessante: De um lado são caracterizados a partir da sua “resistência cultural” – o monolínguismo, a intensa vida ritual. Por outro lado, como o reverso dessa dimensão, é estampado na imprensa e na mídia televisiva um quadro bem mais sombrio de violência, alcoolismo e miséria. A partir dessa perspectiva, os Maxakali são considerados pelos órgãos que atuam em seu território e pela população das cidades do entorno, “índios problema”, “violentos” e “perigosos”.

 

Mais uma vez, acompanhamos uma nova reedição de reportagens nesse teor – inicialmente, deflagradas pelo surto de gastrenterite que vitimou quatro crianças e levou ao internamento mais de oitenta pessoas, o que motivou a visita da Procuradoria da República Federal de Minas Gerais ao território Maxakali para uma inspeção, preocupada com a proteção e o bem estar do grupo. Iniciativa essa, cabe aqui ressaltar, extremamente louvável e necessária. A partir de um quadro, classificado como resultante da “invisibilidade social” dessa etnia, foram expedidas por essa instituição cinco recomendações – duas à Fundação Nacional da Saúde (FUNASA), uma à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e duas às polícias Militar e Civil de Minas Gerais para a resolução imediata dos problemas levantados. No que pese a oportuna e necessária iniciativa dessa instituição no que se refere à situação que se encontra o grupo Maxakali, algumas considerações quanto às recomendações e ao contexto que as motivaram, precisariam ainda ser consideradas.

 

A situação dos Maxakali dificilmente poderia ser configurada como de “invisibilidade social”. Antes pelo contrário, os Maxakali vêm freqüentando de forma recorrente, embora intermitente, as páginas e as telas da mídia de circulação regional e nacional há várias décadas e essas se caracterizam sempre pelas mesmas denúncias – a situação de miséria a que se encontra submetida essa população e o abandono por parte do poder público e da sociedade nacional. Vale ressaltar que a iminente “desaparição dos Maxakali” – sempre anunciada desde décadas – apesar do evidente crescimento demográfico que apresenta essa população[1] tem sido o combustível para a implementação dos inúmeros projetos de cunho salvacionistas que pretendem resolver o “problema Maxakali”. Este cenário de ativismo inflacionário[2], super aquecido, particularmente nas duas últimas décadas, pelo excesso de estímulos e intervenções a partir de políticas de orientações díspares, desenvolvidas por parte das mais diversas instituições, tem como resultado uma super exposição dos Maxakali. Em proporção direta ao assédio sofrido através da atual avalanche de ações e intervenções institucionais promovidas pelos seus „salvadores, tem ocorrido um desequilíbrio na delicada homeostase entre a sociedade Maxakali e a sociedade nacional. Desequilíbrio esse que se evidencia no acirramento da violência interna e no aprofundamento do quadro de desnutrição e dependência.

 

O consumo do álcool entre os Maxakali sem dúvida é uma questão extremamente preocupante, registrada a partir de relatos que datam de várias décadas atrás[3], contudo, esse é um problema que deve ser compreendido de forma estrutural. Devem ser buscadas soluções mais atentas ao universo cultural Maxakali e a todas as implicações e significados que esse consumo e a decorrente expressão da violência que implicam. Apenas a repressão policial ostensiva, sem a devida consideração destas dimensões e dos contextos de relações sociais que essas implicam, poderia provocar o acirramento das tensões internas ao grupo, em um cenário por si só já bastante explosivo. O que resultaria no agravamento dos próprios conflitos e dos confrontos violentos, como experiências anteriores assim já o demonstraram.

