Comissão de jurisprudência do STF julga Proposta de Súmula Vinculante 49 inadequada e pede arquivamento
“Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.”
A proponente afirma que, mesmo após a consolidação do entendimento – explicitado na referida Súmula 650 – quanto à impossibilidade de se atribuir à União a propriedade de áreas de aldeamentos extintos apenas ocupados por indígenas em passado remoto, “o tema continua a ser objeto de acesa controvérsia, na medida em que ainda suscita impugnações, mesmo em sede de recurso extraordinário interposto perante o próprio Supremo Tribunal Federal” (fl. 5). Indica, nesse sentido, dois pronunciamentos em que as Turmas desta Casa, ao decidir agravos de instrumento sobre essa específica matéria, invocam a jurisprudência repisada e aplicam o verbete acima apontado.
Assevera que, no recente julgamento da Petição 3.388, o Plenário desta Corte, além de ratificar o entendimento consolidado na Súmula 650, “definiu que a ocupação indígena permanente deve ser verificada na data da promulgação da Constituição de
Defende, a partir daí, que a expressão “ocupação em passado remoto”, constante da Súmula 650, deve ser entendida, para efeito dos arts. 20, XI, e 231, § 1º, da Constituição Federal, como toda presença indígena em determinada terra não mais verificada em 5 de outubro de 1988. Sustenta, por isso mesmo, que “o processo de demarcação deve atentar para a necessidade de comprovação da posse da área na data da promulgação [da Constituição] de
Busca a proponente, assim, motivar a necessidade da súmula vinculante pretendida com fundamento na alegação de que a Administração Pública, baseando-se no expresso resguardo da Constituição Federal às terras tradicionalmente ocupadas pelos índios (arts. 20, XI, e 231, § 1º), tem adotado procedimentos voltados à demarcação de reservas em terras que não estavam mais ocupadas por comunidades indígenas quando da promulgação da Carta de 1988.
Justifica, por fim, a edição de súmula requerida sob o argumento de que a ratio presente nos julgados que aponta “tem encontrado resistências no âmbito do Poder Judiciário” (fl. 7).
Após defender sua legitimidade ativa e a existência da necessária pertinência entre os interesses que persegue e as questões tratadas na presente proposta externa, requer a edição de súmula vinculante que enuncie que “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos antes de 5 de outubro de 1988, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto” ou, alternativamente, que reproduza o teor da Súmula 650 da Jurisprudência desta Casa, que dispõe que “os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto”.
Publicado edital para ciência de eventuais interessados, manifestaram-se o professor Jorge Eremites de Oliveira e o advogado Wilson Pereira Rodrigues. Também se pronunciaram nos autos as seguintes entidades: Fundação Nacional do Índio – FUNAI, representada pela Procuradoria-Geral Federal, Sindicato e Organização das Cooperativas Brasileiras no Mato Grosso do Sul, Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de Mato Grosso do Sul, Município de Ilhéus/BA, Federação das Indústrias do Estado de Mato Grosso do Sul, Associação dos Municípios de Mato Grosso do Sul e Associação Brasileira de Pecuária Orgânica. Por fim, manifestaram-se, em uma única peça processual, as seguintes entidades: Conselho Indigenista Missionário, Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul, Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira e Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo.
2. Cabe a esta Comissão de Jurisprudência, nos termos do art. 1º da Resolução STF 388, de 5.12.2008, verificar a adequação formal das propostas de edição de súmula vinculante, averiguando, entre outros requisitos, a presença de fundamentação e instrução do pedido, a legitimidade ativa do proponente e a efetiva existência de reiteradas decisões desta Casa sobre a questão constitucional posta em evidência.
No presente caso, busca-se a edição de enunciado vinculante tomando-se como ponto de partida texto de súmula de jurisprudência preexistente, aprovado pelo Plenário desta Suprema Corte em 24.9.2003. Porém, conforme bem demonstra toda a fundamentação lançada na peça inicial, a proponente, valendo-se de manifestações mais recentes deste Supremo Tribunal, procura obter novo pronunciamento vinculante em matéria que extrapola em muito o assunto encerrado na Súmula 650.
Veja-se que o leading case (RE 219.983, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 17.9.1999) e todos os demais julgados subseqüentes que deram origem à Súmula 650 do STF trataram, única e exclusivamente, sobre a impropriedade do reconhecimento, como bens da União (CF, art. 20, I e XI), de imóveis urbanos usucapiendos que já haviam feito parte, num passado distante, de áreas de antigos aldeamentos indígenas, que foram, segundo definição presente no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, “povoaç[ões] de índios com direção ou administração exercida por missionários ou autoridades leigas”.
