10/02/2010

07 de fevereiro, dia de Sepé Tiaraju

Era ainda muito cedo quando, no acampamento à beira da RS 040, município de Capivari, Rio Grande do Sul, seis Guarani iniciaram os preparativos para a viagem a São Gabriel, local da morte de Sepé Tiaraju, líder indígena assassinado pelos soldados dos exércitos de Espanha e Portugal, no ano de 1756. Passados 254 anos, os Guarani trazem à memória esse acontecimento para celebrar, no canto, na dança, nas palavras dos homens e mulheres de hoje a histórica resistência de seus antepassados, em defesa da terra e da liberdade.

 

Às 10h da manhã o ônibus estacionou na beira da estrada do acampamento Capivari e nele embarcaram os seis jovens para uma viagem de mais de 400 km até São Gabriel. Entre os passageiros estava Sr. Augusto, cacique do acampamento, que reside a mais de 20 anos à beira da estrada, entre o asfalto e a cerca de uma fazenda. O sonho do cacique e das demais pessoas que ali residem é ver sua terra demarcada.

 

De Capivari o ônibus seguiu para a área da Estiva, acampamento de 07 hectares, um pouco mais estruturado, também à beira da estrada, uma condição que as famílias já não suportam, pois lhes impede de realizar planos para o futuro. Ali outros jovens, crianças, adultos e velhos embarcaram no ônibus, rumo a São Gabriel, onde aconteceria um encontro para discutir seus problemas e realizar alguns rituais em memória de Sepé Tiaraju.

 

A viagem seguiu assim, passando por Salto do Jacui, Estrela Velha, Interlagos, Varzinha, Itapuã, Canta Galo, Lami, Lomba do Pinheiro, Pacheca, Coxilha da Cruz, Passo Grande I e II, Petim, Arroio Divisa e Irapuã, este último um dos mais antigos acampamentos de beira da estrada de que se têm notícias no Rio Grande do Sul. Embora os Guarani, deste e outros acampamentos, lutem pela demarcação das terras há anos, centenas de famílias permanecem às margens das BRs. Em alguns casos, a Funai criou Grupos Técnicos para realização dos estudos de identificação das terras tradicionais, mas todos foram paralisados e, nos últimos oito anos apenas uma área Guarani, no estado do Rio Grande do Sul, foi homologada. Nos acampamentos tudo é transitório, eles não conseguem cultivar alimentos e sobrevivem, em boa parte, da venda de cestas confeccionadas a partir da fibra de taquara e de esculturas em madeira.

 

Em São Gabriel reuniram-se mais de duas centenas de pessoas: homens e mulheres Guarani. Naquele local os mais velhos, que os Mbyá chamam de Karai, coordenaram os rituais, proferindo palavras de sabedoria, entoando cantos, aconselhando e fortalecendo a confiança dos mais jovens, lembrando que, nos planos de Nhanderu, os Guarani devem viver em paz, com tranqüilidade, numa terra ampla e farta. O primeiro ritual Guarani foi realizado em Caiboaté, local do grande confronto ocorrido em 10 de fevereiro de 1756 entre os guerreiros Guarani e os soldados da Espanha e Portugal. Estes dois paises, inimigos até então, estrategicamente se uniram para vencer a resistência indígena. Aconteceu, em Caiboaté, uma das mais sangrentas páginas de nossa história: enfrentado com lanças e flechas os canhões e fuzis dos colonizadores, os Guarani foram massacrados. A chacina é relembrada também na memória e nas tradições deste povo.

 

Em Caiboaté, ao pé de uma cruz colonial, os velhos, os jovens, as crianças, rezaram pelos antepassados que enfrentaram corajosamente a luta em defesa de suas terras. A cruz colonial marca o local do confronto, mas não é ela o símbolo que une os líderes religiosos do povo Guarani. A cruz traz à memória a dor, e faz brotar lágrimas nos olhos dos velhos quando proferem suas palavras sagradas. As palavras ressoam lentamente, e todos escutam com grande respeito. Nelas, remontam-se cenas e acontecimentos de épocas passadas, mas há sempre um vínculo com o presente, com os desafios de hoje ou com as injustiças sofridas pelos avós, pelos pais e filhos, neste tempo histórico. No Brasil contemporâneo os Guarani vivem ainda uma imensa dor, sempre que são vítimas do descaso, do preconceito, da omissão do poder público, sempre que são forçados a viver em situações degradantes. Mas acima de tudo, é importante dizer que eles são guerreiros no presente.

 

Em algumas das falas, traduzidas para o português eles disseram: “Aqui nesta terra, que é nossa por direito e tradição, hoje moram os bois e os cavalos dos fazendeiros. Sobre a memória dos nossos mortos pisam estes animais e isso nos causa muita tristeza”. Seu Turíbio, líder Guarani e cacique da área de Itapuã, enfatizou: “A história do nosso povo está sendo pisoteada pelos bois dos fazendeiros. Nem os nossos antepassados conseguem ter paz nas terras ocupadas pelos Juruá”. Eles ressaltaram também que querem ver demarcadas as terras de Caiboaté, para que nelas possam construir um lugar de oração e respeito aos mortos.

 

Um segundo ritual foi realizado no centro da cidade de São Gabriel, exatamente no lugar onde, em 07 de fevereiro de 1756, Sepé Tiaraju foi assassinado. Os líderes religiosos novamente pronunciaram suas belas palavras, rezaram e proferiram discursos políticos contra a opressão praticada pelos Juruá. Protestaram contra o fato de o monumento, construído em homenagem a Sepé Tiaraju, ter sido derrubado recentemente. “Os Juruá, não querem os Guarani por perto, por isso destruíram o monumento, foi mais uma violência, mas isso não apaga a nossa memória”, destacou Sr. Adolfo, Karaí de 94 anos, um dos principais líderes religiosos Mbya-Guarani. Dona Laurinda, Kunhã Karaí, disse que os Guarani precisam estar unidos para defender sua cultura, seus costumes e direitos.

 

No final do ato público Santiago Franco, importante líder Guarani, pediu que todos formassem um círculo e, de mãos dadas, eles rezaram em Guarani. Com sorrisos e semblante de alegria convidaram os Juruá que são solidários com suas lutas, para que também se unam e, junto com os Guarani, articulassem momentos de encontro, debates e reflexões sobre a realidade. Reivindicaram que o 07 de fevereiro seja lembrado como um dia da resistência Guarani e que Sepé Tiaraju, que está na memória histórica de todo o povo, não se torne símbolo de ideologias, mas que sua história sirva como exemplo a ser seguido, na construção de uma terra de justiça e paz.

 

Porto Alegre (RS), 08 de fevereiro de 2010.

 

Roberto Antonio Liebgott

Vice-Presidente do Cimi e membro da Equipe Porto Alegre do Cimi Sul

 

Fonte: Cimi - Regional Sul - Equipe Porto Alegre
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