 

A proposta de construção de instalações sanitárias e a conseqüente necessidade de fixação territorial das aldeias e a realização de “campanhas educativas” para a introdução de novos hábitos higiênicos não se configuram como soluções capazes de produzir resultados imediatos e sequer, talvez, sejam soluções adequadas para as próprias pessoas as quais elas se dirigem. Elas implicam em concepções culturais completamente divergentes – entre elas a própria noção da pessoa e do corpo humano – e resultam ainda em novas formas de dinâmicas sociais, Embora essas recomendações tenham sido apresentadas como novidades, medidas dessa mesma natureza já foram exaustivamente tentadas, contudo não apresentaram resultados satisfatórios. Várias instalações sanitárias construídos foram abandonadas, devido aos afastamentos das aldeias ou por falta de manutenção e limpeza, em função de formas culturais divergentes de apropriação do espaço. Fossas assépticas abandonadas acabam transformando-se em focos de infecção pelo acúmulo de insetos.

 

Enfim, padrões culturais não são modificados através de cursos de educação sanitária, novos equipamentos ou repressão policial. O fator cultural, considerado como um empecilho a ser removido é antes, o determinante para a proposição de soluções. Soluções essas que devem ser construídas tendo como base a formulação dos problemas nos termos da própria sociedade a ser impactada. Esses são problemas que não são facilmente construídos e identificados como tais, por um olhar estrangeiro. Portanto, faz-se necessário a constituição de um diagnóstico abrangente sobre o grupo que leve em consideração as relações entre os vários aspectos de sua cultura e sociedade, de forma a se constituir uma compreensão melhor de um processo que, de resto, vem ocorrendo a mais de um século de contato intenso com a sociedade nacional.

 

Finalmente cabe ressaltar o gravíssimo problema de ordem fundiária a que se encontra submetida essa população, confinada em um território claramente insuficiente para a manutenção de seus próprios padrões culturais; situação agravada pelo acentuado crescimento da população Maxakali, o que aumenta a pressão sobre o território e os seus recursos já profundamente depauperados. Trata-se de um problema que já de há muito exige o seu enfrentamento responsável por parte das autoridades competentes, posto ser evidente que sem um tal enfrentamento quaisquer medidas no sentido de possíveis soluções se revelarão, como se têm histórica e repetitivamente revelado, inócuas.

 

Brasília, 08 de abril de 2010.

 

Myriam Martins Álvares

Membro da CAI

 

José Augusto Laranjeiras Sampaio

Membro da CAI

 

João Pacheco de Oliveira

Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas

Associação Brasileira de Antropologia/ABA

 



[1] Em 1999, contavam com uma população de 800 pessoas, em 2004, esse número passa para 1208. Em 2009 o contingente populacional atinge 1500 pessoas. (Dados: FUNASA/DSEI-MGeES).

[2] Além dos órgãos que atuam permanentemente na área – FUNAI e FUNASA – que possuem seus próprios programas de “recuperação” dos Maxakali, outros programas governamentais, de Ongs ou de Universidades estão também atuando entre o grupo. Entre eles: A “Carteira Indígena – Projeto Fome Zero e desenvolvimento sustentável em terras indígenas” implementado pelo MDS/MMA; Fornecimento de Cestas Básicas pelo MDS; o “Programa Formação de Professores Indígenas – PIEI/MG”, nível 2º. Grau, da SEE de MG; o curso de 3º. Grau “Formação Intercultural de Professores – Licenciatura Indígena – FIEI/MG” da Faculdade de Educação/ UFMG; o “Curso de Português para Jovens e Adultos” das SME de Santa Helena de Minas e de Bertópolis; o “Programa de Combate a Desnutrição Infantil” FUNASA, ainda da FUNASA através do VIGISUS, Projeto de Piscicultura, em parceria com a FUNAI; o projeto de preservação ambiental e reflorestamento: “Queremos a Mata de volta” da Universidade de Lavras, em parceria com o CIMI e apoio do IEF; o “Programa de combate ao Alcoolismo” da Universidade de Uberlândia; o “Programa de Assistência aos Maxakali” da Missão Novas Tribos, entre outros. Além desses projetos, encontram em andamento diversas pesquisas nas áreas de antropologia, etnomusicóloga, lingüística, biologia, epidemiologia, odontologia.

[3] Curt Nimuendajú em 1958 e Marcos Rubinger na década de 60.

Fonte: Associação Brasileira de Antropologia / ABA
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