Não foi por outro motivo que o eminente Ministro Marco Aurélio, ao proferir seu douto voto de relator no RE 219.983, deixou expresso que aquela discussão não guardava relação alguma com o tema da demarcação de reservas indígenas, tendo S. Exa., ao rejeitar precedente invocado pela Procuradoria-Geral da República, ressaltado “a impertinência da evocação, (…) porquanto nele se fez presente controvérsia a envolver terras demarcadas e habitadas por indígenas”.
Portanto, considerado o preciso alcance material da Súmula STF 650, parece evidente não haver mais atualidade na discussão que a originou, dado o escasso número de decisões colegiadas e monocráticas proferidas por esta Corte sobre o tema nos últimos anos, que apenas reconheceram, sem maiores aprofundamentos, a mera incidência do enunciado que sumula a jurisprudência já há muito firmada (AI 307.401-AgR, rel. Min. Cezar Peluso, 1ª Turma, DJ de 29.4.2005; AC 1.005-QO, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 9.12.2005; AI 437.294-AgR, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24.3.2006; AI 586.419, rel. Min. Cármen Lúcia, decisão monocrática, DJe de 27.11.2008; e AI 455.843, rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão monocrática, DJe de 15.12.2009).
3. Porém, a proponente busca, claramente, obter uma nova e mais ampla dimensão do texto sumular, desvinculando-o, por completo, da restrita questão jurídico-constitucional que o originou.
Pretende, na verdade, fazer surgir pronunciamento em matéria de demarcação de terras indígenas que estabeleça de imediato, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a impossibilidade da deflagração do processo administrativo-demarcatório que tenha como objeto terras que já não estavam mais ocupadas por grupos indígenas no exato momento em que foi promulgada a Constituição Federal, ou seja, em 5.10.1988.
Invoca, para tanto, conclusões alcançadas pelos eminentes Ministros Ayres Britto e Menezes Direito nos brilhantes votos que proferiram no julgamento plenário da ação popular que examinou a constitucionalidade e a legalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, situada no Estado de Roraima (Pet 3.388, DJe de 25.9.2009). Destaca, das referidas manifestações, trechos
É preciso festejar, certamente, o início de um efetivo enfrentamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, dessa delicada e controvertida matéria, referente à baliza temporal necessária para que o Estado brasileiro reconheça, entre outros pressupostos, determinada terra como de tradicional ocupação indígena. Contudo, é inegável a constatação de que essa questão ainda não se encontra totalmente equacionada, tendo o próprio Ministro Ayres Britto, no voto que proferiu como relator da Pet 3.388, apontado para outras importantes variáveis a serem consideradas. Ponderou S. Exa., por exemplo – ao referir-se às comunidades indígenas que foram forçadas a deixar as suas terras por terem sido alvo de diversas modalidades de violência –, que “a tradicionalidade da posse nativa, no entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de
A deliberação sobre a edição de enunciado de súmula a respeito do assunto ora tratado dependeria, dessa forma, da existência de uma inequívoca consolidação jurisprudencial da matéria no exato sentido pretendido pela ora proponente.
Falta ao presente caso, à toda evidência, o requisito formal da existência de reiteradas decisões desta Casa sobre essa complexa e delicada questão constitucional, que se encontra, felizmente, em franco processo de definição. Cite-se, por exemplo, a ACO 1.383, rel. Ministro Marco Aurélio, e o MS 28.555, rel. Min. Ellen Gracie, feitos nos quais o tema ora em debate já foi preliminarmente revolvido em sede liminar monocrática (DJe de 28.5.2009 e DJe de 11.2.2010), o que permite vislumbrar-se, num futuro próximo, seu pleno enfrentamento quando do julgamento de mérito desses processos pelo Plenário desta Casa.
4. Ante todo o exposto, por não ter sido satisfeito requisito indispensável para sua regular tramitação – seja pela total inadequação do uso de súmula de jurisprudência materialmente circunscrita a tema diverso daquele tratado na proposta, seja pela inexistência de reiteradas decisões que tenham dirimido definitivamente todos aspectos de tão controvertida questão constitucional –, manifesta-se esta Comissão de Jurisprudência pela inadequação formal da presente proposta externa de edição de súmula vinculante e, por conseguinte, pelo seu imediato arquivamento.
À Secretaria, para que encaminhe estes autos à Presidência do Supremo Tribunal Federal.
Publique-se.
Brasília, 18 de março de 2010.
Ministra Ellen Gracie – Presidente
Ministro Joaquim Barbosa
Ministro Ricardo Lewandowski